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Um breve aspecto da felicidade

TEXTO Marcelo Pelizzoli

01 de Junho de 2015

Ilustração João Lin

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 174 | jun 2015]

Dos muitos
 aspectos para entender e falar em felicidade para um ser humano, vou tomar um deles, sua conexão básica com a vida enquanto um animal que deve seguir ritmos e fluxos da natureza, que busca encontrar o prazer, o crescimento, como expansão da vida, seu sentido maior.

Há uma imensa sabedoria adaptativa do animal, construída durante milhões de anos no meio biótico, e que permitiu e permite que vivamos ainda hoje. A cultura ocidental tem uma história imensa e rica e, nos últimos tempos, criou coisas muito avançadas, de que a gente acaba gostando muito, e até se viciando nelas; ao mesmo tempo, acabamos perdendo em conexão com a vitalidade básica e, assim, o que se chama de “sanidade básica”.

Uma ótica e uma estética saudável devem propor, agora e desde pelo menos a década de 1960, a inversão dessa cultura esquizoide, e instituir um mundo alternativo, ecológico, sustentável, roots, bicho, comunidades alternativas e subjetividades alternativas, místicas, naturalistas. Essa radicalização – a contragosto dos normóticos, do mundo das gravatas fake e dos sapatos engraxados – é talvez a única forma de saber viver em profundidade, com sanidade. Não há saída para o modelo de desenvolvimento atrelado ao tipo de mercado e sociedade de consumo atual – ao american way of life. Ou praticamos uma maior simbiose, voltando a ser mais biocentrados, voltando à natureza, ou continuaremos afundando na destruição e psicose coletiva, com dados alarmantes: aumento de doenças, suicídios, neurose, estresse, poluição, ansiedade, pânico, medo, assassinatos, corrupção, ganância, corporações, cartéis, drogadição/adicção de todo tipo.

Não se trata de reinventar a roda. Nós sabemos bem o quanto nos curamos e somos harmonizados, quando voltamos à terra, ao campo, à água, aos elementos, às florestas, às pedras, ao barro, à comunidade, aos bichos, ao ar, à Lua e ao Sol, enfim, à vida.

Para W. Reich, a nossa desgraça começou em torno de 6 mil anos, na era do neolítico, quando começamos a nos desgarrar do instinto e da conexão básica e energética com a vitalidade natural. Logo em seguida, ocorre a criação de algumas visões religiosas monoteístas, que são outro passo nessa desconexão com o paganismo – religiões dos pagos, natureza, sagrado. O sagrado – que antes habitava a natureza, o sexo, a terra-mãe, o xamanismo, o curandeiro, o Sol, a floresta etc. – passa a ser monopolizado numa visão masculina, branca e autoritária de Deus. Freud alerta contra o mesmo processo, quando busca resgatar a libido, a sexualidade como centro da vida psíquica, capacidade de relacionamento e contato real com a vida, aspectos essenciais da felicidade perdida na civilização – pois perdeu o corpo, o animal humano.

Em meio a uma grande e silenciosa loucura que perdeu a sabedoria, a alegria e a coragem de viver no mundo atual – pois vive do medo da perda, fracasso, insucesso, competição, medo do inconsciente, medo de si, medo da morte/vida –, em meio a isso surgem os mestres, os sábios, terapeutas, vanguardas, poetas, místicos, ecologistas, os homens simples e terrenos oferecendo afetivamente modelos de vida, exemplos, braços, além de ideias. Loucos em meio à loucura do tempo, em meio à normose. Não são santos, são pessoas. Mas algo começa a acontecer nelas, algo desperta, algo toca; talvez um zeitgeist toque a todos, alguns sentem mais. Freud escreve, na década de 1920, uma obra sintomática: O mal-estar da civilização. Quem, no íntimo de seu ser, não sente o incômodo do tempo?

Quando paramos para pensar e contemplar, vemos a maravilha e a contradição das situações em que nos metemos. Por exemplo: somos todos macacos “evoluídos”. Enquanto macacos ou hominídeos, éramos até bastante felizes, comendo e dormindo, fazendo sexo livre sem doenças, cuidando uns dos outros, tendo lutas com outros dentro de um contexto de territórios, regras e sentido, respeitando os líderes reconhecidos pelo grupo, brincando, catando pulgas uns dos outros, andando em bandos, e morrendo (sem suicídio) quando tem que morrer… Hoje, alguns sonham em ser meio robóticos. Outros sonham em ser anjos, dos quais não sabemos nem o sexo nem onde moram. Não obstante, voltar a ser macaco, símio, seria talvez o maior e mais belo feito humano. Já que não podemos sê-lo, e que é frustrada a tentativa de fazer com que os macacos imitem os homens, é hora de os homens pelo menos imitarem os macacos, e fazer talvez um planeta de macacos-humanos, e/ou humanos-macacos.

Hoje, somos “fantásticos”, civilizados, ex-macacos e hominídeos que dirigem automóveis, e atropelam uns aos outros aos milhões, estão dentro de escritórios, respirando mal, defendem os outros, mesmo que eles sejam corruptos e culpados, dependem muito de religião, mais ainda de dinheiro, ou então de poder, jogam agrotóxicos nas plantas e as comem (ou apenas as vendem), precisam de seguro para o carro, necessitam ser estressados e correr muito, dependem de televisão, senão ficam raivosos e frustrados, demandam roupas – não qualquer uma, mas as mais midiáticas possíveis, precisam de uma série de documentos para existir; compram para comer, e trabalham (em coisas que em geral não sabem bem se gostam de fazer) para comprar; e mantêm a saúde em meio a uma perda generalizada de saúde, justamente porque têm que fazer tudo isso que foi citado – e mil coisas mais. Normal (?).

Felicidade, no aspecto que escolhemos agora, tem a ver com o resgate do fluxo natural da corporeidade e, portanto, da vida ambiental, o que tem a ver com viver uma vida mais próxima do modelo natural, ou seja, uma cultura mais naturalista e que resgate a vida simples, as relações de amizade, a alimentação natural, o encontro e o contato humano. Portanto, a sexualidade saudável, a superação da neurose, o cultivo do tempo como ócio saudável, contemplativo e meditativo. Também a relação propriamente dita com o que chamamos de natureza, os animais, as plantas, a terra. Para isso é necessária uma cultura mais livre, com mais tempo para as coisas boas da vida, com mais justiça, respeito, solidariedade, direitos humanos, superando o modelo econômico doentio e dilapidante em que vivemos, entre outras coisas. 

MARCELO PELIZZOLI, doutor em Filosofia (2000), e pós-poutor em Bioética, professor do Departamento de Filosofia da UFPE e membro do Grupo Cultura de Paz e Comissão de Direitos Humanos DHC da UFPE.

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