Cinema

Documentário com notas de rodapé

Indicado ao Oscar 2025, "Trilha sonora para um golpe de estado" mistura jazz com nomes da política internacional nos anos 1960

TEXTO Marcelo Abreu

07 de Março de 2025

Documentário de Johan Grimonprez mostra como os Estados Unidos usou o jazz em sua política externa

Documentário de Johan Grimonprez mostra como os Estados Unidos usou o jazz em sua política externa

Foto Divulgação

Poucas vezes um documentário demandou tanto de seus espectadores. Trilha sonora para um golpe de estado (produção belga, holandesa e francesa), de Johan Grimonprez, tem como proposta retraçar os anos que marcaram o auge do processo de descolonização na África, focando sobretudo no caso do Congo Belga (depois chamado de Zaire, hoje República Democrática do Congo). Para  contar a história, recorre a dezenas de trechos de cinejornais e filmes da época e mistura tudo com imagens de músicos de jazz, gênero musical que vivia anos de ouro entre as décadas de 1950 e 1960.

O resultado disso é um filme picotado, com uma montagem rápida que vai misturando Patrice Lumumba, líder da independência congolesa, com o trompetista Louis Armstrong, o líder soviético Nikita Khrushchov com o saxofonista John Coltrane, o ativista negro norte-americano Malcolm X com o presidente Dwight Eisenhower, numa grande salada de discursos, entrevistas e apresentações musicais. É interessante como um ágil e esperto exercício de montagem. Mas no meio da barafunda de imagens e sons, fica escondida a discussão de fundo, e acaba sendo confusa a crítica ao imperialismo europeu e norte-americano na África.

Esteticamente, é um filme realmente complexo. Primeiro porque é falado em pelo mens quatro línguas principais: além de francês e do holandês (as línguas dos colonizadores belgas), também há farto material em inglês e em russo. Cada fala é ilustrada na tela com os seguintes elementos: a transcrição do que é dito para o inglês, a identificação do entrevistado, a data do registro visual, o nome da música de jazz que está tocando simultaneamente, a legenda de tudo isso com tradução em português. E, acreditem, são exibidas até citações bibliográficas contendo títulos de livros, autores e páginas de onde informações foram retiradas, igualzinho a uma página de livro impresso. Considerando o ritmo em que surgem e desaparecem todos esses elementos, acompanhar o filme vira um exercício mental para a plateia. E isso tudo tem a duração de duas horas 20 minutos.

Sabe-se que não existe edição de imagens sem um bom grau de manipulação. É inerente ao meio visual. Mas Trilha sonora para um golpe de estado eleva isso ao extremo. Seu ritmo intenso e sua duração impedem uma reflexão crítica do que está sendo exposto na tese do filme. Como num videoclipe alucinado, o espectador pula e galho em galho sem tempo de analisar melhor os “vilões” da história (Eisenhower, a CIA, os belgas com seu rei Balduíno, o secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld, entre outros) ou os “mocinhos” (Patrice Lumumba e o presidente Kwame Nkrumah, de Gana). Nikita Khrushchov entra mais como um bufão folclórico (o que ele era, em parte) mas não tem seu papel devidamente esclarecido. Aliás, o papel soviético no processo de descolonização não sofre maiores críticas.

Talvez o mais injusto no filme seja o tratamento dispensado aos nomes do jazz que entram de gaiatos na confusão da montagem. Louis Armstrong acaba retratado apenas como uma peça no jogo da propaganda norte-americana no Congo e na África em geral. O trompetista Dizzy Gillespie é usado para ilustrar questões políticas, talvez sem ter esse envolvimento todo com o tema. O baterista Max Roach é citado mas não fica muito claro qual sua participação, além de um protesto em defesa de Lumumba durante uma Assembleia Geral da ONU, em 1961.

Apesar de toda a confusão, o filme é uma oportunidade para ver imagens das cantoras Abbey Lincoln e Nina Simone (norte-americanas) e Miriam Makeba (sul-africana), do pianista e bandleader Duke Ellington, da trombonista Melba Liston, entre vários outros grandes nomes do jazz. Todos antológicos na história da música. Pena que, ao forçar a relação entre música e ativismo, o filme não se detém em nada e se torna apenas uma colossal colagem de música e política, às vezes cansativa e pouco esclarecedora para os não iniciados no assunto. Trilha sonora para um golpe de estado foi indicado ao Oscar 2025 de melhor documentário em longa-metragem e ganhou Prêmio Especial do Júri para Inovação Cinematográfica no Festival de Sundance, nos Estados Unidos.

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