"Adolescência" aborda parte do problema
Fenômeno da Netflix em 2025, minissérie britânica está em primeiro lugar na plataforma de streaming, levantando discussões a respeito da violência de gênero precoce
TEXTO Débora Nascimento
24 de Março de 2025
Jamie (Owen Cooper) e Eddie Miller (Stephen Graham)
Foto Divulgação
A ideia da minissérie Adolescência partiu de Stephen Graham. O ator britânico, na história, interpreta Eddie Miller, pai de Jamie, adolescente de 13 anos suspeito de um feminicídio. Veterano na TV e no cinema, Graham teve a ideia após ficar assustado com os recorrentes casos de assassinatos de meninas cometidos por meninos na Inglaterra. O termo “meninos” refere-se ao fato de ser praticado, realmente, por menores de idade. Segundo dados do Entertainment Weekly, entre 2012 e 2013, ataques com facas ou objetos cortantes estavam em 27 mil ocorrências. Já entre 2022 e 2023, o número aumentou para 50 mil casos.
Um dos fatos recentes aconteceu em Southport, cidade litorânea da Inglaterra, em julho de 2024. Na ocasião, garotas com menos de 10 anos de idade foram esfaqueadas em uma aula de dança inspirada na cantora Taylor Swift. O assassino era Axel Rudakubana, de 17 anos, que foi julgado em janeiro deste ano pela morte de três das vítimas e recebeu uma sentença de 52 anos. O crime aconteceu depois de a minissérie já ter sido gravada.
Roteirizada por Stephen Graham e Jack Thorne, cocriador, Adolescência fez sua estreia na Netflix, no dia 13 de março. E, desde então, a repercussão em torno da minissérie só aumenta. Um dos motivos tem a ver com a parte técnica. Dirigida por Philip Barantini (O chef), a produção foi totalmente gravada em plano-sequência – decisão que pode parecer apenas estética, mas que aproxima o público dos personagens, como um reality show. Esse tipo de filmagem fascina os espectadores desde que Hitchcock fez o suspense Festim diabólico, em 1948, provocando muitas discussões, como, por exemplo, em quais momentos o cineasta britânico trocou o rolo de fita. Cada rolo de 35mm tinha 10 minutos de duração.
Depois, esse tipo de tomada aparecia, eventualmente, em produções audiovisuais, como Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón, e Athena (2022), de Romain Gavras – este, um dos melhores exemplos do recurso, na atualidade. O plano-sequência, como o nome já diz, é uma filmagem, em sua essência, sem cortes, sem montagem. Se alguém montar, estará trapaceando o espectador. Por seu grau de dificuldade, geralmente o plano-sequência é usado em um momento específico e não em uma obra toda. No entanto, os realizadores de Adolescência decidiram que a obra seria totalmente gravada nesse formato.
Para conseguir realizar o projeto com sucesso, foram feitos diversos ensaios com todo o elenco, incluindo protagonistas, coadjuvantes, figurantes e toda a parte técnica de câmeras, iluminação, som e cenários. Ninguém poderia errar a sua parte, que prejudicaria o todo. Se houvesse algum erro, a cena inteira seria gravada novamente. Isso significava regravar tudo, ou seja, quase 1h, referente à própria duração do episódio. Ao todo, são quatro, e cada um deles foca em um ambiente. O primeiro, gravado na tomada 2 do primeiro dia de filmagem, começa com uma conversa entre os dois policiais, Luke Bascombe (Ashley Waters) e Misha Frank (Faye Marsay), que estão prestes a prender Jamie. Estão em uma rua do bairro do garoto, à espera do início da ação. Iniciada, a sequência parte do carro da polícia, segue pelas ruas até chegar à frente da casa que a câmera adentra, circulando por todo o imóvel, levando, em seguida, o jovem até a delegacia, onde vai ocorrer o seu depoimento.
O segundo episódio, ambientando na escola onde o criminoso e a vítima estudavam, tem a gravação mais complexa – foi gravado na tomada 13, no quinto dia de filmagem. Se o primeiro episódio é focado na reação da família à prisão, o segundo traz a reação da escola. E lá descobrimos que Jamie (Owen Cooper) sofria bullying. O terceiro episódio exige mais da atuação de Cooper, ator estreante, escolhido entre 500 candidatos, que, em sua estreia, interpreta de forma diversificada o personagem que vai da introversão, passando pelo medo a ataques de fúria.
No terceiro episódio, Jamie tem uma longa conversa com a psicóloga que quer descobrir mais sobre ele e arrancar informações sobre a convivência com seus pais, seus colegas de escola e com a própria vítima, Katie (Emilia Holliday), que aparece apenas em fotos. O diálogo entre Jamie e a psicóloga, quase um duelo de perguntas e respostas mútuas, leva mais de 50 minutos. Foi gravado na tomada 11, no quinto dia de filmagem. Esse episódio é o melhor da série e um dos mais impressionantes já exibidos na TV. Provavelmente, assim como toda a série, deve receber vários prêmios.
Gravado no take 16, o quarto e último episódio foca um dia no cotidiano dos Miller, especialmente, o dia do aniversário do pai, e demonstra o sofrimento que atinge a família de um criminoso juvenil. É muito difícil o espectador não se comover com o roteiro desse episódio e, principalmente, com o seu final totalmente desolador. Quem tiver filhos adolescentes, pode ser atingido em cheio, em uma avalanche de empatia. Não é à toa que há relatos pela internet de que a série vem provocando conversas entre pais e filhos, nas escolas, recebendo menções no Parlamento Britânico.
Pode passar despercebido o diálogo entre o pai, Eddie, e a mãe, Manda Miller (Christine Tremarco), quando lembram de um encontro entre eles em uma festa na juventude, que acaba em uma chacota que fizeram com Eddie, em que ele dissera “Estou sangrando!”. A palavra "sangue", ali, aparece quase como uma brincadeira. Enquanto, no futuro, seu filho, alvo de bullying, não teria a chance de dançar com uma garota em uma festa, porque, com sete facadas, extraiu sangue de uma garota. E é triste admitir que os jovens, hoje em dia, se encontram distanciados fisicamente, se conectando, bem ou mal, apenas por telas.
Um dos pontos, ou o ponto crucial, que a série toca, sem aprofundar no assunto, é a subcultura “incel”. O termo é um diminutivo de “involuntary celibates”, os celibatários involuntários – os homens que estão sem fazer sexo, em tese, porque não são escolhidos pelas mulheres. Na série, Adam Bascombe (Amari Bacchus), o filho de Luke, o investigador do caso, afirma que Jamie sofreu bullying de Katie. A menina teria ironizado, através de emojis, que ele seria um “incel”.
Bem, o menino tem 13 anos. É natural que ainda não tenha feito sexo ainda. Mas no mundo contemporâneo sexualizado, as crianças e os pré-adolescentes são convidados mais cedo a se interessar por tudo que envolve esse tema. E isso não tem a ver com a importante discussão de educação sexual e questões de gênero nas escolas, que pretendem servir exatamente para tentar evitar que aconteçam atos de violência entre jovens.
Um dos trunfos da série é que ela põe o público para pensar. Porque é um dos casos raros, em produções desse tipo, que apontou a câmera para observar o mundo do criminoso e não para o da vítima. Então, no quarto episódio, vemos o pai e a mãe arrasados em uma conversa franca refletindo sobre a passagem rápida do tempo e o que eles erraram na criação do filho. Admitem que não tiveram tempo suficiente. O pai menciona que sai de casa às 6h e volta às 20h e não tinha oportunidade de interagir com o filho. A mãe diz que imaginava que o filho estivesse seguro no quarto diante do computador. E sofrem, ao notar que não sabiam nada a respeito do conteúdo da navegação na internet – os sites, as redes sociais e a subcultura "incel" aparecem como corruptoras desse filho.
No terceiro episódio, o do diálogo com a psicóloga, o garoto, por sua vez, afirmou que não costumava entrar nesses sites que mantêm grupos de conversas entre “incels” – ataques mortais de adultos e jovens já foram realizados por sujeitos, maiores de idade, que se declararam “incels”, muitos deles cooptados por discursos da extrema direita, que, por sua vez, costumam detonar pautas relativas ao bem das mulheres. E o preceito fundamental para ser um “incel” é odiá-las. Para eles, as mulheres são apenas pessoas interesseiras e manipuladoras. Sem nenhum critério, dizem que 80% delas apenas se interessam por 20% dos homens, levando em consideração, para ter algum relacionamento, atributos como dinheiro e beleza.
No quarto e último episódio, acontece algo que deixa claro que o problema é maior do que imaginamos. Um vendedor de uma loja de material de construção, ao atender Eddie, reconhece que ele é o pai de Jamie, e diz que está do lado do garoto, porque “ele é um de nós”. É importante observar que esse ”nós” refere-se não somente aos celibatários involuntários. Mas que estes mesmos são esmagadoramente brancos e não tão pobres assim, porque têm, ao menos, uma casa e um computador para cultivar teorias conspiratórias, como a do red pill – baseada no filme Matrix e mencionada na minissérie. Os homens pobres parecem estar mais preocupados com suas sobrevivências e os homens pobres e negros, em escapar da morte, muitas vezes praticadas por funcionários públicos – a exemplo da PM do Rio de Janeiro, da Bahia e de Los Angeles.
Nesse ponto, a discussão do filme termina sendo também uma discussão de classe média, que leva uma produção audiovisual para discutir nas escolas quando corre o risco de ter seus filhos brancos e bem-nascidos (notar o quarto de Jamie) atrás das grades. No entanto, bem antes disso, adolescentes negros já estavam sendo encarcerados em massa, apenas por sua cor ou porque cometeram crimes, exatamente porque seus pais não tiveram a oportunidade de educá-los. E suas famílias já estavam sendo arrasadas emocionalmente pela completa falta de perspectiva de futuro desses jovens.
Afinal, o pai (muitas vezes ausente) ou mãe, em subempregos, estavam cumprindo jornadas de trabalho excruciantes e voltando para casa, tarde da noite, em longas viagens em meios de transportes públicos. Então, discutir a série é somente discutir uma parte de um problema muito maior, que envolve toda a sociedade, que vem sendo, inclusive, acostumada a assistir a histórias de assassinatos de mulheres como entretenimento na subcultura “true crime”.
A minissérie Adolescência, sim, é importantíssima. Mas aborda, ainda superficialmente, um dos aspectos do problema gigante. Levemos em consideração que a vítima, na história, não mereceu um capítulo que mostrasse a sua família. Então, quando um produto audiovisual se torna um fenômeno, é assistido por uma quantidade incomensurável de pessoas. Matrix foi um desses fenômenos, em 1999. Trouxe várias inovações ao cinema e a discussões filosóficas atreladas à tecnologia. No entanto, o filme dos Irmãos Wachowicz, ironicamente hoje irmãs, vem sendo usado por pessoas mal-intencionadas para criar teorias loucas sobre escolhas afetivas, sexuais e alimentar uma subcultura de ódio às mulheres.
Após a repercussão da minissérie Adolescência, cresceu exponencialmente no Google a busca pela palavra “incel”. Quem são esses curiosos? Exatamente neste ponto a série corre um risco grandíssimo, ao ter colocado o criminoso como vítima das circunstâncias, que ele também pode ter sido, claro. Mas é sempre arriscado dar o máximo de protagonismo a quem mata, principalmente por motivo torpe, e despertar a empatia de um público gigantesco no mundo, uma parcela imensa de jovens. Muitos desses criminosos buscam exatamente isso: sair da escuridão de suas vidas invisíveis e ganhar os holofotes através de suas vítimas. É sempre importante ainda saber quem foram Katie, Vitória Regina, Marielle, Daniella Perez, Angela Diniz…
DÉBORA NASCIMENTO, editora-adjunta das revistas Continente e Pernambuco.