A beleza (quase) invisível de Parthenope
Concorrente à Palma de Ouro em 2024, filme de Paolo Sorrentino fez sua estreia, nesta quinta-feira (20), no Brasil, mostrando a força implacável da beleza e do tempo
21 de Março de 2025
Foto Divulgação
Desde que A Grande Beleza conquistou, em 2014, o Oscar de Melhor Filme Internacional, o Globo de Ouro e o Bafta de Melhor Filme em Língua Estrangeira, os lançamentos de Paolo Sorrentino vêm atraindo a atenção da crítica e do público. De lá para cá, o cineasta italiano lançou filmes que não passaram despercebidos pelos cinéfilos no circuito do cinema de arte – muitos desses títulos despertaram opiniões polarizadas. E agora não é diferente com seu mais recente filme, Parthenope, que fez sua estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (20).
Parthenope é o nome antigo de Nápoles, terra natal de Paolo Sorrentino, que ele já havia retratado em A Mão de Deus (2021), com muitas passagens autobiográficas. Agora, o cineasta volta a visitar, homenagear – e também criticar – seu lugar de origem. Assim como o filme anterior, Parthenope também abarca muitas simbologias. Na mitologia grega, este é o nome da sereia cândida e doce que, amargurada por não poder encantar Ulisses, suicidou-se, e seu corpo foi parar no Ilhéu de Megaride, de onde se originou Neapolis, “cidade nova” em grego.
No filme, Parthenope, a protagonista, ganha esse nome de seu padrinho ao, literalmente, nascer no mar de Nápoles, em 1950. Esse padrinho, o rico e poderoso Comandante (Alfonso Santagata), presenteou a família da menina com uma carruagem do Palácio de Versailles, que serviria como berço para a recém-nascida. Dezoito anos depois, Parthenope surge das ondas e é chamada de “diva” pelo fascinado Sandrino (Dario Aita), jovem filho da empregada da mansão litorânea de seus pais.
Corpo dourado, esbelto em um biquíni e um rosto perfeito. Mas, sobretudo, um semblante sereno como um mar calmo, com um sorriso de Mona Lisa e um olhar atraente. Por onde passa, a jovem atrai os olhares dos homens – inclusive de seu irmão mais velho, Raimondo (Daniele Rienzo). Parthenope sabe de seu irrefreável poder de atração. Durante a primeira metade do filme, Paolo Sorrentino explora a beleza da jovem atriz Celeste Dalla Porta, que faz sua estreia no cinema, em cenas que exibem o magnetismo da personagem, tendo como pano de fundo a deslumbrante paisagem napolitana, sob a direção de fotografia primorosa de Daria D’Antonio.
Porém, os atributos de Parthenope não são apenas a beleza e a juventude. Ela tem um apego genuíno pela leitura, costume que é entendido por parentes e amigos como um hobby. Apaixonada pela obra de John Cheever, encontra, na cidade, o próprio autor (interpretado por Gary Oldman), que, ao recusar a companhia da jovem, diz uma das frases marcantes do filme: “Não quero roubar um minuto da sua juventude de você”. Isso alerta a jovem de que os seus maiores atributos são passageiros. Enquanto os adultos consideravam as respostas afiadas da moça como rompantes de esperteza, Parthenope observava o mundo ao seu redor como quem faz uma análise científica rápida e certeira.
Por um período, ela é convencida de que, com sua beleza, poderia tentar a carreira de atriz, para entrar na lista de beldades italianas na arte da interpretação. A tentativa de ingressar nessa carreira profissional lhe joga em duas cenas, uma de sexo diante de uma plateia de pessoas ligadas à Camorra e o encontro com uma grande atriz italiana (vestida como Sophia Loren), que lhe remove a ideia de ser atriz.
Como em seus filmes anteriores, Sorrentino faz o que mais gosta: construir cenas memoráveis. Assim como Fellini, homenageado por ele em A Grande Beleza, o diretor não cria um filme apenas como um percurso narrativo para contar uma história. Cada cena é pensada com começo, meio e fim, quase como microcontos, e cada uma delas é amarrada à outra para finalmente compor um filme. Mesmo bebendo da fonte felliniana, Sorrentino conseguiu criar um estilo próprio.
Sendo assim, ele vai, de cena em cena, contando histórias de Parthenope e de sua Nápoles. Muitas delas podem não fazer sentido para o espectador, pela estranheza ou pelo grotesco, como o encontro entre a protagonista e o arcebispo da cidade. Nela, há uma provocação brutal ao principal dogma da Igreja Católica, o celibato. A ousadia faz parte da visão crítica que Sorrentino costuma demonstrar sobre o catolicismo imperante em sua terra natal. Outra cena que pode chocar é quando Parthenope conhece, enfim, o filho misterioso de seu orientador.
Esse momento é uma das chaves para se entender Parthenope, protagonista e filme. Aos poucos, Sorrentino constrói uma personagem que, apesar de ser definida pelo mundo exterior apenas por sua beleza, consegue enxergar verdades escondidas sob a superfície. Antes de se dedicar à Antropologia, ela já era uma antropóloga nata, pois não cultivava preconceitos e já praticava “A arte de ver”. Sorrentino tomou emprestado o olhar de sua personagem para realizar um filme antropológico, que mostra o lado belo e feio da cidade - como a pobreza dos moradores, a corrupção de suas instituições, aspectos nada turísticos de Nápoles.
Parthenope concorreu à Palma de Ouro em 2024, e perdeu para Anora, outro filme protagonizado por uma jovem sexualizada. Ao contrário do título de Sean Baker, o de Paolo Sorrentino não traz nudez explícita da personagem principal – apenas de uma codjuvante na mencionada performance de sexo ao vivo. Se Anora contou com a jovem Mikey Madison, vencedora do Oscar de Melhor Atriz, Parthenope apresentou o carisma de Celeste Dalla Porta – outra escolha acertada de Sorrentino, assim como Toni Servillo, que interpretou Jep Gambardella, em A Grande Beleza.
É preciso assistir a Parthenope com olhar generoso para os detalhes – principalmente suas frases (“No fim da vida, restará somente a ironia”), cenas finais e até a cena que aparece nos seus créditos finais. Paolo Sorrentino escreveu um conto sobre o poder da beleza, mas, sobretudo, sobre o poder implacável do tempo. A partir do último terço do filme, Parthenope, já situada nos tempos atuais, finalmente torna-se vista (e reconhecida) pelo que é. Ela continua enxergando a beleza no mundo, mas agora sua própria beleza é invisível.
DÉBORA NASCIMENTO, editora-adjunta das revistas Continente e Pernambuco