Edição #275

Abril 24

Nesta edição

Sabor de festa

“Na rua da Aurora, n. 73, se lava e engoma com toda perfeição, também recebe-se encomendas de bolo inglês, pastéis de nata, bom bocado, letria de ovos, sem e do pão de ló, presuntos de fiambre, o que tudo se faz com prontidão e asseio.”

Esse anúncio foi publicado no Jornal do Recife, em 25 de fevereiro de 1883. Nele está evidente a força da presença portuguesa na culinária local. Incluindo-se aí o bolo de rolo, reinvenção local do que veio da Europa. Hoje é um dos emblemas da cultura local para exportação, o que se mostra numa reportagem especial. 

O Documento trata de uma das grandes atrações do Nordeste brasileiro: as festas juninas/joaninas. Dos santos católicos: Antônio, João e Pedro. Na reportagem de Débora Nascimento recupera-se o liame ibérico e a riqueza musical local posterior. Lusitano, no específico, chegou a ser o tema de um conjunto de poemas de Fernando Pessoa que indaga a São Pedro: 

Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?

Dos três santos, triunfa ainda João. O Antônio – de tantas superstições e peculiaridades familiares, eróticas, militares – está meio esquecido, exceto como data dos enamorados. Mas houve um tempo em que cada um gozava de relevância específica. Daí um pedido como este datado de 17 de fevereiro de 1921, e publicado no Jornal do Recife:

“Os moradores do Pátio de São Pedro pedem aos ilustres redatores desse conceituado órgão para implorar do Prefeito da capital a fineza de começar logo a remodelação do calçamento da mesma praça, a fim de ficar pronta antes da festa de São Pedro, que, este ano, será pomposa.”

É pouco provável que a festa de São Pedro neste ano de 2024 seja pomposa em qualquer sítio do Brasil. Sítio como mero substantivo de lugar (à lusitana) e menos no sentido que todos os nascidos no interior estiveram acostumados a conhecer. O país não alcançou aquele status de rurbanização sonhada por Gilberto Freyre. As cidades “incham” e são como formigueiros humanos e nelas assumiram feições diferentes as festas de sentido originariamente agrícola e religioso.

Soterramos, de certa forma, as pequenas vilas e seus costumes, prescindimos das noites e das estações. Frutas. Antes colhidas em safras, hoje dão o ano inteiro. A um toque a luz se faz, e pode ser dia o dia inteiro. 

Vive-se um tempo problemático para os símbolos e ritos. Algo que notou Byung-Chul Han, em O desparecimento dos rituais. A capa de uma edição espanhola desse livro mostra justamente o ato de tomar café. Como o do chá, integra algo essencial à sobrevivência em harmonia: o convívio humano. 

De vez em quando, no Brasil, reclama-se da perda ou destruição do patrimônio material. Mas quase ninguém se ocupa da deterioração e desaparecimento de parte da cultura intangível. Um exemplo eloquente o das festas de junho. As diversas fusões e os resultados tão originais quanto atraentes e apetitosos deveriam ter merecido um apego maior das gentes que (d)isso viviam.

Obviamente, a cultura é dinâmica e sofre um inevitável processo de alteração ao longo da história e do contato com outras culturas. Além disso, as permanências e transformações são por vezes sutis. Quem hoje se lembra de que o título de uma das comédias mais conhecidas de Shakespeare – Sonho de uma noite de verão – é, na verdade, Sonho de uma noite de São João? A memória, a história e a cultura são afluentes do rio de Heráclito-Camões: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, tudo no mundo é feito de mudanças”.

Mário Hélio | Editor

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