Jubiabá
O povo, a cultura e a memória de um Brasil real
O gosto pelas efemérides é insaciável no Brasil. O que termina por revelar, juntamente com o interesse perene pelas homenagens, o caráter algo medieval de um lugar encontrado pelos europeus justo quando findava-se o Medievo. Para efeito esquemático, diga-se. O que hoje chama-se Brasil nasce na transição, de um período arcaico para o longo percurso da Modernidade e suas múltiplas faces e máscaras. Em 2025 será tempo de comemorar os 70 anos do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. O autor com alma de ator nunca desgarrado de medievalidades, renascenças e barrocos. Porém, seu êxito massivo mais sólido é por causa das modernas diversões eletrônicas. Não há nada de paradoxal que o texto de maior sucesso do romancista, poeta e dramaturgo seja “auto”, tão cômico em sua economia de meios, tão moralizante em sua sátira quanto pode ser a mentalidade hispânica.
Nascido na Espanha, no século XII, o auto encontra exemplos excelentes em nomes como Calderón de la Barca, Lope de Vega, Gil Vicente, e entre os brasileiros, além de Suassuna, em João Cabral de Melo Neto e Silvio Roberto de Oliveira. O auto encontra o seu auge justamente quando os portugueses começam a explorar o Brasil. Coincide com o chamado Século de Ouro da cultura espanhola. É considerado o fim desse ciclo 1681, quando morre Calderón de la Barca.
O êxito do Auto da Compadecida foi imediato, e crescente. Ele conseguiu tecer mais do que uma colcha de retalhos magnífica com os mitos e o anedotário eruditos e populares. Fabricou um espelho para o povo brasileiro. Sua peça é uma máquina de gerar empatia. O produto da soma da expressão “castigat ridendo mores” (“corrigir os costumes com o riso”) com o slogan “o cinema é a maior diversão” tem como resultado Ariano Suassuna. Os ingredientes do seu permanente sucesso deve-se a que conseguiu transmitir com simplicidade de linguagem situações de familiaridade e fácil “projeção” do/no público. Uma prova do entranhado iberismo dos brasileiros nele refletido.
Suassuna é um dos grandes exemplos no Brasil daquilo que Guy Debord chamou de ‘a sociedade do espetáculo’ (ideia difundida em livro mais de dez anos após a montagem do Auto da Compadecida). O auto foi, por assim dizer, sua primeira aula-espetáculo. De brasilidade, antes de tudo. Movida por uma quase genialidade circense, coberta por uma capa quixotesca, e algo também chaplinesca, que o autor compartilha com os seus personagens, e estes, por sua vez, com a plateia.
É o cinema o cenário, o lugar, o palco mais forte para uma peça composta com os mais sensíveis elementos do inconsciente brasileiro. Mas não se pode negar a existência no texto de um quê universal, até arquetípico, pois Suassuna não inventou o picaresco, nem o riso, nem a peripécia. Conseguiu – o que não é pouco – engendrar, à sua maneira, esses e outros elementos complexos e cotidianos, ao mesmo tempo.
Só esta capacidade de comunicar-se com todo o Brasil bastaria para notar o quanto de ridículo há nos que pretendem limitar o Auto ao Nordeste. O sucesso em todo o Brasil das montagens nos teatros e das adaptações nos cinemas provam que não são propriamente “emoções regionais”, mas, no mínimo, “nacionais”, as desse auto tão alto e tão ibérico em sua essência.
Felizmente, as boas adaptações nunca se limitam a uma cópia fiel do texto original. Daí que os louvores devem ir não apenas para Ariano Suassuna, mas quem conseguiu traduzi-lo em linguagem cinematográfica. Como Guel Arraes. Mais de uma vez. Não um mero refazer, e sim uma nova leitura do Auto. Gargalhadas garantidas. Não pela piada em si, mas por saber muito bem (re)contá-la.
Mário Hélio | Editor
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