Cobertura

Inhotim, aspirações e contradições

Instituto de arte contemporânea dedica programa a artistas negros em seu espaço e acervo, a partir do legado de Abdias Nascimento, mas deixa escapar alguns contrassensos

TEXTO Olívia Mindêlo

02 de Janeiro de 2023

Exposição 'Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro' conjuga obras de diferentes gerações

Exposição 'Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro' conjuga obras de diferentes gerações

Foto ÍCARO MORENO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 265 | janeiro de 2023]

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Em novembro de 2017, a revista Continente destacava na capa uma “nova” geração de artistas visuais que vinha, aos poucos, conquistando espaço nas instituições culturais do Brasil. Por obra de uma articulação coletiva e histórica, a presença desses criadores brasileiros, de pele e ancestralidade negras, começava a despontar com mais força em museus e galerias, e a dar maior visibilidade a uma produção que, se acontecia há séculos, também há muito era ignorada pelo campo artístico. O foco da nossa reportagem era mostrar esse boom que – como ponderava a jornalista Christiane Gomes em seu texto – tinha mais a ver com a abertura dos espaços legitimadores (historicamente brancos e euroformados) do que com a “explosão” de trabalhos em si. 

De lá para cá, o movimento de ocupação de negros, negras e negres em exposições de arte do país se expandiu e alcançou o gosto do mercado e das instituições (em especial, do Sudeste), quase sempre articulados em torno das “novidades”, mas certamente cientes do seu compromisso social. Chegava a conta de que não dá para viver no século XXI e continuar a colocar, às bordas e ao longe, as múltiplas formas de expressão de uma população que, no Brasil, representa mais da metade de suas pessoas. No fim de 2022, enquanto fechávamos este texto, espaços como o Museu de Arte do Rio (MAR), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), o Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS/SP) e a recém-inaugurada Pinacoteca do Ceará, por exemplo, abrigavam, em suas agendas, mostras com o protagonismo de artistas negros e suas linguagens – e essas mostras adentram 2023 em cartaz. 

O Inhotim, em Brumadinho (MG), também. No despertar deste ano, o instituto mineiro de arte contemporânea se soma às instituições que apontam para esse direcionamento necessário em suas programações – não sem também trazerem junto às contradições inevitáveis desse processo. Em novembro, estivemos lá, a convite do instituto, para acompanhar a abertura de duas mostras coletivas simultâneas, que podem ser visitadas até 16 de julho deste ano. Uma delas na Galeria Lago, a coletiva Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro; a outra, na Galeria Fonte, O mundo é o teatro do homem, com vídeos de Jonathas de Andrade (AL), de um lado, e da dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (AL/Alemanha), de outro. 

Ambas integram um projeto amplo envolvendo pesquisas e curadorias de exposições em torno do legado de Abdias Nascimento (1914-2011), artista visual, ator, escritor, pensador, articulador cultural e ativista político que foi deputado e senador. Em outras palavras, um cara imenso nas batalhas travadas pela negritude por espaço simbólico e respeito neste país. O programa do Inhotim em torno do seu pensamento e ação começou em 2021, a partir de uma parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – Ipeafro, e segue até o final deste ano, com o quarto e último ato da iniciativa que abarca eixos centrais da atuação de Abdias – o Museu de Arte Negra, inaugurado em 1950 (sem até hoje ter uma sede), e o Teatro Experimental do Negro (TEN), epicentro de várias realizações e articulações pioneiras no Brasil. 

Uma das crias do TEN foi justamente o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, nome tomado de empréstimo, não por acaso, como título da exposição na Lago, que funciona como uma extensão desses “atos” pautados pela exibição, sempre na Galeria Mata, de recortes do material de acervo do Ipeafro – fundado por Abdias ao lado de sua companheira, Elisa Larkin Nascimento. Tendo sobrevivido dois anos (de 1948 a 1950), com 10 edições publicadas, o periódico tem uma importância histórica na construção de uma imprensa negra no país, que começou com iniciativas como O Menelick, em 1915. Pioneiros, os jornais afrocentrados traziam, como linha editorial, a abordagem de questões da vida cotidiana de negros e negras, sob um contexto de ferida aberta pela controversa e bastante recente abolição da escravidão no Brasil. “A exposição pegou emprestado o título do jornal por a gente entender que muito do que foi discutido ali, com um corpo editorial forte, poderia se transformar numa exposição que estaria em diálogo com artistas contemporâneos que estão pensando uma série de questões muito presentes no jornal”, afirmou Deri Andrade, curador assistente do Inhotim. 


Foto: Ícaro Moreno/Divulgação

Deri é um dos envolvidos na concepção da mostra que, na abertura (19 de novembro de 2022), trazia fotografias, vídeos, documentos e sobretudo pinturas de 33 artistas e um coletivo – o Trovoa, formado por mulheres de várias partes do território nacional. Conjugando a exibição de mais de 80 obras com exemplares do Quilombo e outros veículos, a exposição articula passado e presente estruturando-se em cinco núcleos temáticos que se propõem a atualizar artisticamente as questões sociais da negritude – Novo poder: reformulando uma vanguarda, Vidas públicas, Vida e aspirações do negro, Elas falam e Reescrita da história. Estão no elenco desse percurso desde nomes veteranos das artes visuais brasileiras, como Rosana Paulino (SP), Lita Cerqueira (BA), Arjan Martins (RJ), Januário Garcia (MG) e Eustáquio Neves (MG), até pessoas de gerações mais novas, como Aline Motta (RJ), Moisés Patrício (SP), Panmela Castro (RJ), Ros4 Luz (DF), Rafael Bqueer (PA), Zéh Palito (SP), Mulambö (RJ), Silvana Mendes (MA), Kika Carvalho (ES), Ana Elisa Gonçalves (MG) e outros. Marcados pelo figurativismo, sobretudo, eles assinam trabalhos cheios de beleza e impacto, numa expografia rica. 

“É a primeira vez que o Inhotim mostra uma coletiva de uma vanguarda que está surgindo. É uma força coletiva, são artistas que realmente estão mudando muitos paradigmas, tanto museológicos, como até mesmo epistêmicos, ou seja, como se constituem as narrativas dos museus hoje em dia no Brasil”, disse Julieta González, diretora artística do Inhotim, na véspera da inauguração da mostra. Lendo hoje, a fala soa como uma espécie de ilustração, ou prenúncio, de uma série de manifestações que seriam, no mesmo dia, dirigidas ao instituto pelo artista Maxwell Alexandre, por meio do seu perfil no Instagram. 

O carioca participava da mostra com a megaobra em papel Sem título, da série Novo poder, de 2021, adquirida pelo Inhotim para compor o seu acervo. Na postagem, que deu sequência a vários “textões” com o objetivo principal de retirar a sua pintura da mostra, Maxwell falava do constrangimento por estar em “exposições temáticas sobre o negro” e criticava o tratamento curatorial das inaugurações, chamando atenção para a cisão entre artistas negros na Galeria Lago e só brancos, na Fonte. Além disso, problematizava os títulos das mostras e o fato de o Inhotim não ter sequer um pavilhão de um artista negro em seus 140 hectares de mata e galerias. “Desçam minha obra, retirem o meu nome”, conclamou Maxwell, incansavelmente e todos os dias, até o Inhotim anunciar, no início de dezembro, a retirada do trabalho da exposição. Até o fechamento desta edição, o instituto estudava uma alternativa para o vazio deixado na parede. 


Telas da série Vigília, de Panmela Castro, estão no acervo do Inhotim e na mostra da Galeria Lago. Foto: Ícaro Moreno/Divulgação


Edições do jornal Quilombo, que dá nome à exposição,
dialogam com obras de arte e podem ser vistas no local.
Foto: Olívia Mindêlo

Na época da abertura, conversamos com alguns artistas da mostra, que deram razão aos pontos colocados por Maxwell, mas também reiteraram a sua alegria de estarem ali expondo. Erica Malunguinho, artista e deputada estadual (SP), chegou a postar em seu Instagram que o artista “apontou a arma para a casa-grande, mas atirou no quilombo…” e a postagem sucedeu a de outros artistas, de forma direta e indireta. No geral, eles pareciam se sentir apartados da postura de Maxwell, que conquistou um lugar de grandeza no meio artístico nacional e internacional, e fez questão de reiterar isso. Yedda Affini, do Trovoa, falou à Continente: “A questão de exposição e curadoria é uma coisa a se estar atenta, de uma forma geral e pra sempre. Mas eu, enquanto uma jovem preta de 20 anos, quero viver o momento de deleite, de estar aqui no Inhotim, que, para mim, é uma conquista muito grande”. 

Rafael Bqueer complementou, citando duas personalidades pintadas por ele e expostas na mostra: “Quando se fala de uma produção preta no Brasil, a gente sente essa falta do reconhecimento, né? Não à toa, teve todo um processo de marginalização de Madame Satã, por exemplo, ou até mesmo de um enfrentamento do racismo na figura da Jorge Lafond na televisão. Então, não é simples lidar com essas instituições, a gente sempre vai ter questões no campo político”. 

Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e presidente do Ipeafro, reiterou a necessidade de diálogo e que entende o posicionamento de Maxwell, pois “tem um fundamento histórico”: “A gente não pode simplesmente, como Ipeafro, parceiro do Inhotim, dizer que ele está errado. Muito pelo contrário. O que a gente precisa é entender as razões que fazem com que um posicionamento deste seja feito. Cada olhar traz uma perspectiva histórica e é só a retirada da obra que traz as pessoas para pensar sobre isso”. 


Exposição na Galeria Fonte traz acervo do Teatro Experimental do Negro e do Teatro do Oprimido em diálogo com vídeos. Foto: Raphael Calixto/Divulgação

Em nota oficial, o Inhotim disse que realizará um encontro, ainda este ano, “para escutar as críticas, os desejos e as ideias no intuito de formular um conjunto de recomendações para melhorias nas práticas institucionais”. Convidado pela instituição, Maxwell postou que essa decisão “parece um passo dado”. E continuou: “a princípio, escrevendo aqui, neste momento, eu quero estar lá nesse encontro, mas preciso de tempo pra decidir isso”. Durante todo o processo, ele optou por não falar com jornalistas, reiterando que tudo o que pensava sobre a questão estava dito em seu Instagram (@maxwell__alexandre).

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural, editora da Continente Online.

* A jornalista viajou a convite do Inhotim.

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