Portfólio

Arjan Martins

Quando o Atlântico transborda

TEXTO Taynã Olimpia

02 de Dezembro de 2021

'Américas', acrílica sobre tela, 200 x 390 cm, 2016

'Américas', acrílica sobre tela, 200 x 390 cm, 2016

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 252 | dezembro de 2021]

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Morar no litoral tem seus efeitos. Não falo apenas de questões de temperatura, umidade e maresia. Há um outro fenômeno ligado à nossa proximidade ao mar. Corpos de água são sincréticos, muitas crenças bebem dele; há quem se batize nele, lave suas chagas ou o use para renovar as energias. Atrelado ao mar, encontramos também o elemento do desconhecido, daquilo que está após o horizonte visível a nos gerar inquietação. No passado, tal ânsia foi capaz de levar exploradores a embarcarem e zarpar. São muitos os livros de História que nos contam sobre eles: os “descobridores”, “descobriram a América”.

Quem lê a história com olho e pele compactua com o alerta da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre O perigo de uma história única – uma palestra que depois virou best-seller, em 2018. Quando todos os narradores têm pele clara e olhos azuis, quem se encarrega de contar, com fidelidade, a versão dos de pele preta? É questionando hegemonias de discursos, como a do “descobrimento”, que enxergamos, de fato, além do horizonte.

Porque a América não foi desvendada, foi tomada. Os povos de aparência e cultura diferentes daqueles que tinham o controle das caravelas foram massacrados, escravizados, colonizados. Quando os navios negreiros aportaram aqui, neste litoral, uma ruptura ocorreu. E os fragmentos são encontrados até hoje espalhados por aí, como farpas incrustadas nas mãos da sociedade.


O estrangeiro XXI, acrílica sobre tela, 80 x 180 cm (tríptico 80 x 60 cm, cada), 2017.
Imagem: Divulgação

Mas, se subvertêssemos tudo? Se as caravelas, marcos do sequestro do povo preto da África, fossem postas de cabeça para baixo? A navegar com seus mastros imersos em água e cascos mirando o céu. Esse desejo não vem sem referência, na verdade, é descrição de um elemento muito presente nas obras do pintor Arjan Martins. Uma série de suas pinturas traz a relação entre as caravelas, o mar e o tráfico negreiro, questionando o lugar de pompa dessas embarcações e colocando-as em seu devido lugar: símbolos da barbárie da escravidão.

Mais que isso, Arjan, ao mudar a perspectiva de algumas dessas pinturas e desenhos, é capaz de nos pôr no lugar dos passageiros. Ao ver detalhes da estrutura interna do barco, temos a sensação de que embarcamos. Então vem o medo: à vista apenas as águas raivosas e indomáveis do mar. Em pinceladas de tinta acrílica, o oceano esfumaça e se confunde com o céu. “Dois infinitos/ Ali se estreitam num abraço insano”, como escreveu o poeta Castro Alves em Navio negreiro. O mar de Arjan não se mostra acolhedor a tais embarcações, mostra-se brusco, como se quisesse impedir a passagem tranquila da caravela. Um mar de protesto.

O Atlântico e seus ambientes costeiros são frequentes na obra de Martins, que é nascido e criado no trecho do litoral brasileiro conhecido como a cidade do Rio de Janeiro. A Cidade Maravilhosa é onde mora e trabalha. Sua relação é tão intrínseca com o lugar, que escolheu incorporá-lo em seu nome artístico: “Arjan” é junção de Argentino, seu nome de batismo, e Janeiro, da sua cidade. “A minha obra também se reporta à cidade, à história do Rio de Janeiro, à vida pré-colonial e pós-colonial da cidade, um repertório que pode ser amplamente explorado”, explicou o artista carioca em entrevista à historiadora Raquel Barreto, publicada no livro Arjan Martins, editado pela Cobogó (2021), com organização de Paulo Miyada. O livro, do qual parte a observação da obra do artista aqui realizada, compila 100 obras de Arjan, com ensaios de Miyada e do crítico e historiador de arte Michael Asbury.

Entre as obras recentes deste artista, predominantemente focadas na pintura figurativa, há a predominância de algumas cores, como o azul, amarelo, verde e vermelho, assim como o preto e o marrom, para os tons de pele e sombreados; já a cor branca é mais usada para dar contornos e detalhes de movimento às cenas. Os tons escuros e um manejo cru das tintas permite contrastes e profundidade na composição. Através de pinceladas grossas, desbrava cenários, pessoas e elementos.

O protagonismo é sempre de negros e negras, para cujas representações e expressividade das cenas não se fazem necessários rostos e demais elementos bem delineados. A maioria dos seus personagens não têm olhos, boca, nariz… Observamos que o foco narrativo é outro: os acessórios usados, o tom de pele, as vestimentas, o que a postura corporal transparece.


 Sem título, acrílica sobre tela, 195 x 154 cm, 2016. Imagem: Divulgação

EXPANDINDO NARRATIVAS
A observação das ruas, de como e por quem são ocupadas, é uma das fontes de inspiração de Arjan Martins. São criadas, assim, releituras em tinta de fotografias que registram protestos, pedestres, interações sociais ou a simples presença humana. Como na sequência de pinturas que retratam mulheres sentadas na calçada com uma bacia cheia de alimentos no colo.

“Aquelas senhoras descascando laranjas poderiam ser do sertão de Pernambuco, à beira de uma estrada, sustentando suas netas, tentando oferecer educação e dignidade às suas famílias. Suas fotografias ficaram muito tempo no estúdio e eu olhando para elas. Até que entendi que elas se convidavam para o quadro, e que a história da arte precisava também de outras personagens como protagonistas da história. Considerei que essas senhoras traziam uma dignidade no pescoço”, diz o artista na mesma entrevista. Em uma das versões da imagem, ele ornamentou essas mulheres com muitos colares dourados.

Na pintura Sem título, finalizada em 2019, vemos um grupo de aristocratas de pele retinta que caminha, despretensiosamente, num local que parece ser um porto. Roupas bem estruturadas, cabeças ornamentadas e erguidas, coluna ereta. Eles transmitem a consciência e empoderamento de que pertencem àquele lugar. Em outros quadros também presenciamos negras e negros em posição de destaque e poder social, rodeados por pilhas de livros, usando jóias, headphones e câmeras fotográficas, ou com um estetoscópio pendurado no pescoço e caderneta no bolso.

“Uma jovem negra pesquisadora, ativista, conferencista, engenheira, jornalista, museóloga, crítica de arte, senadora – todos esses substantivos, e tantos outros, caberiam nessa imagem. Esse empoderamento cognitivo me interessa. Esses atores protagonistas possuem uma agenda”, pontua Arjan. Assim, por meio de tela e tinta acrílica, nos deparamos constantemente com sua proposta justa de reescrita da História.

O ENREDO NOS DETALHES
Na série de desenhos cujo Atlântico é protagonista, encontramos escritos nas pinturas, ao modo cartográfico, com datas, referência a leis (como a Lei Eusébio de Queirós, de 1850) e outras menções a fatos históricos.

O emblemático quadro Américas (2016) traz, além da caravela invertida, rosas dos ventos espelhadas – o sentido de direção confundido. Acima, no centro da tela, vemos uma coroa que pende e se sustenta por uma corda que corta toda a extensão da pintura. Uma águia, símbolo da América, é retratada em tamanho avantajado e sobrevoa a paisagem – “Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!”, lembrando mais uma vez o verso de Castro Alves. Aproximando o olhar, identificamos um pequeno carimbo do mapa-múndi com duas legendas: Slave trade e Discover travel (Tráfico de escravos e Viagem de descoberta, em tradução livre). A mensagem está nos contrastes.

Já em obras de contexto mais urbano e contemporâneo, as pistas se encontram em detalhes de pixo na parede, na estampa de uma roupa ou boné, e outros elementos escolhidos para compor o cenário. O conjunto dessas escolhas comunica, de forma sutil, a intencionalidade do autor, que traz um marco temporal e pessoal às imagens. São várias as telas ornamentadas com ramos de café, algodão ou cana-de-açúcar – a tríade de produção agrícola responsável pela escravização e tráfico de inúmeros negros e negras para o Brasil.


Sem título, acrílica sobre tela, 160 x 240 cm (díptico, 160 x 120 cm cada), 2018.
Imagem: Divulgação

Outro quadro repleto de pistas- estampa, em primeiro plano, um homem que carrega uma máquina de costura onde se lê na base “pos colonialism”. A roupa do personagem é um uniforme verde com inscrição no peito que diz “Lagos”, talvez uma referência abrasileirada e irônica ao time americano de basquete Lakers, mas, também, ao Instituto Goethe de Lagos, na Nigéria, onde Arjan participou de uma exposição coletiva em 2017.

Nessa mesma pintura, no canto inferior direito da tela, quase fora do enquadramento, ainda lemos “Marielle vive” pichado em uma parede – intervenção semelhante àquelas que encontramos pelas cidades brasileiras. Essa obra foi criada em 2018, após o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco; crime que ocorreu na noite anterior à abertura da exposição coletiva Fratura, da qual o pintor fazia parte.

O diálogo com o contexto social continua em outros trabalhos. “O motivo que me levou a pintar foi uma necessidade de expressão que não podia vir através de outro dispositivo senão da arte. Fui encontrando assuntos que não necessariamente estavam na arte, mas na história, na política, assuntos extra-aula de estética, assuntos mais urgentes”, conta no livro o artista, que estudou na Escola de Artes Parque Lage, na década de 1990.


Sem título, acrílica sobre tela, 160 x 240 cm (díptico 160 x 120 cm, cada), 2019.
Imagem: Divulgação

PINTURA COMO ALICERCE
Seu ingresso nessa escola, referência na formação de artistas visuais de várias gerações, se deu de forma inesperada: em uma festa no Mundo Novo, ateliê de Charles Watson, um dos professores da Parque Lage. Era a década de 1980 e uma amiga em comum o apresentou ao educador. À época, Arjan “não tinha a mínima ideia do que se tratava quando se falava em artes visuais ou artistas plásticos”, comentou. “Foi uma aproximação muito espontânea, não existia nenhum indicador de que eu teria essa como uma opção de vida. Mas a ideia de chegar numa escola de arte e ser aceito como ouvinte, para frequentar esta e aquela aula, me fez trabalhar muito a audição. Audição e retina, claro.”

Diferente da maioria do corpo discente, ele não foi um aluno com formação prévia no exterior ou pós-graduação presente no currículo. Chegou à sala de aula como um morador do subúrbio. Até então, o jovem Argentino Martins só havia prestado serviço militar e trabalhado em “profissões contingenciais”, para subsistência. Na faixa dos 19 anos, em um emprego como office boy, foi que conseguiu certa independência financeira e o aluguel do seu primeiro apartamento em Ipanema. Um bairro heterogêneo, cuja praia funciona como mecanismo de horizontalização da vida cultural. Aí vemos, mais uma vez, o papel-chave do mar nas vivências do artista.

Desde aquela conversa informal com Charles Watson até hoje, o pintor coleciona em sua trajetória residências, exposições coletivas e individuais, formações e prêmios. A primeira individual dele aconteceu em 2002, quando ainda estava incerto sobre sua trajetória artística. Porém, com a exposição dos seus desenhos a nanquim recebeu a chancela de Cildo Meireles, icônico escultor e pintor brasileiro de projeção internacional, que, além de ter estimulado a montagem da mostra, ao fim da sua visita à individual, escreveu no livro de presença: “Impecável a exposição, maravilhosa, muito obrigado!”.


Sem título, acrílica sobre tela, 160 x 240 cm (díptico 160 x 120 cm, cada), 2018.
Imagem: Divulgação

VIDAS NEGRAS PRODUZEM ARTE
Ser negro e artista numa sociedade racista e pouco receptiva àqueles que vivem de arte gera necessidade de reafirmação. “A cota é pouca e o corte é fundo”, como já cantou a baiana Xênia França, na música Por que me chamas?, em verso que debate a falta de oportunidades para o povo preto. No circuito de arte contemporânea, a representantividade e o protagonismo de negros e negras, tanto na curadoria quanto no corpo artístico, brota aos poucos. Ter Arjan Martins nesse cenário é significativo. Especialmente por ele trazer em suas obras provocações e contextualizações importantes para a luta antirracista.

O quadro Ágatha, de 2019, feito em referência ao caso da garota de oito anos baleada na comunidade da Fazendinha, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. Na cena ilustrada na tela, com fundo em vermelho escuro, vemos uma mulher sentada, debruçada sobre si, numa postura de quem está aos prantos, em desespero. Ela é consolada pela figura de uma menina cuja roupa lembra o uniforme das escolas públicas do Rio de Janeiro. Atrás delas, em segundo plano, uma figura está em pé com um dos braços estendido para o lado, como quem aponta ou discute com alguém/algo.

 
Ágatha (esq.), acrílica sobre tela, 160 x 120 cm, 2019. 
Sem título (dir.), acrílica sobre tela, 160 x 120 cm, 2018.
Imagens: Divulgação

“Embora eu esteja tratando de um tema que abrange o Rio de Janeiro, é um tema que abrange o mundo inteiro. Estamos nos referindo a todos os continentes, não estamos falando mais de um lugar apenas”, destaca.

A obra de Arjan é um encontro com o Atlântico. Encontro com aqueles e aquelas que o atravessaram em diáspora ou que por ele são banhados. É um Atlântico que transborda. Das caravelas que cortaram as águas até a vida que se forma em seu litoral, o diálogo da tinta, pincel e tela é sempre com a história do povo preto. Retratos da pluralidade de culturas, de como vivemos, sobrevivemos e prosperamos. É emocionante olhar para uma obra, cuja origem vem do modelo Renascentista, e se encontrar lá, encontrar os seus. Saber que, assim como a Marielle relembrada pelo artista, estamos presentes, estamos vivos. 

TAYNÃ OLIMPIA, estudante de Jornalismo na UFPE, estagiária da Continente.

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