Bastidores, imagem transferida sobre tecido, bastidores de madeira e linha de costura, 30 cm de diâmetro, 1997. Imagem: Claudia Melo/Reprodução
Pouco mais de 10 anos antes, em 1982, a filósofa Lélia Gonzalez dizia que era preciso assumir o risco de “falar com todas as implicações”, uma vez que os negros vinham sendo infantilizados. Lélia explicava: “infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos”. Militante ímpar dos movimentos negro e feminista nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil, Lélia esteve empenhada em combater o mito da democracia racial no país, também amplamente presente na produção artística nacional.
A famigerada democracia racial, proclamada por Gilberto Freyre e aplicada por poderes oficiais como o de Salazar e da ditadura militar brasileira, colaborou para que o debate sobre raça fosse abordado com pouca complexidade em nosso meio cultural. No Modernismo, são emblemáticas as mulatas de Di Cavalcanti, as figuras negras de Tarsila do Amaral e Lasar Segall, todas alegorizadas, sem identidade própria. Embora a mestiçagem freyriana tenha trazido uma abordagem positiva para o debate sobre identidade, acabou por reiterar o projeto de branqueamento da cultura brasileira, ocultando violências de outras e muitas ordens. Ao contrário de democracia, o que persistiu nessas produções foi uma parcela de discriminação racial, tornando o negro um elemento exótico de interesse, rodeado de fetiche e distanciamento.
Além disso, a representação de negros e negras na cultura visual experimentou ainda maior violência no âmbito da ciência. Os séculos XIX e XX testemunharam íntimas relações entre raça e eugenia, com buscas científicas por um padrão de normalidade física e moral que pudesse ser mais adequado ao progresso da nação. Nesse entremeio, são inúmeros os registros etnográficos e científicos, exposições antropológicas e estudos de antropometria que situam a negritude como raça inferior, subordinada.
É a partir dessas complexas constatações que Rosana Paulino atua, buscando desvelar, à luz da história brasileira, o racismo científico, o exotismo modernista, a memória seletiva e a estigmatização da mulher negra no Brasil. Vamos apurando com ela, gradualmente, que a produção de imagens é uma importante ferramenta de poder.
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O amor pela ciência, impressão digital sobre tecido e costura, 29 x 58 cm, 2016.
Imagem: Claudia Melo/Reprodução
A costura presente nos patuás da Parede da memória se expande para outros trabalhos, alcançando maior dimensão. Na série Bastidores (1997), Paulino transforma imagens em corpos, ao perfurar retratos históricos e acionar aquilo que antes era apenas registro. Várias mulheres aparecem com garganta, boca e olhos costurados, todos vedados ao direito da expressão. Embora o título se refira ao suporte que estrutura o tecido a ser bordado – o bastidor –, também sugere a ausência de mulheres negras em espaços de protagonismo, relegadas constantemente a funções domésticas. Além disso, a linha e a agulha, tradicionalmente vinculadas às atividades femininas, representando recato e delicadeza, ocupam aqui um papel violento, enquanto maculam e subvertem o sentido original das imagens, também pertencentes ao arquivo pessoal da artista.
Paralelamente aos arquivos pessoais, Rosana Paulino demonstrou constante interesse pelo registro científico. Desde o bacharelado em Gravura na ECA/USP, a artista já realizava estudos de espécies de animais como peixes, morcegos e lagartos. Mais adiante, o início dos anos 2000 é marcado por séries de desenhos que remetem ao universo da biologia, com células, ovos, casulos e metamorfoses. Nessa época, a linha da costura também se manifesta como risco e traço, elemento do desenho. É o caso da série Tecelãs (2003), na qual uma profusão de linhas amarra bocas, sexo e pés de mulheres em conflito, prestes a se transformar.
Anos mais tarde, em Assentamento (2013), Paulino manipula a fotografia de uma mulher nua registrada para fins científicos. A autoria do arquivo original é de Auguste Stahl, fotógrafo franco-suíço que realizava registros de negros e negras para cientistas europeus no século XIX. A artista fragmenta e recompõe as partes do corpo da retratada através de corte e costura, e acrescenta raízes brotando de seus pés, fazendo-nos refletir sobre a resistência e o legado desses antepassados. São cortes, “suturas”, como diz a artista, intervenções cirúrgicas no arquivo histórico. Fabiana Lopes, uma das pesquisadoras de sua obra, diz tratar-se da “presença insistente daqueles que deveriam ter desaparecido”. Paulino revela algo que teima em sobreviver apesar das violências, e a suposta neutralidade da ciência vai dando a face de seu racismo.
Em Atlântico vermelho (2017), vários recortes de tecido também são unidos pela prática da costura, e o procedimento de manipulação de imagens históricas permanece, agora com as faces negras ocultas, tornando o corpo um organismo sem identidade. Há ainda um fragmento de azulejo português, vestígio e testemunho da colonização em nosso território. O título da obra, por sua vez, tem origem no conceito “Atlântico Negro”, criado pelo historiador Robert Farris Thompson e desdobrado pelo sociólogo Paul Gilroy. Para Gilroy, o Atlântico Negro versa sobre uma diáspora africana que não se circunscreve às fronteiras étnicas ou locais, mas constitui uma rede transnacional de fluxos, trocas e resistências culturais. Na versão de Paulino, no entanto, o vermelho que substitui o negro reforça a violência por trás dessas trocas, aproximando-nos da experiência do corpo, do sangue e da brutalidade. Mais uma vez, toda imagem torna-se corpo.
Série Assentamento, impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado, madeira, paper clay e vídeo. Dimensão variável, 2013. Imagem: Claudia Melo/Reprodução
Se a fotografia é uma espécie de índice de algo que ficou no passado, memento mori por excelência (Susan Sontag dizia, por exemplo, que fotografar alguém é participar de sua mortalidade, capturá-la, encenar um jogo de poder), Paulino atua submetendo as imagens a um processo de transformação, tornando-as ativas através da manipulação da costura, do corte, da colagem e da gravura.
No movimento de aproximar o que é considerado íntimo e emocional – como seus arquivos pessoais –, do que é supostamente imparcial e técnico – os registros da ciência –, a obra afirma a construção da experiência e da memória coletivas a partir de vivências reais, ao invés de reiterar imagens ditas oficiais, elaboradas por projetos de poder.
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Março de 2020. Sidney, Austrália*. O mais importante museu público da capital – a Art Gallery of New South Wales – recebe parte da nova edição da Bienal de Sidney, que de dois em dois anos se espalha por vários equipamentos culturais locais. Ali, numa sala avermelhada e suntuosa, 10 desenhos novos de Rosana Paulino convivem com pinturas clássicas de outros séculos. Se as obras ao redor manifestam vez ou outra ícones da mitologia e do pensamento greco-romano, tão persistentes na História da Arte ocidental, os desenhos de Paulino apresentam figuras inspiradas nas qualidades de Oyá, ou Iansã – mulher-animal, orixá de matriz africana.
Trata-se de duas séries – Búfalas e Jatobás – desenvolvidas na sequência das Senhoras das plantas, e que buscam apresentar atributos das mulheres negras, não contempladas pelos arquétipos ocidentais. Enquanto as Búfalas são mulheres mais jovens, guerreiras, independentes e donas de sua própria sexualidade, as Jatobás, cujo nome refere-se à árvore centenária brasileira, são mulheres mais velhas, com sabedoria acumulada pela experiência.
Atlântico vermelho, impressão digital sobre tecido, recorte, acrílica e costura, 127 x 110 cm, 2017. Imagem: Claudia Melo/Reprodução
Através de uma gravação de áudio enviada pelo WhatsApp, Paulino conta que esses desenhos são um passo adiante na sua produção. Se, nos primeiros trabalhos, as complexidades raciais apareciam de maneira mais urgente, refletindo sobre a representação do corpo negro e as violências que o acometem, a artista acredita que os desenhos recentes sejam mais arquetípicos e subjetivos, abrindo espaço para outras mitologias e ficções. “Me interessa pensar na possibilidade de um arquétipo que dialogue com as mulheres brasileiras, vindo de uma matriz africana. Eu sou filha de Ogum com Iansã, não entro em nenhum arquétipo ocidental, não me encaixo nesses padrões”, explica.
Embora acredite não se encaixar nos padrões ocidentais, Paulino vem abrindo caminho para uma nova geração de artistas afrodiaspóricos que ganha cada vez mais espaço nas instituições no Brasil e no mundo. Nesse percurso, também se têm multiplicado as reivindicações por presenças mais diversas no meio da arte em geral. Afinal, por muito tempo ser artista significou distinção social, refletindo privilégios de classe, raça e gênero.
Série Búfalas, aquarela e grafite sobre papel, 65 × 50 cm, 2020
Série Jatobás, aquarela e grafite sobre papel, 65 × 50 cm, 2020.
Imagens: Reprodução
Em consonância com esse cenário, em dezembro de 2018, a Pinacoteca do Estado de São Paulo realizou uma grande retrospectiva da artista, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery. Eram mais de 130 obras produzidas entre 1993 e 2018, com linguagens das mais variadas. A mostra fez tanto sucesso, que acabou sendo levada para o Museu de Arte do Rio no ano seguinte, atraindo grande público. Na noite de abertura, dezenas de jovens aplaudiam efusivamente a fala da artista, enxergando na sua postura e trajetória um outro referencial de produção. Vez ou outra, quando Rosana era interrompida, alguém gritava: “A gente quer ouvir ela falar!”.
Falando com “todas as implicações”, como queria Lélia Gonzalez, a obra de Rosana Paulino leva adiante o legado de outras milhares de mulheres negras que constroem diária e anonimamente a história do Brasil. Como lição de sua pesquisa, ressoa a necessidade de que os sujeitos sejam autoridade de sua própria narrativa. A caminhada é longa e contínua, e não tem volta.
POLLYANA QUINTELLA, curadora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Colabora com pesquisa e assistência de curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR).
* Aberta em 14 de março e com previsão para fechamento apenas em 8 de junho, a 22ª Bienal de Sidney – Nirin foi fechada 10 dias depois de sua inauguração, em decorrência da pandemia da Covid-19, ficando disponível para visita virtual através do seu site https://www.biennaleofsydney.art/.