RISE, still. HD, cor, som, 21’, 2018. Fotos: Divulgação
Tira-se dessas pessoas a cidadania igualitária, mas isso não os impede de suprir esse tratamento com formas de luta. Ao contrário do gangsta style norte-americano, aqui, as apresentações de spoken word (palavras faladas, recitadas), rap e hip hop apontam um modo de lidar com uma economia que nada lhes devolve em troca da ausência desse reconhecimento cidadão. As letras oferecem uma narrativa de autoestima, integração e comunidade. Um dos 30 artistas que se apresentam no vídeo, uma jovem de 14 anos, fala que “the history is not my destiny” (“a história não é o meu destino”), porque uma história de opressão não necessariamente significa um futuro de violências. Os assuntos abordados por esses artistas são variados, como são diversificadas as questões trazidas por brancos, quando criam as suas músicas. A indústria também se faz presente nessa produção artística, assim como acontece nos universos do brega, do Schlager e da música gospel.
No filme Estás vendo coisas, que a dupla apresentou em 2016, há uma narrativa sutil que nos mostra objetos, gestos e cenários de estrelas da música brega no Recife. Naquele ambiente, o capital que faz girar a economia ganha materialidade nas paredes de som, nas luzes, no boné em que se vê escrita a palavra money, nas correntes grossas e douradas, nos shorts, nos saltos, nos óculos espelhados. Ali circula, através de uma emulação (ou ilusão), a que o título da obra alude tão bem, um capital que só é valorizado em um ambiente social específico. Apesar de não ter valor universal, como nunca teve o capital (nem em sua forma dinheiro como conhecemos hoje), isso não impede que, naquele contexto específico, ele possa mover uma estrutura.
Ainda do ponto de vista econômico, quando se retira de uma classe social específica a capacidade de se ver representada como digna de valor, surge uma substituição da falta. Põe-se nesse lugar vazio um novo objeto – e ele pode assumir diferentes formas capazes de atender, economicamente, a demanda. Nem toda luta por reconhecimento se dá através das reivindicações políticas claras: visibilidade social, valorização de um repertório cultural específico ou redistribuição epistemológica da voz. A luta por se ver representado como digno de valor também pode se fazer através de um movimento que “vê coisas” onde elas não estão exatamente. A batalha por se ver reconhecido, ainda que dentro de certos esquemas ideológicos, assume muitas formas, variadas o suficiente para afirmamos que o objeto que substitui a falta pode ser um Frankenstein de desejos.
Bye Bye Deutschland!, still. HD, cor, som. 20’, 2017. Fotos: Divulgação
Ao mesmo tempo, ao emular algo que não se é, a dança criativa expõe ao ridículo a própria performance daquilo que supostamente se é. É como se a imitação da ostentação evidenciasse o ridículo que é a própria ostentação. Estás vendo coisas problematiza as próprias coisas que se veem: a riqueza material como forma de atribuição de valor humano, o dinheiro que se acumula sem resolver o problema da precariedade, a Land Rover que é o critério único de valorização do homem que a possui. O ideal de autorrealização tal qual é encorajado pelo capitalismo em sua fase neoliberal é problematizado ao mesmo tempo em que se busca viver de acordo com ele. Aqui, o brega se mostra como expressão cultural capaz de responder a uma condição da economia.
O day-dreaming, o sonhar acordado coletivo que dá conta imaginariamente de um problema de realidade, também se encontra em outros vídeos de Bárbara Wagner & Benjamin de Burca. Em Terremoto Santo (2016), por exemplo, veem-se diversas performances musicais de evangélicos de uma classe social mais baixa no Brasil. A natureza idílica na qual os artistas se situam, a atmosfera de elevação espiritual, a limpeza, a maquiagem e a polidez das roupas também parecem querer livrar os artistas ali situados da pobreza e da precariedade que sempre se denuncia como que “sob os seus poros”. Por mais que ali se construa um cenário elevado, no qual a natureza calma entra em harmonia com colunas gregas imersas literalmente nas águas de um rio, o que movimenta esse tipo de economia é um problema de realidade. O problema da realidade como capital principal. Por isso que é preciso ver coisas para dar conta de uma realidade a partir da qual não é possível mais ver algo. Por isso que a imaginação se torna uma terapia para o problema da precariedade. É preciso ver coisas, então, para vivê-las.
No vídeo Bye bye, Deutschland! Eine Lebensmelodie, vê-se o mesmo day-dreaming coletivo capaz de movimentar uma economia distinta na Alemanha. A indústria da música Schlager pode ser vista nas interpretações de dois cantores da cidade de Münster, que se tornaram conhecidos por fazerem covers de vozes importantes do gênero no passado. Enquanto Markus se tornou conhecido pelos tributos no Youtube ao cantor Udo Jürgens, famoso por introduzir a música francesa no Schlager, a cantora Steffi frequentemente performa o repertório de Helene Fischer, um ícone que introduziu o gênero no pop global. Além de ser cantor, Markus trabalha como jornalista em um periódico mensal em Münster. Embora seja difícil definir o significado desse estilo musical, basicamente a imagem pública do Schlager é associada com um universo exótico de terras distantes, letras simples e repetitivas, um imaginário nacionalista ou de um forte sentimentalismo.
Terremoto Santo. HD, cor, som, 19’, 2017
Ainda que, no caso da Alemanha, a questão da pobreza não cumpra mais papel central na fundamentação deste day-dreaming coletivo – não seja mais o capital que move uma economia paralela de gestos, objetos e cenários –, o que também podemos ver em Bye bye, Deutschland é como o capitalismo acaba incentivando o sonho de viver uma vida especial. É preciso ter o brilho e a fama que as vidas ordinárias não nos oferecem, por isso que ser um cantor Schlager é mais especial do que ser um simples jornalista ou uma mera cantora de conservatório. Mais uma vez, o que vemos é uma problematização sobre a fissura entre ideal de vida e vida real, entre norma e efetividade, entre o que se gostaria ser e o que se é. Por isso é preciso ver coisas.
De Faz que vai (2015) aos trabalhos posteriores, o tom muda. Desde o primeiro trabalho da dupla, permanecem as questões do corpo, da música, da performance e da representação, mas também dos saberes populares, da cultura como economia, da invenção e reinvenção de um grupo social. No entanto, nas criações pós-Faz que vai, o que parece acontecer é uma acentuação da crítica. Através de estratégias de filmagem que expõem a própria construção cinematográfica, como o registro cenográfico da própria filmagem, do pós e do pré-cena e daquilo que deveria estar fora de uma representação realista (a quarta parede aqui cai muitas vezes), fica evidente o caráter construído da cena. Nesse sentido, as criações de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca evidenciam a ficção do objeto, o caráter produzido do capital, o movimento improvisado, mas necessário, de todas as economias que querem suprir a presença incômoda daquilo que falta.
BÁRBARA BURIL, jornalista, doutoranda em Filosofia pela UFSC e mestre em Filosofia pela UFPE.