Curtas

Museu de Arte Negra – segundo ato

Em parceria com o Ipeafro, Inhotim (MG) inaugura inaugura a exposição 'Dramas para negros e prólogo para brancos', segunda parte da exposição sobre Abdias Nascimento

TEXTO MARIANA OLIVEIRA, DE BRUMADINHO*

01 de Julho de 2022

Aguinaldo Camargo e Fernando Araújo na montagem de 'Imperador Jones', pelo Teatro Experimental do Negro, em 1945

Aguinaldo Camargo e Fernando Araújo na montagem de 'Imperador Jones', pelo Teatro Experimental do Negro, em 1945

Imagem Acervo Abdias Nascimento – Ipeafro

[conteúdo na íntegra | ed. 259 | julho de 2022]

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Era 1941, o artista, dramaturgo, pesquisador e militante Abdias Nascimento (1914–2011) cruzava a América do Sul numa viagem com o grupo Santa Hermandad Orquídea, fundado 11 anos antes com seus amigos poetas. Naquela ocasião, no Peru, o coletivo assistiu ao espetáculo Imperador Jones, de Eugene O’Neill. Na montagem, o personagem principal, que era negro, era representado por um ator branco com uma blackface – situação que se repetia também nos palcos brasileiros. Àquela altura, Abdias já cultivava o desejo de criar um grupo que levasse negros e negras aos palcos, como protagonistas e não mais como personagens caricatos. Assim, surgia o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944.

Para a estreia do grupo, Nascimento escolheu montar Imperador Jones. Antes, escreveu ao autor pedindo autorização. Recebeu sua resposta, meses depois, em dezembro de 1944. Nela, O'Neill escreveu: “Eu conheço muito bem as condições do teatro brasileiro que você descreveu. Nós tivemos exatamente o mesmo problema em nossos teatros antes do Imperador Jones ser montado em 1920, em Nova York – partes de qualquer peça eram sempre feitas por atores brancos com blackface. (...) Depois do Imperador Jones ter sido montada originalmente por Charles Gilping e depois por Paul Robenson, e fazer um grande sucesso, o caminho estava aberto para os negros atuarem em sérios dramas em nossos teatros”. Em maio de 1945, o TEN fazia sua estreia com o espetáculo, sendo seu elenco formado por atores negros.

É o TEN e sua profícua trajetória que puxa o fio do segundo ato da parceria entre o Instituto Inhotim e o Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros), que pretende trazer o Museu de Arte Negra (MAN) para dentro da instituição, através de uma série de ações que vão seguir até o final de 2023. Se, no primeiro ato, que entrou em cartaz no Inhotim em novembro de 2021, o foco foi apresentar o MAN e uma exposição que fazia a relação entre os trabalhos de Abdias Nascimento e os de Tunga (artista que possui obras dentro do acervo do instituto), desta vez, com Dramas para negros e prólogo para brancos, o objetivo é mostrar um pouco do contexto que antecedeu o surgimento do Museu de Arte Negra.


Instalação Birutas, de Arjan Martins, que usa na obra elementos de
comunicação marítima.
Imagem: Brendon Campos/Divulgação

O Teatro Experimental do Negro foi um marco fundamental para as artes cênicas nacionais no sentido de promover e valorizar a identidade negra e todos os valores da cultura de matriz africana. “Na rota dos propósitos revolucionários do Teatro Experimental do Negro, vamos encontrar a introdução do herói negro com seu formidável potencial trágico e lírico nos palcos brasileiros e na literatura dramática do país”, afirmava Abdias Nascimento. O objetivo do grupo ia além dos palcos, pretendia criar um lugar para a cultura negra no país. O TEN atuou como uma grande rede de articulações e ativismo, com um engajamento social, que propunha, entre outras coisas, a alfabetização de pessoas negras e a candidatura de negros à política.

Na esteira desse processo, iniciado no teatro, surgiu o Museu de Arte Negra, em 1955. “Essa segunda parte do projeto apresenta a atuação do TEN, que é uma das bases do MAN, criado também pelo Abdias Nascimento. Esta é uma exposição bastante documental, com muitas imagens e muitos registros que contextualizam toda a trajetória do Abdias e tudo que ele criou durante sua atuação, reverberando seu pensamento contra uma hegemonia eurocentrista e resgatando a ancestralidade africana como base para a cultura brasileira”, detalha Deri Andrade, um dos curadores da mostra.

A exposição abre ao público a partir de uma pintura do próprio Abdias que invoca Oxóssi, orixá das matas e do conhecimento, numa proposta de reflexão a respeito das religiões afrodiaspóricas como maneira de conhecer e apreender o mundo. A partir dessa obra, apesar da existência de uma cronologia, dois caminhos se apresentam, dividindo a Galeria Mata em dois lados por uma espécie de flecha. Em um deles, o contexto social, os encontros, as viagens, as manifestações e os congressos que discutiam o teatro, a arte e a cultura negra naquele período. Do outro, obras que espelhavam aquela realidade e fazem parte do acervo do MAN, tanto do próprio Abdias como de outros artistas, tais como Anna Bella Geiger, Heitor dos Prazeres, Iara Rosa, José Heitor da Silva, Sebastião Januário, Octávio Araújo e Yêdamaria.

Ainda nessa parceria entre Ipeafro e Inhotim, estreiam obras e projetos. Entre eles, a Biblioteca Inhotim, que pretende convidar artistas para ativar o espaço por períodos determinados. Jaime Lauriano inicia o projeto. Sua proposta questiona a transmissão de conhecimento de maneira horizontal e hierarquizada. Sem estantes ou prateleiras, sem catalogações, a biblioteca imaginada por Lauriano é um espaço de troca, de círculo de conversas, numa referência à importância das narrativas orais. No acervo, mais de 500 livros de autores negros e negras. A proposta de Lauriano ocupará a biblioteca por um ano e meio e, nesse período, novas obras serão adquiridas. “Vamos também editar um livro que compile as histórias das comunidades que vão passar por aqui e que ainda não tiveram registro impresso”, adianta o artista.

A Galeria Praça, por sua vez, apresenta Looking for Langston, de Isaac Julien, que fez parte do Sankofa Film and Video Collective. Na obra, ele apresenta o universo do poeta, ativista social, romancista, dramaturgo e colunista afro-americano Langston Hughes (1902 – 1967) e seus colegas artistas e escritores negros que formaram o Renascimento do Harlem. “Em 1954, Langston Hughes trocou correspondências com Abdias Nascimento, autorizando o Teatro Experimental do Negro a encenar suas peças. Nesse sentido, Hughes, Abdias e Isaac Julien, cada um à sua época, buscavam representatividade e reconhecimento da produção artística e intelectual negra”, salienta Julieta González, diretora artística de Inhotim.

Dentro do projeto Acervo em movimento, mais novidades. Na instalação Birutas, o carioca Arjan Martins juntou dois elementos de comunicação: bandeiras náuticas e birutas, ambas utilizadas na comunicação marítima. O artista escolheu cinco entre as 26 bandeiras náuticas existentes e as transformou em birutas. Na junção de símbolos e elementos comunicacionais criados por ele, Arjan levanta reflexões sobre as diásporas causadas pela ação colonial, o trânsito de corpos pelos oceanos e o tráfico de pessoas escravizadas. O terceiro ato do projeto Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra (MAN) deve acontecer em novembro deste ano.

MARIANA OLIVEIRA, jornalista e editora assistente na Continente.

*A jornalista viajou a convite do Inhotim (Brumadinho/MG).

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