Falar sobre e a partir do Nordeste foi uma escolha que se firmou já nas primeiras produções de Jonathas de Andrade. O artista alagoano radicado no Recife, onde vive há duas décadas, se consolidou como um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira, com seu trabalho exibido em vários países e em alguns dos principais eventos da área, como a 59ª Bienal de Veneza, em que apresentou, até 27 de novembro, a instalação Com o coração saindo pela boca. Esse trabalho, assim como sua obra de uma forma geral, convoca o público a refletir sobre temas estruturais da cultura e da sociedade brasileira, como as relações de poder herdadas da colonialidade, que se mantêm da linguagem à economia.
Na instalação imersiva apresentada na cidade italiana, ele criou esculturas em grande escala que partem de expressões populares que utilizam partes do corpo para expressar sensações por vezes difíceis de descrever. Ele optou por não traduzi-las – e o que essas imagens evocam para plateias da Europa e outras partes do mundo também é parte do seu interesse artístico. Partir do local para acessar o universal, ou mesmo ser incompreendido em seu sentido original e criar novos. O lúdico e a fabulação estão imbricados no seu fazer artístico.
Esse interesse pelo povo brasileiro, suas dinâmicas e contradições, é um dos principais aspectos da sua poética. Ele não abre mão de apresentar a complexidade do tema, partindo de processos colaborativos para propor jogos que, como ressalta, não tentam resolver os problemas, mas evidenciá-los. O encontro com o outro, o tensionamento entre o real e o ficcional, a reapropriação de símbolos marcantes da iconografia nacional, especialmente do Nordeste, inserem sua produção em um trânsito constante de geografias e significados.
Num momento em que o desmonte das políticas culturais atinge um estado crítico, ele enfatiza que sua carreira só conseguiu germinar por conta do ambiente político e social em que surgiu, no final dos anos 2000. Agora, aos 40 anos, 15 dos quais dedicados a uma produção intensa, Jonathas tem revisitado essa caminhada, o acervo criativo, identificando com mais clareza temas e procedimentos que construíram sua obra. Essa revisão teve início no isolamento da pandemia e se concretiza com a exposição panorâmica O rebote do bote, inaugurada em setembro na Pinacoteca de São Paulo e aberta à visitação até fevereiro, e numa retrospectiva programada para inaugurar em março, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife.
Ainda que esteja conectado com o passado (interesse que se apresenta também em seus trabalhos), Jonathas opera em um tempo tríbio, mantendo-se atento às questões e urgências do presente e aberto às possibilidades do que virá. No seu caso, o porvir já se desenha intenso, com projetos nacionais e internacionais programados para os próximos meses. Em entrevista à Continente, concedida em seu apartamento no Recife, ele fala sobre sua carreira, a importância do Nordeste em sua obra, sobre fazer arte no Brasil, entre outros temas.
Instalação Com o coração saindo pela boca na Bienal de Veneza deste ano.
Imagens: Jonathas de Andrade/Divulgação
CONTINENTE Jonathas, como foram esses dois últimos anos para você? Como a pandemia o atravessou no seu nível pessoal e profissional?
JONATHAS DE ANDRADE Na verdade, como todo mundo, foi um tempo de revisão. Comecei a produzir em 2008 e muita coisa aconteceu. Foi um momento de parar, de rever as ideias antigas. Mudei-me para o apartamento em que vivo hoje e muitas coisas estavam encaixotadas, então comecei esse processo de abrir e reencontrar esses trabalhos, pensar para onde vai meu trabalho, como eu estava respondendo e transitando durante todo esse período. Foi uma hora meio puxada de interiorização, mas muito necessária. Estava com esses convites para mostrar meus trabalhos fora do país, o que era uma coisa que me deixava meio pensativo, porque me dava uma certa sensação de desconexão. Ao mesmo tempo em que eu vivo e produzo desde aqui, do Nordeste, do Brasil, da América Latina, me dava a sensação de um certo estar fora, sabe? É um privilégio gigante poder produzir assim e não precisar sair do Recife, do Nordeste. De algum jeito, o meu trabalho foi se configurando para isso ser possível, trabalhando com galerias, as instituições me procurando, mas podendo me preservar, estando aqui e falando desde aqui.
Mas, ao mesmo tempo, como estou viajando muito, às vezes sinto falta de conexão até com a cena mais local, nacional, porque eu também não estou em São Paulo, que é onde as galerias e exposições bombam. Então, é uma sensação curiosa, de uma certa reclusão, o que acho que tem muito a ver, porque estou no meu universo, ao mesmo tempo em que estou muito exposto através do meu trabalho. Então, a pandemia foi um momento de pensar em tudo isso, em como essas conexões afetivas, pessoais, familiares, acontecem. Fiz 40 anos, então naturalmente também é um momento de repensar que esse primeiro fôlego juvenil de colocar energia no trabalho aconteceu – e como aconteceu – e para onde ele está indo. Como se desenham os próximos cinco, 10, 20 anos?
Acho que foram reflexões partilhadas por muita gente. Pensei muito em como o trabalho está lidando com essas questões, como as ferramentas, as visualidades, os assuntos, as estratégias, ainda fazem sentido ou de que forma eles podem ser reexperimentados. Esse jeito de lidar com a ficção e o documento, como eu brinco e costuro isso; como a ideia de um personagem de mim mesmo está ativo para os projetos acontecerem; como a história do Brasil, suas dores e contradições emergem a cada projeto. São coisas que, algumas, reafirmei; enquanto outras eu revi, coloquei em dúvida. É um processo difícil, mas muito necessário e potente.
CONTINENTE Mesmo no contexto pandêmico e nesse processo de reflexão, sua produção continuou muito intensa, inclusive com a apresentação de vários trabalhos inéditos, entre eles Com o coração saindo pela boca, na Bienal de Veneza. Como foi desenvolver esse projeto em meio ao caos e incerteza do período?
JONATHAS DE ANDRADE O convite para a Bienal de Veneza veio através de Jacopo Crivelli Visconti (curador da 34ª Bienal de São Paulo). Foi uma honra gigantesca, daqueles convites que você cai para trás, não espera. Foi um desafio gigantesco, porque a ideia era fazer um projeto novo e era pouco tempo, oito meses antes da abertura. Eu ainda estava executando a exposição para o Foam Museum, em Amsterdã. Como trabalho muito com o espaço público, convidando pessoas para performar, foi um momento demasiadamente desafiador. Fiz Tejucupapo em um momento delicado, em um dos primeiros momentos de abertura da pandemia, com muita tensão no ar. O projeto da Bienal de Veneza partia dessa questão de como falar de um Brasil que hoje estava completamente despedaçado, que parece um pós-guerra, o Brasil de Bolsonaro. E como representar o país em um espaço público do Brasil, porque é um prédio do Itamaraty, é uma representação oficial; então, como falar em um espaço como esse? Isso já era desafiador. E como tratar dessas dores sem ser leviano, como falar de uma coletividade, mas não falar por ela. Porque não dá. A gente vive um momento de revisão de quem cria narrativas sobre as dores do Brasil, da questão do lugar de fala, então me reviso bastante sobre isso e penso sobre como a gente articula junto as coisas, como a gente pode transformar e se sensibilizar. As autonarrativas são cada vez mais urgentes. Nesse momento, como construir um projeto no Pavilhão do Brasil fazendo com que esse momento seja respeitado também? Foi um questionamento gigante que eu vivi, acelerado por esse convite, o que foi ótimo, porque acho que precisava de um pretexto para um arranque, para acelerar esses entendimentos em uma prática artística.
CONTINENTE Interessante você falar sobre essa responsabilidade de representar o Brasil neste espaço, durante a Bienal de Veneza, porque seu trabalho atravessa questões das brasilidades, em toda a complexidade do termo. Diante dessas várias dores e problemáticas que você citou, como se configurou o processo de pesquisa e desenvolvimento dessa instalação, especificamente?
JONATHAS DE ANDRADE Foi um pouco esse percurso das percepções dos caminhos que sinto que são urgentes hoje – um pouco do termômetro do hoje –, mas tentando entender também como eu me posicionaria, qual o meu papel enquanto artista. Se falo do Brasil ser multiétnico, multirracial, com várias gentes, vários povos, ao mesmo tempo em que vivemos um genocídio indígena, o escancaramento do genocídio da população negra, preciso falar também de que forma os poderes não são ocupados democraticamente, como deveriam, por essa população plural. Então, como falar ao mesmo tempo disso, que é a grande contradição, já que meu trabalho atravessa o político, e também utilizar a ideia de jogo, que eu gosto. A gente já vinha de uma espécie de energia desmobilizadora, adormecedora, de uma melancolia gigante das mortes da pandemia a todas as atitudes cotidianas do governo Bolsonaro. Eu coleciono muitas coisas, de imagens, cadernos, objetos, imagens, frases, e vinha com algumas destas que achava títulos potencialmente curiosíssimos, que eram “nó na garganta”, “com o coração saindo pela boca” e “a boca do estômago”. Se a gente pega literalmente essas palavras, elas têm algo de absurdas, ao mesmo tempo em que eram imagens fantásticas que partiam do corpo para falar de sensações que são muito difíceis de precisar. O uso dessas expressões se conecta com um campo de questões pessoais e, às vezes, sociais, políticas. Aí fui tentar entender o que havia de curioso nessas figuras de linguagem – comecei a buscar e vieram várias delas. Então entendi que era sobre o corpo brasileiro que precisava falar, esse corpo plural, adoecido, comprimido.
CONTINENTE Sobre essa retomada do corpo quando, nos últimos anos, e principalmente por conta da pandemia, a gente está cada vez mais ligado à virtualidade, à ausência do corpo como matéria.
JONATHAS DE ANDRADE Exatamente. Então, parte desse lugar de falar sobre o nosso corpo, suas impossibilidades e dores, e o corpo do Brasil, através da linguagem, que é manifestada em uma língua herdada da colonização, com as marcas dela, mas também com o oxigênio do uso vivo da língua. Essas expressões são atualizadas e persistem por várias gerações porque elas continuam fazendo sentido para o que é vivido cotidianamente. Isso para mim era de uma força impressionante para falar da força da coletividade, de como aquilo que era linguagem, falava sobre esse Brasil tão complexo, do mesmo corpo que se apaixona e sofre de amor, mas que também sofre porque uma casa é removida, porque um ente morre por conta do fascismo que nos ronda; o corpo que sofre pela luta pela memória. O bonito, para mim, é que essas expressões podem atirar para algo trágico ou leve, saboroso. Também tem a ideia do corpo agigantado. Na minha infância tinha a Boneca Eva, que era um parque que se montava em estacionamentos, e eu entrei dentro desse corpo, no qual você via como funcionavam a língua, os dentes, o coração, o bebê que estava sendo gestado por ela. A ideia daquele absurdo agigantado, assim como as metáforas são hiperbólicas, era conhecer o corpo, maximizar e estudar, a partir do corpo, com essa ficção da ciência, chegar no que está por trás desse corpo, que é o sensorial, as dores, o corpo sutil, achei que podia ser muito mágico, além de lidar com um repertório do Carnaval, da alegoria. Tanto que, inicialmente, queria fazer o projeto com carnavalescos. Cheguei a falar com Silvio Botelho (criador de bonecos gigantes) para fazermos essas orelhas em Olinda e levar para Veneza. A gente chegou a fazer uma maquete, mas não foi possível por conta do orçamento, então a ideia foi trabalhar com um escultor de lá que trabalha com o Carnaval de Veneza. O pavilhão começar com uma orelha e terminar em outra, a partir da expressão “entrar por um ouvido e sair pelo outro”, chama, também, para pensar como as coisas têm acontecido no Brasil, dessa não reação a tudo que é explícito.
CONTINENTE Esse apreço pela palavra e pelo corpo permeia sua obra. É um interesse que sempre se apresentou para você? Como esses elementos entram no seu trabalho?
JONATHAS DE ANDRADE Eu não sei identificar com precisão, mas minha mãe é pedagoga e tem uma relação muito forte com a palavra. Não me sinto um leitor voraz, mas as coisas me capturam, como o sistema da língua, que me fascina, principalmente através da oralidade. Me interessa o jogo entre palavra e imagem, a ideia de uma narrativa, de como contar uma história, que às vezes é começo, meio e fim, em outras é só o estilhaço, tem várias entradas. Isso também tem a ver com minha relação com o cinema, acho. Projetos como Educação para adultos é uma costura de palavra e imagem. O meu tropeço com Paulo Freire tem a ver com essa relação. A ideia do jogo como pretexto para convidar quem vem ver o trabalho, mas também no processo criativo, com a criação de uma regra, seja ao criar uma corrida de cavalos no centro do Recife ou um ritual dos pescadores de abraçar os peixes. Fazer daquilo uma ficção possível no cinema, mas, ao mesmo tempo, aquilo vira uma experiência para os pescadores porque, quando eles estão ali, vivenciam com o corpo e tudo acaba se transformando em uma performance para eles. Representar, fazer uma cena, que ao mesmo tempo é vivida, pois não tem ensaio.
CONTINENTE Esse olhar para a sua própria obra, que você já disse ter sido acentuado pelo isolamento da pandemia, também ganhou força com sua primeira exposição panorâmica na Pinacoteca de São Paulo. Ao fazer essa retrospectiva, que outros temas você identificou, além dos já citados, como o interesse pelo jogo e a relação entre palavra e imagem?
JONATHAS DE ANDRADE É muito legal como os projetos, de algum jeito, nessa costura de interesses, vão puxando coisas que me surpreendem, que são magnetismos meus que muitas vezes eu não reconheço. Acho que essa exposição da Pinacoteca, pensada junto a Ana Maria Maia (pernambucana que assumiu o cargo de curadora-chefe da instituição), que é uma amiga e acompanhou meu processo desde o início, tem um pouco esse papel de esclarecer ou, na verdade, de sublinhar, entender esses mecanismos que muitas vezes correram tão espontaneamente que, agora, ao ver os projetos lado a lado, me fez entender que, sim, tem a coisa com a palavra, com o homem-bicho, com o erótico, que às vezes é assunto, às vezes é magnetismo, desejo, tesão, uma energia desestabilizadora para alguns e, para outros, catalisadores. Esse não dito, que também brinca com uma espécie de tabu cultural, está sempre flertando com tensionar os estereótipos, como o da exuberância brasileira do corpo e da sexualidade. Lidar com isso me dá muito prazer, porque são coisas que estou tentando reformular dentro de mim, me colocando como uma célula de uma história, que vem cheia de contradições. O papel do artista que abre trilhas para novas utopias é um lugar em que eu não me reconheço muito. Estou mais interessado em experimentar relações que muitas vezes instauram um debate ou abrem campos poéticos – que aí podem chacoalhar nossa sensibilidade.
Montagem de Museu do Homem do Nordeste, na Pinacoteca de São Paulo, 2022.
Foto: Emanuel da Costa/Divulgação
CONTINENTE No começo da conversa, você falou sobre uma certa sensação de desconexão por trabalhar e falar desde o Brasil e, ao mesmo tempo, ter a sua produção apresentada com mais frequência fora do país, como é o caso de Batalha de Tejucupapo, exibida na Holanda, país que permeia o imaginário pernambucano devido ao período em que invadiu e explorou o território (1630-1654), ou mesmo Portugal, onde você deve apresentar seu trabalho em breve. Como você percebe a recepção dessas obras que falam tão profundamente de nossas questões, inclusive das marcas da colonização, nesses lugares?
JONATHAS DE ANDRADE Estamos refletindo sobre nossa história, ao mesmo tempo em que o pós-colonial está batendo à porta, com todas as complexidades que nos responsabilizam também sobre ecoarmos uma naturalização de uma história perversa. Acho que, no caso dos países europeus, me parece existir um esforço que já parece assentado, de uma devolutiva que também tem uma caixa, uma reparação, mas que está ali de uma forma que eu não sei o quanto se reflete em constrangimento ou em políticas reparatórias. Não sei como isso se reflete com os fluxos de imigração que são retornos dessa colonização. Mas, do ponto de vista dos museus, percebo que é um ponto de interesse, como no caso do Museu de Amsterdã, que estava interessado no fato de eu morar no Recife, onde teve a Mauritsstad, a Cidade Maurícia, e de falar sobre esse capítulo que é desconhecido por muitos holandeses. Quando eu soube das mulheres de Tejucupapo conduzindo essa encenação há 30 anos, fiquei besta. Então tive a ideia de fazer disso uma espécie de ensaio fotográfico teatral para, ao invés de documentar o que elas fazem, elas encenarem para a câmera. A expografia tem um totem de nove metros, que é uma espécie de castelo de cartas, além da coleção de objetos delas, que contam sobre a batalha do cotidiano dessas mulheres, versus o Teatro das Heroínas de Tejucupapo, que conta o evento de como elas derrotam os holandeses. Dona Luzia (uma das participantes) fala que a luta não é contra os holandeses, mas contra a fome, o que sobrou disso. É fantástico como essas histórias podem inspirar atuações poéticas de resistência. Além da reparação da Europa com a América Latina, é preciso que a gente olhe para dentro. Tem uma bomba aqui que faz com que a vida seja muito segregada.
CONTINENTE Quando falamos em decolonialidade, estamos nos referindo não só a esse confronto e questionamento dos poderes externos, mas também como perpetuamos essas relações opressoras, não é? Como somos responsáveis pela manutenção dessa mentalidade colonial – e quem é mais afetado por ela.
JONATHAS DE ANDRADE Isso é a coisa mais chocante do momento: que o Brasil Colônia está dentro da gente. Acho que é a ficha que está caindo mais amplamente nesta década. Essa mentalidade persiste perversamente no nosso coração. Então, a grande batalha é desconstruir uma série de naturalizações que nós temos. É uma reflexão central para todos nós e um desafio para quem pensa as poéticas como artes visuais, cinema, literatura – tudo.
A batalha do todo dia de Tejucupapo, 279 imagens impressas em falconboard cru, vários tamanhos e texto em adesivo vinílico na parede. Foto: Emanuel da Costa/Divulgação
CONTINENTE Sobre o contexto em que vivemos, ele é completamente diferente daquele no qual você começou sua produção artística. Era 2008, no início do segundo mandato de Lula, e havia um sentimento de esperança em relação ao Brasil, inclusive no que diz respeito às políticas de fomento à cultura. Em que medida você sente que aquele momento histórico influenciou seus primeiros passos na arte?
JONATHAS DE ANDRADE Pude me tornar profissionalmente artista por conta de um Brasil com políticas públicas para as artes visuais, para o cinema, para a cultura. Um Brasil que tinha um Ministério da Cultura atuante, que tinha espaço para exposições, que fazia editais. Participei de vários programas de jovens artistas que foram fundamentais para que eu conseguisse me sustentar em um primeiro momento, tivesse motivação e fosse apresentado para um meio que é muito competitivo e fechado. Eu sou de Maceió, estudei Direito em Florianópolis, larguei o curso e, em 2002, vim para o Recife para estudar Comunicação. O Recife era um caldeirão identitário, cultural e social. Tem várias veias que passam por esse coração recifense, que é uma cidade muito desafiadora. Demorou anos até eu entender as lógicas do mercado da arte, que é ainda mais fechado, sobretudo para quem está fora do eixo Rio-São Paulo. Eu sou fruto dessas políticas para a cultura e de um governo de esquerda que, desde 2002, vivia um momento muito propício.
CONTINENTE Por falar na sua relação com a capital pernambucana, queria lhe perguntar: por que o Recife? Diante das dificuldades já citadas por você em relação ao mundo da arte, de estar fora do eixo Rio-São Paulo, o que lhe atraiu a se manter na cidade?
JONATHAS DE ANDRADE Eu fiz meus melhores amigos aqui; minha família escolhida. Fiz dessa cidade a minha casa. Sinto falta do mar de Maceió, que é diferente do daqui, inclusive na relação da cidade com a praia – que no caso do Recife é conflituosa. Mas, eu me atraio pelo conflito. O meu trabalho é muito alimentado através daqui. Este misto de precariedade, informalidade, permite um cara a cara que fez possíveis trabalhos que só acontecem por refletir esse estado das coisas que o Recife tem e que, ao mesmo tempo, é muito nordestino. Por exemplo, a corrida de carroças no meio da cidade. Isso é belo, ao mesmo tempo em que é perverso – e a ambiguidade para mim é uma das grandes belezas e um grande dispositivo para pensar a nossa existência. Estar no Recife e falar desde aqui sobre questões universais fez sentido e tem se confirmado. Acho que, ao falar do extremamente local, a gente chega em contradições humanas. Contar com o repertório de quem vê os trabalhos e que muitas vezes projeta fantasias românticas sobre o Brasil tropical, seja essa pessoa de outra região do país ou estrangeira, também faz parte do jogo. Mas, voltando à questão da cidade, apesar de radicado no Recife, me sinto muito alagoano, que é onde acontece a minha formação de Nordeste, na infância. A relação com o mar, com a cana-de-açúcar, esses mundos diversos sempre me espantaram e interessaram, como isso era também um assunto para iconografia do Brasil. Lembro-me de ver na casa do meu avô reproduções de enciclopédia de Di Cavalcanti e hoje os Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste estão junto de pinturas como essa na coleção permanente da Pinacoteca de São Paulo, o que para mim foi uma alegria, um delírio, um desconcerto. Os cartazes também estão fazendo esse jogo de aproximar do estereótipo que é muito intenso e problemático e que aquelas pinturas exalam. Acho que meus trabalhos, mais do que corrigir, explicitam um pouco essas contradições e me colocam dentro delas.
CONTINENTE Um comentário rápido: diante dos assuntos que abordamos e dessa sua descrição do Recife, lembrei um comentário histórico sobre as revoltas ocorridas em Pernambuco ao longo do século XIX. Falava-se em uma “ardência natural dos pernambucanos”, enquanto os governistas diziam haver aqui um “maligno vapor pernambucano”. Parece ser uma ideia que dialoga muito com seu trabalho, o jogo de palavras, as contradições, relações de poder, e sua relação com Pernambuco. Faz sentido?
JONATHAS DE ANDRADE Interessante (Jonathas anota as expressões em seu celular). São expressões que têm ideias, ao mesmo tempo, de poder e desejo. A coisa dos Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste é completamente isso: fazer a imagem de poder ser também de desejo, o que é extremamente complexo. Desejo, tesão, homoerotismo, a imagem institucional do museu, a história daqueles corpos e quem sou eu que estou por trás da câmera – e como isso assina o nome de um museu que existe e foi surrupiado para aquele projeto. Havia riscos e uma consciência de que eu precisava fazer aquele projeto naquele momento ou eu não teria coragem mais para frente.
Educação para adultos, 60 cartazes emoldurados, 34 x 46 cm, 2010.
Foto: Emanuel da Costa/Divulgação
CONTINENTE Sobre esse mergulho na iconografia e nas questões do Nordeste e a escolha por se manter vivendo e produzindo no Recife, você sente em alguma medida a necessidade de produzir e circular de forma mais intensa para suprir demandas de mercado, sejam elas nacionais ou internacionais?
JONATHAS DE ANDRADE De algum jeito, o meu trabalho conseguiu uma escuta, um trânsito, mesmo eu me mantendo aqui e fazendo uso desses caminhos que São Paulo possibilita. Começar a trabalhar com uma galeria foi fundamental para a institucionalização do meu trabalho, o trânsito nas coleções, coisas que eu nem entendia direito. E o meu trabalho também foi se nacionalizando, o que foi muito importante para que eu conseguisse financiamentos, para consolidar o interesse na minha produção, inclusive aqui. É uma relação, ao mesmo tempo, que é muito frágil, porque você vai produzindo um pouco sem saber o quanto isso não é uma fase. O meu trabalho não é uma pintura que as pessoas podem colocar em casa; geralmente são instalações enormes, então eu sempre convivi com a ideia de que as coisas podem mudar. E acho que é importante lembrar isso. Mas isso não gera uma urgência de produzir no sentido de aproveitar esse momento. O que existe é a urgência das coisas que quero falar, das muitas ideias. Então, diante das oportunidades, dos convites, eu penso sobre o que está mais latente, o que mais é particular para mim, o que quero testar, e fala sobre o hoje.
CONTINENTE Dentre esses trabalhos mais recentes, produzidos durante a pandemia, está Olho da rua, vídeo gravado na Praça do Hipódromo (que leva o nome do bairro onde está localizada) e protagonizado por pessoas em situação de rua, que toca em temas muito delicados, como a falta de moradia, o direito à cidade, à cidadania. Como foi o processo de feitura dessa obra e as trocas com essa população?
JONATHAS DE ANDRADE Nasceu a partir de um convite da fundação italiana In Between Art Films, que comissiona seis projetos por ano no campo do audiovisual. Foi antes do convite para o Pavilhão da Bienal de Veneza. Nesse período, estava refletindo sobre esse período pandêmico, a volta do Brasil ao Mapa da Fome, muita gente na rua. É um projeto muito complexo e eticamente desafiador. Foi muito desafiador, mas muito lindo de fazer. Coloquei na cabeça de que seriam 100 participantes, então fui atrás de assistência social e de ONGs, tentando entender quem estaria a fim de participar. Foram apenas dois dias de filmagens e houve uma explosão de coisas. Também houve um processo de edição intenso para entender como organizar aquela experiência livre que conversa com experiências como o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, em que representar a si vira um efeito sobre tomar consciência do seu próprio lugar. Para a minha surpresa, foi uma recepção muito emocionante. O trabalho estreou em uma paralela da Bienal de Veneza porque, nesse processo, a fundação (In Between Art Films) veio também a produzir o Nó na garganta, que antes não tinha orçamento para ser executado.
CONTINENTE Mas a ideia de Nó na garganta já existia antes desse financiamento?
JONATHAS DE ANDRADE Existia o desejo de pesquisar pessoas que lidassem com a ideia de domar a natureza. Foi assim que eu fui atrás desse zoológico no qual as pessoas não tinham medo de cobra para trabalhar com esses jovens. Olho da rua, ainda que oficialmente tenha estreado em Veneza, antes de ir fiz uma exibição para os participantes para confirmar que o filme fazia sentido para eles, na maneira que foi editado. O título, que é muito forte, também lida com uma expressão do corpo e, por isso, tive uma conversa com as lideranças de pessoas em situação de rua para entender se o título seria potencializador ou ofensivo e eles disseram que era importante falar da condição. Acho que Olho da rua é muito 2022, inclusive com o momento em que as pessoas representadas falam diretamente para a câmera e expressam pedidos, desabafos, palavras de ordem e, no meio disso, aparecem muitos “Fora Bolsonaro”. Existe uma agência, delicada, claro, mas uma agência, que muitas vezes é negada às pessoas em situação de rua, e procurei ter muito cuidado com isso. Foi um aprendizado fílmico também.
CONTINENTE A colaboração com os personagens, outros artistas e com o próprio público é um elemento muito importante na sua obra, correto?
JONATHAS DE ANDRADE Meus processos são muito colaborativos. Eu assino essa autoria, mas envolvo um monte de gente, desde os primeiros projetos, como o Ressaca tropical (2009). Pessoas de design, arquitetura, música, universos que não domino inteiramente e que fazer junto é mais legal. O meu flerte com o cinema também. Na fotografia, interessa que ela vá para outros suportes: o papelão, a serigrafia (no 40 nego bom é um real), entre outros, levando-a para outros lugares que não o documental estrito é uma coisa que me interessa muito.
O peixe, vídeo em 16 mm digitalizado em 2k, 37 min, 2016.
Imagem: Frame do vídeo/Reprodução
CONTINENTE Falamos sobre sua trajetória ao longo desses últimos 15 anos e as questões que atravessaram sua obra. Em relação ao futuro, você já tem alguma perspectiva no que diz respeito a novos trabalhos?
JONATHAS DE ANDRADE Alguns trabalhos meus vão ser exibidos em outros países, como Espanha e China. Em janeiro, levo para o Museu de Arte e Tecnologia de Lisboa a exposição que estava no (Centro de Arte Contemporânea) Crac Alsace, na França, que foi elaborada com dois curadores portugueses (João Mourão e Luís Silva) com quem eu fiz os Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste, em 2012. Essa exposição reúne oito projetos atravessados pelo homoerotismo. Lá, eles também têm fundos para um projeto novo, que devo elaborar de outubro a dezembro. E também vai ter o Mamam (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife), com curadoria de Moacir dos Anjos. Estou tentando segurar a data de março. Será também uma panorâmica, mas com projetos relacionados com o fato de serem feitos no Recife ou que falem sobre a cidade. Faz muito tempo que não mostro projetos no Recife e pensei a exposição justamente por isso, também respondendo a essa sensação de que eu precisava de mais conexão com a cena local.
MÁRCIO BASTOS, jornalista, mestrando em Comunicação pela UFPE.