Portfólio

Aline Motta

Poética de memória e fabulação

TEXTO Luciana Veras

02 de Janeiro de 2020

'Pontes sobre abismos', videoinstalação e série de fotografias, 2017

'Pontes sobre abismos', videoinstalação e série de fotografias, 2017

Foto Aline Motta/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 229 | janeiro de 2020]

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Em 13 de setembro de 2019, quem circulava pelo Sítio Histórico de Olinda na quinta edição do Pequeno Encontro da Fotografia, seja como participante da oficina Fotografia e memória, seja acompanhando a palestra Me faço visível, quem me vê, talvez não fizesse ideia de que a artista visual na proa de ambas as atividades havia, menos de 24h antes, sido agraciada com uma das maiores premiações nacionais. Na noite anterior, Aline Motta fora anunciada como integrante do quinteto escolhido pelo júri do Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas, dado pela tríade CNI, Sesi e Senai e denominado assim em homenagem ao marchand pernambucano falecido em 2000. Dalton Paula, Dora Longo Bahia, Ismael Monticelli, Rodrigo Bueno e Aline foram escolhidos entre 30 finalistas. Uma fotografia capta, nesse momento de boa notícia, o sorriso cativante e o troféu na mão dessa niteroiense de 45 anos.

Poucas horas depois de receber o prêmio, ela pegou um avião, desembarcou em Pernambuco e apresentou, com a delicadeza, a profundidade e a firmeza que denotam suas interações com o público, um pouco sobre seu modus operandi, um tanto sobre sua poética visual, na qual elementos autobiográficos alicerçam uma investigação artística que se espraia em diversos suportes, articulando a fabulação no plano íntimo com o olhar para temas de extrema relevância, como a escravidão. “Falar sobre o trabalho também é um trabalho de arte, então encaro com muita responsabilidade este momento de falas públicas. Me preparo bastante para que, mesmo falando sobre temas difíceis, eu consiga ser ouvida. Ser ouvida e, ao mesmo tempo, estabelecer um diálogo são os meus maiores desafios na hora de elaborar o fio condutor dessa experiência de alta complexidade para mim. Tenho vivido momentos muito gratificantes nesses encontros, sem dúvida”, revelaria, meses depois, à Continente.


Pontes sobre abismos, videoinstalação e série de fotografias, 2017.
Foto: Aline Motta/Divulgação

De fato, a sensação dos que viram Aline discorrer acerca de Pontes sobre abismos (2017), Se o mar tivesse varandas (2017) e Filha natural (2018/2019) era mesmo de gratidão pela partilha e pela possibilidade de aprendizado. “O trabalho dela é mais do que artístico, antropológico e sociológico, até, e concretiza revisitações necessárias da nossa História. É tocante e, ao mesmo tempo, fabuloso. Me lembro bem do quão emocionadas e surpresas as pessoas ficaram ao ouvi-la contar da avó, que antes de morrer a chamou para lhe dizer um segredo, um tabu guardado por muito tempo, e como isso virou motor para uma pesquisa sobre sua própria família, com origens em Portugal e na Nigéria, e sobre a miscigenação e o racismo que demarcam o nosso país. Como artista negra, seu olhar sobre tudo isso adquire uma potência maior”, observa a fotógrafa e produtora Maria Chaves, uma das idealizadoras e coordenadoras do 5º Pequeno Encontro da Fotografia.

Filha de mãe negra e pai branco, Aline cresceu no Rio de Janeiro, sem pensar que um dia se tornaria uma artista visual. “Meu avô era um grande leitor e amava o cinema, e, por conseguinte, minha mãe também. Sempre havia muita música em casa, minha mãe cantava muito bem, as festas em família tinham muita dança. Essas são as referências de arte mais fortes que eu tenho. Certamente não pensava em ser artista visual, não visitávamos museus ou coisas deste tipo e eu achava que precisava saber desenhar para poder ‘pintar quadros’”, relembra. Anos depois, foi estudar Comunicação Social na UFRJ e, em seguida, emendou uma pós-graduação em Cinema na New School, em Nova York, deslocamento que a tirou do Brasil por cerca de quatro anos. “O que eu queria ser quando crescer era uma ‘viajante’, e de alguma maneira, sigo perseguindo essa vontade”, ratifica.


Filha natural, instalação fotográfica, série de fotografias, publicação, vídeo e performance, 2018/2019. Foto: Aline Motta/Divulgação

Ela é uma viajante que faz da jornada um aspecto crucial para seu corpus artístico, que abarca fotografia, performance, texto, livros e outros materiais impressos, instalações, desenhos sonoros e vídeos. Em (Outros) Fundamentos, série de imagens e um vídeo concebidos entre 2017 e 2019, Aline foi para Cachoeira, na Bahia, e para Lagos, na Nigéria, e alinhavou essas experiências com a busca já empreendida no Rio de Janeiro. Logo na abertura do vídeo, quando surge a imagem de uma altiva negra a remar em um pequeno barco, ouvimos a voz da artista a declamar as mesmas palavras usadas para descrever Oynbo, uma instalação que ela montou em Lagos, em dezembro de 2017: “Oynbo sou eu, branca, branca na Nigéria, negra no Brasil. Eu os reconheço, eles não me reconhecem. Eu me vejo neles, eles não se veem em mim. Me chamam de Oyinbo. Se ao menos soubessem. Se soubessem que estavam no navio comigo quando me obrigaram a partir. Eles estavam no avião comigo quando voltei. Com 200 anos de diferença”.

Em seu site www.alinemotta.com, consta a explicação: “Oyn + bo – palavra em yorubá que significa literalmente (alguém) que foi descascado pela abelha”. Como se esse minúsculo inseto, que na mitologia grega era consagrado à deusa Melissa, tivesse o dom de dissipar fronteiras e fecundar novos futuros.

Em (Outros) fundamentos, a presença do espelho, signo de miragem e reflexo, evoca o intuito de, metaforicamente, construir pontes sobre abismos, aproximando a realidade vivida pela população negra no Brasil daquele cotidiano de um país de onde saíram milhares dos seres humanos escravizados pelo regime colonial imposto pela Coroa portuguesa. “Se pertencer é uma ficção, posso apontar um espelho para a Nigéria e ver o Brasil? O inverso também é possível? Para além do oceano, um aponta o dedo para o outro e pergunta: É você mesmo? Por que demorou tanto?”, inquire a artista.

Em suas obras, percebe-se o cuidado com as minúcias que traduzem a passagem do tempo. É da memória, afinal, que também se constitui a vida e, no que Aline Motta se propõe a esquadrinhar, essa memória pode ser a chance para mergulhar numa fresta do cotidiano, como no conjunto de fotografias de Varal do meu vizinho, uma de suas primeiras obras (2008-2012), em que enquadrou, por anos, as roupas lavadas e estendidas pelo vizinho do andar de cima. Ou, ainda, o percurso para a imersão na própria genealogia e, em paralelo, para uma arqueologia da nação racista que o Brasil teima em negar – e assim Filha natural surge como um liame ideal entre esses dois polos. Nesses trabalhos, sobressai a sua capacidade de produzir discursos e recombinar significados a partir de uma vasta pesquisa, mas com atenção a cada detalhe.


(Outros) Fundamentos, vídeo e série de fotografias, 2017/2019. 
Foto: Aline Motta/Divulgação


Por e-mail, pergunto a Aline se o fato de ela ter sido continuísta durante 15 anos, em sets de cinema e televisão, aperfeiçoou seu pendor para ressaltar pormenores. Uma continuísta é responsável por garantir, justamente, a lógica entre as cenas, assegurando que determinados objetos, por exemplo, ou mesmo o figurino da protagonista estejam no mesmo lugar e tom quando a sequência for retomada. “É uma função muito importante num set de filmagens, mas um pouco desvalorizada, pois muitos diretores, na sua maioria homens, não fazem muita ideia do que exatamente consiste esta profissão e de como uma continuísta é capaz de contribuir criativamente para um filme. É possível que essa experiência tenha treinado o meu olhar para detalhes, mas acho que o que mais me deu foi o desenvolvimento de um método de trabalho consistente e aplicado diariamente, que me ajudava a organizar e memorizar uma infinidade de informações muitas vezes díspares”, pontua.

***

Chegamos, portanto, a uma das chaves para apreender e fruir a sua práxis artística: a relevância da travessia. O processo é tão fundamental quanto seu resultado. “Meus trabalhos são processuais e vão se desdobrando em vários suportes, a partir da minha formação, que é interdisciplinar e que não segue a linearidade que normalmente é esperada de uma carreira em artes. Os trabalhos mais recentes têm marcadamente alguns elementos autobiográficos, mas o ponto de partida mesmo é a invenção a partir de uma perspectiva íntima e pessoal”, situa Aline.

“Ponto de partida mesmo”, pois o que se descortina é incorporado à tessitura de cada obra e aos projetos vindouros. “Não sou disciplinada, mas sou muito focada e curiosa, e essas duas qualidades me fazem ir desenrolando um novelo que parece não ter fim. Um trabalho naturalmente vai me levando em direção ao próximo”, resume.


Varal do meu vizinho, série de fotografias, 2008/2012. Foto: Aline Motta/Divulgação

Em Filha natural, cuja origem remete à revelação feita pela avó pouco antes de morrer, a artista rastreia suas origens até chegar a uma fazenda em Vassouras, município fluminense notabilizado pela quantidade de negras e negros escravizados. “Minha tataravó Francisca trabalhou como escravizada numa fazenda de café em Vassouras. Eu fui até lá procurar por vestígios dela, mas encontrei apenas um possível atestado de óbito de alguém com o mesmo nome e idade aproximada que morreu na ‘Fazenda de Ubá’”, contextualiza Aline, em texto disponível no seu site. No vídeo, ela narra: “Francisca da Conceição, sexo feminino, cor preta, 60 anos de idade, viúva, lavradora”, tal qual a descrição da negra morta na Fazenda de Ubá, que pode ou não ser a sua ancestral.

À Continente, ela explica mais: “Através de muita pesquisa, leitura e uma busca de linguagem em que eu simplesmente não faça uma transposição direta de documentos e de fotos do álbum de família, procuro dar especificidade e contexto às histórias que estou contando. Mas também me sinto livre para preencher as lacunas, fabulando hipóteses sobre a trajetória de algumas das minhas antepassadas, e não seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos”.

É essa liberdade para “preencher as lacunas” com a fabulação que se constitui uma irresistível convocação do seu trabalho. Na instalação fotográfica de Filha natural, ela insere a figura de Claudia Mamede, uma líder comunitária de Vassouras, cuja presença naquela mesma varanda onde senhores brancos tiraram retratos dos seus serviçais pretos é “disruptora de uma certa narrativa de servidão e complacência entre senhores e escravizados”, nas suas palavras. Causar rupturas em narrativas ancoradas nas perspectivas de poder faz parte do seu devir. Em 2018, ganhou a Bolsa Zum de Fotografia, concedida pela publicação do Instituto Moreira Salles, com o projeto Jogo de memória. Em tempos de negação da História, há de se manter o olhar para as fissuras da nossa historiografia e um lume precioso para fendas da nossa trajetória.


Escravos de Jó, livro de artista, 2016. Foto: Aline Motta/Divulgação

Sem arte, não é possível reinventar o Brasil. E dessa certeza Aline Motta é artífice e testemunha. “Obras de artistas contemporâneos deveriam figurar em livros didáticos, por exemplo, e acho que não só falta mais pesquisa, mas também a divulgação de trabalhos mais recentes de antropologia visual acerca das imagens do século XIX. Precisamos de um novo vocabulário e olhares críticos em relação às imagens e também aos documentos dessa época para desfazer a noção de subserviência e cordialidade, ainda tão flagrantemente usada no país de hoje para apaziguar nossas tensões raciais e deslegitimar movimentos sociais que buscam ações reparatórias”, descerra.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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