Resenha

Biscoitos da música popular brasileira

Gravadora Biscoito Fino lança, nos seus 30 anos, uma coletânea que reúne diversas gerações para interpretar músicas emblemáticas do país em ‘feats.’ e novas versões

TEXTO Leonardo Vila Nova

15 de Junho de 2023

Gal Costa e Marina Sena cantam 'Para Lennon e McCartney', lançada por Milton Nascimento, em 1970

Gal Costa e Marina Sena cantam 'Para Lennon e McCartney', lançada por Milton Nascimento, em 1970

Foto Alile Dara Onawale/Divulgação

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No Brasil de 1922, com a Semana de Arte Moderna, desvelava-se uma visão de país que procurava se abrir à diversidade, a uma nação de pluralidade em seus traços e expressões e, sobretudo, a uma ideia de identidade nacional. Certa feita, um desses principais nomes do modernismo brasileiro, Oswald de Andrade, disse que um dia as massas ainda iriam comer dos biscoitos finos que ele fabricava. Ou seja: o povo – esse mesmo povo que também era retratado nas obras modernistas – teria direito e acesso ao que era de melhor. Óbvio que os ingredientes desse biscoito fino vinham (e vêm) de todos os cantos deste país, desses brasis, inclusive dessas massas. 

Os “brasis” do Brasil são inúmeros e a música brasileira é um painel rico e surpreendente que reverbera essas premissas modernistas, dada a sua potência e diversidade criativa. Após 101 anos da Semana de 22, a gravadora Biscoito Fino – cujo nome vem da expressão cunhada por Oswald – lança o disco Biscoito Fino, em que celebra este legado inesgotável e em andamento da música, da arte brasileira, nos 30 anos de existência da gravadora, celebrados em 2023. São 14 faixas, obras emblemáticas interpretadas por quase 40 artistas, mais de 100 músicos, em feats., todos originais. Nomes como Maria Bethânia, Gal Costa, Zélia Duncan, Arnaldo Antunes, Lenine estão juntos a Marina Sena, Liniker, Letrux, Brisa Flow, Assucena, Chico Chico e tantos outros. 

Biscoito Fino tem a direção geral de Ana Basbaum, curadoria de repertório dela e de Renato Vieira e direção musical de Guilherme Kastrup. O desafio deles era, a partir de um universo tão vasto e poderoso – ou seja, a música popular brasileira do século XX/XXI – fazer um recorte que fosse o mais representativo possível do país. “Tínhamos canções que eram extremamente fortes, conhecidas e quase que invencíveis no que elas tinham como criação inicial. A gente tinha que fazer alguma coisa que pudesse trazer alguma novidade, em algum sentido, ou com gente nova cantando, ou com um arranjo que fugisse do arranjo original. Chamei o Kastrup e o Renato para me ajudar a compor as parcerias em cada canção”, relata Ana Basbaum.

 

No disco, há faixas que representam o tropicalismo (Geleia Geral, de autoria de Gilberto Gil e Torquato Neto), além de músicas de autores consagrados, como Dorival Caymmi (Sargaço mar), Luiz Gonzaga (Vida de viajante), Caetano Veloso (Sem samba não dá), Chico Buarque (Deus lhe pague) e ainda dos ditos “malditos” Itamar Assumpção (Fico louco), Sérgio Sampaio (Em nome de deus), da dupla Roberto e Erasmo Carlos (Sentado à beira do caminho) e do repertório da sertaneja Marília Mendonça (Eu sei de cor), falecida em 2021. “A gente quis fazer algo que dialogasse com várias gerações e linguagens, mostrar como que a música brasileira conserva essa ousadia que a Semana de 22 instituiu. Dentro dessa premissa, a gente quis trazer um leque muito amplo. Temos várias gerações cantando juntas, a questão da representatividade, com artistas indígenas, negros, trans. Temos um painel muito rico da representatividade da música brasileira”, conta Renato Vieira. 

“Tem um cruzamento aí entre os movimentos representados pelas composições e os movimentos representados pelos próprios artistas que fazem parte desse caldeirão e que participam do disco; dessa teia toda que é a música brasileira. Eu acho que o que une esse negócio todo, no final das contas, é essa grande antropofagia da música brasileira, que tudo engloba e que vai absorvendo e que tem uma diversidade gigante”, considera Kastrup. Basta observar alguns dos feats. para constatar o que ele diz. Maria Bethânia e Chico Chico cantando juntos Em nome de deus, de Sérgio Sampaio. Ou Gal Costa e Marina Sena em Para Lennon e McCartney – esta canção de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant, lançada por Milton Nascimento, em 1970, fora a última gravação de Gal, que nos deixou em novembro de 2022. Ou Arrigo Barnabé e Negro Leo em Sargaço mar, de Dorival Caymmi. 

É óbvio que um século da nossa produção não coube em 14 faixas. Seria impossível abarcar a totalidade desse arcabouço num único álbum, nem em dois ou três. “A música brasileira é muito potente. Com certeza, a gente cometeu o erro de deixar coisas importantes de fora”, diz Basbaum. Autores como Rita Lee, Belchior, Luiz Melodia, por exemplo, não entraram nessa escalação. “Não deu pra colocar tudo que a gente gostaria, mas dentro desse recorte que a gente fez, acho que a gente foi muito feliz, porque a gente fugiu um pouco do óbvio”, considera Renato. Quem sabe em um segundo volume? 


Bethânia e Chico Chico gravaram para o disco. Foto: Carolina Spork/Divulgação

O PACOTE
Guilherme Kastrup, diretor musical do projeto, conta que conduzir as gravações do álbum foi como uma verdadeira “gincana”. “Um disco de realização de logística muito difícil, de estabelecer cronogramas e conseguir juntar esse povo todo para os processos criativos e para o desenvolvimento das ideias”, diz. As músicas ganharam novos contornos, vestimentas bem diferentes das originais, dando-lhes uma cara completamente nova. “A gente procurou achar uma tessitura que somasse os horizontes musicais de cada artista, se descolando das primeiras gravações, para ter uma interpretação nova de arranjo, algo original para cada uma. E eu procurei fazer isso partindo sempre dos artistas, discutindo com cada um deles o conceito das faixas, dando os traços a partir daí.” 

Deus lhe pague, que tem um dos arranjos mais emblemáticos da música brasileira, criado por Rogério Duprat, é uma das faixas mais impressionantes do disco. Une Metá Metá a Bia Ferreira e Brisa Flow, duas a(r)tivistas – uma preta e uma indígena, respectivamente – que fazem intervenções na letra original de Chico Buarque, atualizando a crítica social para os tempos de hoje, com línguas afiadíssimas, reivindicando igualdade racial e de gênero.

Outra canção que nos mostra que o Brasil ainda carrega profundas mazelas é Aquarela brasileira, um samba-enredo de exaltação ao Brasil, composto por Silas de Oliveira para a Império Serrano desfilar em 1964. No disco, ela ganha um ar melancólico, com seu andamento arrastado e interpretação de Leci Brandão, piano de Jonathan Ferr, cavaquinho e voz de Rodrigo Campos e a intervenção do rapper Edgar, pegando pesado e certeiro com o seu poema Pedaço de amor

De Caetano Veloso, entrou Sem samba não dá, do seu último álbum Meu coco (2021). “A gente quis mostrar o quanto ele ainda é um artista que traz novidade para a música brasileira”, pontua Ana Basbaum. Um samba cuja letra fala da diversidade musical do país, que tem “sertanejo, trap, pagodão”. Na versão do Biscoito Fino, ela é coproduzida pela jovem Ana Frango Elétrico e cantada por Jards Macalé e Criolo. “Foi um encontro mágico”, disse Kastrup sobre a gravação. 

Uma das faixas mais comoventes do álbum é Sentado à beira do caminho, de Erasmo e Roberto Carlos. Um belíssimo encontro de Luedji Luna e Arnaldo Antunes, em um arranjo de guitarra, baixo, percussões e sopros que envolve e embala com profundidade e doçura. Também pega forte na emoção a versão de Em nome de deus. Aqui, as vozes da veterana Maria Bethânia e do jovem Chico Chico e o piano de Maíra Freitas são o suficiente para fazer da canção de Sérgio Sampaio algo completamente único, inclusive com uma carga dramática diversa do próprio autor. 

Outra faixa que merece menção – na verdade, todas merecem – é a junção das canções Fim de caso e Eu sei de cor. A primeira, composição de Dolores Duran; a segunda, um sucesso do repertório da “Rainha da Sofrência”, Marília Mendonça. Nesta versão, estão unidas nas vozes de Zélia Duncan e Letícia Soares. Dolores e Marília foram mulheres que viveram em tempos totalmente diferentes. Dolores foi sucesso nas boates do Rio de Janeiro nos anos 1950. Marília, um fenômeno da música sertaneja dos últimos anos. Ambas morreram muito jovens, antes dos 30 anos. Ambas cantavam o fim de relacionamento com muita propriedade e, nesta temática, foram muito parecidas. A junção das músicas – que, em momentos, parecem uma só – nos dá a ouvir essa similaridade. Versão muito delicada e inteligente no que tange esse aspecto bastante presente no nosso cancioneiro popular. 

Neste intento de montar um mosaico amplo da nossa criação musical, em sua diversidade – territorial, de gênero, de composições, movimentos, expressões, temáticas –, o álbum Biscoito Fino consegue, apesar da tarefa impossível, fazer um mapeamento muito exuberante disso tudo que nos forma e continua nos formando. Mesmo que seja um recorte, mas um recorte muito generoso, porque assim é a música do nosso país. 

LEONARDO VILA NOVA é músico e jornalista cultural.

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