Resenha

Jards Macalé canta o amor como gesto político

Novo álbum do compositor carioca, ‘Coração bifurcado’, chega para injetar amor em um Brasil de ódio, cantando o sentimento de forma imprevisível e diversa

TEXTO Leonardo Vila Nova

19 de Maio de 2023

Jards Macalé em ensaio para este que é 13º trabalho de sua carreira

Jards Macalé em ensaio para este que é 13º trabalho de sua carreira

Foto Leo Aversa/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Diga lá, professor! Como é que tá o dia aí?”, pergunta o artista ao telefone, no que, diante da resposta sobre uma manhã ensolarada, devolve: “Isso é bom! O sol há de brilhar mais uma vez: Nelson Cavaquinho”. Foi assim que Jards Macalé atendeu à ligação para conversar com a Continente sobre o seu mais recente álbum, Coração bifurcado (Biscoito Fino, 2023), o 13º de sua carreira, lançado no finzinho de abril. A conversa foi breve, pois Jards teria outro compromisso na sequência, mas deu para entender muito bem: Macalé só quer saber do amor! E é sobre ele, o Amor, que o compositor, musicista e cantor carioca canta do início ao fim do disco. Todavia, em se tratando deste longevo e experiente artista de 80 anos, surgido no “barato total” dos anos de 1960/1970, o álbum passa ao largo de tratar o sentimento de forma piegas e previsível, contrariando o que já temos aos montes por aí, desde que o mundo é mundo. 

A cada faixa de Coração bifurcado (são 12, no total), ouvem-se os caminhos e descaminhos do amor e suas mais diversas formas de se manifestar. Há o amor puro, o sublime, o selvagem, o que traz paz, o que dói e mais e mais. Para Macalé, esta quadra recente de história brasileira urgia falar de amor, cantar o amor, especialmente como um “gesto político”. Na época do disco solo que o antecede, Trevas (2019) – em 2021, ele lançou, em duo com João Donato, Síntese do lance –, o Brasil mergulhava num período muito sombrio, de desgoverno e outras perversidades mais, “um período muito trevoso”, completa ele. “As pessoas começaram a brigar, o ódio foi plantado, filho não falava com mãe, sobrinho não falava com amigo, amigo não falava com professora, começaram todos a se xingar na internet, então eu digo: ‘ALERTA MÁXIMO!’. Só ouço falar de ódio, não ouço falar de amor? Até que o Lula, num dos seus primeiros discursos, lá em São Bernardo do Campo, começou a falar: ‘O que nós precisamos é de AMOR’. Aí, eu acordei! Ele disse 23 vezes a palavra ‘amor’! Então, nesta hora, o amor é um gesto político”, conta Jards. 

Para dar início ao novo projeto, ele convidou Romulo Fróes como diretor artístico – já haviam trabalhados juntos em Trevas – e, a partir de temas musicais que ele já vinha criando e trabalhando durante a pandemia, foi convidando parceiros a escreverem as letras para essas músicas, fazendo o caminho inverso do que costuma ao criar canções, “porque eu sempre musiquei poemas dos outros, e raramente arrisquei poemas de mim próprio”, diz. O time de parceiros é de primeira linha, dos mais recentes aos mais antigos: o próprio Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, Alice Coutinho, Clima, Rodrigo Campos, e os veteranos Ronaldo Bastos e José Carlos Capinan, o mais frequente deles. Fróes arregimentou a banda que acompanha Macalé no disco: Thomas Harres (bateria e percussão), Rodrigo Campos (guitarra, cavaquinho e percussão), Guilherme Held (guitarra) e Pedro Dantas (baixo). Para os arranjos de cordas e sopros em algumas músicas, foram chamados Cristovão Bastos e Antônio Neves, respectivamente. 

UM DISCO DEDICADO A GAL
Como já dito acima, Coração bifurcado é um disco dedicado a cantar o amor “à la Jards Macalé”. A sua voz suja e cavernosa atravessa o álbum, tirando de campo a limpidez habitual das canções do “gênero” e rasgando de emoções, das mais diversas, os que o escutam. Assim como a vestimenta musical, que vai da potência da banda – que, em momentos, alinha-se ao Jards de 1972, de Soluços – ao minimalismo, segundo o que pedem as canções. 

O parceiro mais antigo, o tropicalista José Carlos Capinan, assina a letra da primeira faixa, a “música-manifesto” Amor in natura, que, segundo Jards, “abre logo tentando explicar o inexplicável”. Os primeiros versos já confessam as segundas e terceiras e quartas intenções – “O amor está de olho no botão da sua blusa/ ele usa e abusa dessa força delicada quase bruta” – para, em seguida, discorrer sobre as antíteses e diversas formas de ser do amor, em momentos como “o amor anda nas retas, o amor anda nas curvas (...) o amor faz sol, o amor faz chuva (...) O amor é paz, mas vai sempre à luta/ O amor tem fel, o amor tem açúcar (...) O amor levanta as casas, o amor derruba as casas”. É essa ideia que dá o tom ao longo do álbum, no que Jards sentencia: “O amor pode ser tudo isso... e pode ser nada disso”. Capinan também é letrista de A arte de não morrer, um dos singles do álbum, cuja poesia versa, resiliente, sobre as prisões da vida, ao mesmo tempo, a liberdade que o amor impele, como uma arte que nos faz sobreviver à recente pandemia. 

A faixa-título, Coração bifurcado, é uma parceria com Kiko Dinucci. Um samba que fala sobre conflitos e desencontros dos amores de um malandro, das ruas. Segundo Jards, um “amor de navalha”, dividido nas “encruzas” da vida. Daí, veio a inspiração para a representação de Zé Pelintra na capa do disco, um Exu da umbanda, trajado de malandro nas cores branca e vermelha. Assim como veio daí a cantiga de Pomba Gira que abre a música: “Dói, dói, dói, dói, dói/ Um amor faz sofrer/ Dois ‘amô’ faz chorar...”. 

Autor veterano da música brasileira, Ronaldo Bastos é também parceiro de Macalé, só que recente. Ambos se conheciam há décadas, mas a aproximação e as parcerias efetivamente só vieram após a morte do fotógrafo pernambucano Cafi, grande amigo de ambos. É da autoria da dupla o belíssimo samba-canção Mistérios do nosso amor, que traz a participação da amiga de longas datas Maria Bethânia, numa interpretação primorosa, das mais belas do disco, cantando sobre traição e ciúme, mas, também, a vitória do amor sobre eles. “Bethânia arrebentou! Já nasceu clássica”, vaticina Jards. Também de Bastos e Macalé é a belíssima O amor vem da paz, que já havia aparecido em Síntese do lance, com Donato. “Eu gosto tanto dela, que fiz uma nova versão para Coração bifurcado.” 

Outra convidada do disco é a cantora Ná Ozzeti, que interpreta brilhantemente a canção Simples assim, parceria de Macalé e Romulo Fróes. Acompanhada apenas da guitarra de Guilherme Held, Ná cumpre muito bem o desafio de cantar a música que, inicialmente, seria cantada por Gal Costa, falecida em novembro de 2022. Jards comenta rapidamente sobre a partida da amiga-irmã: “Eu fiquei como todo mundo, surpreso. A gente conversava muito, por áudio ou chamada de vídeo. A gente tá se relacionando num dia, manda ‘bilhete’ pelo Whatsapp no outro dia e, de repente, cala-se durante uma semana e depois vem a notícia: ‘Gal morreu’. Pô, isso é loucura!”. “Gal se foi, mas a voz dela ficou”, diz Jards, que vai além: “Este disco de amor é dedicado a Gal”. 

Mais uma voz feminina presente no álbum é a de Nara Leão. Jards resolveu inserir em Coração bifurcado a faixa Amo tanto, em sua versão original gravada pela cantora no disco Nara pede passagem, de 1966, em que é acompanhada por Dino Sete Cordas (violão sete cordas), Copinha (flauta) e Canhoto (cavaquinho). Composição apenas de Jards, com letra inspirada no “Poetinha”, como ele conta: “Na época, todo mundo jovem, a garotada queria ser Vinicius de Moraes, aí eu banquei o Vinicius de Moraes, fiz aquela letrinha e botei uma melodia, que ficou uma seresta, e a Nara gravou”. 

Com Rodrigo Campos, Jards compôs A foto do amor, que traz um canto falado e a banda fazendo uma atmosfera soturna, sobre uma relação amorosa despudorada vivida nas ruas, embaixo do Minhocão de São Paulo, entre três personagens: Tatá, Elizeth e Mateus. “Elizeth batia, mas não rebatia/ Amada de tapas e beijos molhados/ Saliva cortante de pinga/ E boca rasgada de macho”, cenas descritas que são flagradas, como conta a história, por um fotógrafo argentino que passava de fininho, por perto. 

A primeira parceria de Macalé com a poeta Alice Coutinho é a “jobiniana” Grãos de açúcar, também uma das mais belas do álbum, na qual ouvimos apenas a voz e o violão de Jards, cuja densidade lembra O movimento dos barcos, também de 1972. As referências a Dindi (personagem real ou fictícia?), cantada anteriormente por Tom Jobim, nos levam ao autor bossanovista, mas o canto emocionado – e também denso – de Jards confere o peso que é marca de muitas de suas canções. 

Outra faixa que nos remete ao Macalé dos anos 1972 é Pra um novo amor chegar, criada a partir da melodia que Jards fez em cima de uma base harmônica criada por Guilherme Held, inspirada no disco inaugural do artista. A letra foi escrita por Romulo Fróes, que, baseado na melodia cíclica de Jards, conta uma história de despedida de um amor que dá espaço para que outro chegue, como o movimento das ondas do mar, que vão e vem. Clima assina a canção Você vai rir, um samba de gafieira com uma letra bem-humorada, que fala da vida atrapalhada de um sujeito sem dinheiro que não tem onde morar, vivendo de favor no apartamento emprestado por um amigo, em Copacabana, e, no meio dessa inconstância, vivendo uma paixão e tendo que explicar a situação para sua amada. 


Foto: Leo Aversa/Divulgação

Encerrando o álbum, a bela e simples Cante, de autoria apenas de Macalé, evoca que os mais auspiciosos sentimentos devem virar canção e ser cantados, com total desprendimento e de coração aberto. “A canção é muito simples. Na hora de fazer arranjos, orquestração, eu pensei em fazer uma homenagem ao Clube da Esquina. Aí, pedi pro Guilherme Held ‘arrancar’ o som de Toninho Horta, que é aquela moda de viola que vai moderna, e os arranjos potentes de Wagner Tiso... e o Milton Nascimento, né? Que loucura! Essa música, se fora naquela época, o Milton arrasaria o quarteirão.”

Como diz o professor Jards, em alusão ao discurso de Lula, que o amor é a nossa salvação de tempos trevosos, “(...) a melhor coisa do mundo além do amor/ (como o amor)/ é cantar”.

Ouça o disco.

LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.

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