Um baú de joias mnemônicas
Em livro de memórias inicialmente ofertado aos amigos, Tânia Carneiro Leão compartilha relatos únicos de personalidades da elite das artes, da política e da economia, mas também de funcionários anônimos e amizades fortuitas
TEXTO Carlos Eduardo Amaral
09 de Dezembro de 2025
Foto Divulgação
Quem é recebido por Maria Tânia Carneiro Leão, née Tavares Barbosa, em sua casa, na Rua Prudente de Morais, em Olinda, tem duas satisfações certas: uma farta mesa à espera e um sem-fim de agradabilíssimas conversas. Este último adjetivo, muito subjetivo, aparentemente fútil e utilizado no superlativo, poderia de súbito arruinar a objetividade do presente texto, desvelando uma irreprimível lisonja — confirmada pela capitulação à sedução gastronômica.
Não é o caso. A não ser que alguém não ache interessante ouvir episódios impagáveis — verdadeiras conversas de bastidores, que dificilmente encontraríamos em diários ou biografias — sobre William Faulkner, Sartre, Jô Soares, Cícero Dias, Chacrinha, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e Ricardo Salinas, dentre outros.
Alguns desses episódios — vividos por Tânia Carneiro Leão como protagonista ou coadjuvante, em sua maioria — acabaram sendo reunidos em um livro de memórias cuja impressão a autora bancou com o intuito inicial de brindar familiares, amigos e convivas. Tão logo chegaram as caixas com os exemplares, Tânia começou a distribuí-los em pessoa ou pelos correios, bem antes do lançamento.
O título do livro, ColeTânia, pode parecer um trocadilho trivial, mas não: trata-se de uma compilação organizada por Tânia, de histórias contadas (ou imaginadas) por Tânia — sob a forma de memórias, apreciações, crônicas, contos, listas afetivas e citações de poemas. De quase todas as histórias dessa compilação, ela foi testemunha — e criadora, no caso de dois contos que têm como mote a pandemia, ou da breve releitura mordaz que ela faz acerca de Cinderela.
No entanto, há também os relatos que ela retransmite por haver recebido das fontes primárias. Um deles é o de um Faulkner (1897-1962) “chapadaço” — melhor dizendo, desnorteado de tanto uísque na noite anterior —, a ponto de acordar esquecido de que estava na capital paulista para participar de um congresso literário internacional, em 1954. Esse causo foi narrado a Tânia pelo seu primeiro marido, o poeta Carlos Pena Filho (1929-1960), convidado do evento.
Pena Filho — homenageado na última edição da Fliporto, de 14 a 16 de novembro passado, ao lado de Miró da Muribeca (1960-2022) — é uma das figuras mais recorrentes da coletânea, naturalmente. Porém, a nenhuma outra são dedicados tantos capítulos quanto a Cícero Dias (1907-2003): oito. João Cabral de Melo Neto ocupa quatro, mesmo número do casal Lúcia (1941-2017) e Paulo Tarso Flecha de Lima (1933-2021).
Desconhecido, mas não menos interessante, é Carlos Fornari, descendente de uma rica família dona de toda Punta del Este e ex-funcionário do Consulado Honorário do Uruguai em Olinda — dirigido por Rodrigo Carneiro Leão, filho do segundo casamento de Tânia, com o engenheiro André Gustavo Carneiro Leão (1926-2022). Um dos três capítulos com histórias do falecido Chanceler, como Fornari era chamado pelos funcionários da casa da autora, versa até sobre um namoro malogrado do poeta nicaraguense Rúben Darío (1867-1916).
Empregadas, caseiros, cozinheiras e afins também são rememorados. E não só os da residência de Tânia. Talvez o funcionário de relato mais hilário seja Pedrinho, mordomo ad hoc da casa de Deborah (1927-2015) e Francisco Brennand (1927-2019). Pedrinho ciceroneou Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), enquanto os patrões estavam ausentes, tendo como intérprete ninguém menos do que Jorge Amado (1912-2001).
Enlutada pelo falecimento de Pena Filho, cerca de um mês antes, Tânia não se sentia em condições de atender ao convite do amigo escritor baiano — mesmo com a gentil oferta deste, de buscá-la de carro com o casal francês na escolta. Assim, ela não conheceu Sartre e Beauvoir, mas recebeu por telefone o reporte de todo o encontro, via Deborah e Jorge, e agora compartilha publicamente um breve resumo das gabolices mitômanas do ajudante doméstico.
Amizades casuais também entraram nos relatos de memórias, como as que ela e o marido André fizeram com três exilados latino-americanos e uma espanhola em um pub londrino, em 1970. Ou como a que ambos tiveram com Jô Soares (1938-2022) em um jantar no restaurante Berro d’Água, que funcionava na atual residência da autora. Por sinal, baseada em um artigo do jornalista Homero Fonseca, Tânia reivindica que o epíteto Berro d’Água (que deu nome a um dos protagonistas mais famosos de Jorge Amado) referia-se a Pena Filho.
Conhecida por Uruguay Club, nome do extinto bar que sucedeu ao restaurante, a casa de Tânia é o cenário mais citado do livro, com status de quase-personagem. Situada ao lado da Casa Estação da Luz (ao lado mesmo, terreno com terreno) e projetada por Louis Vauthier (1815-1901), foi a morada dos pais da escritora: Otília e o ex-prefeito de Olinda Eufrásio Barbosa (1910-1982), cassado pelo golpe civil-militar de 1964.
Hoje, o casarão poderia ser propriedade do biliardário mexicano Ricardo Salinas, que chegou a visitar o local com o interesse de adquiri-lo, mas nunca chegou a concretizar a proposta de compra. Teria sido o dono de um patrimônio arquitetônico por onde passaram, em épocas diversas, ícones como Baden Powell (1937-2000), Chacrinha (1917-1988) e a última rainha consorte da Itália, Maria José da Bélgica (1906-2001).
Como artista plástica e ex-comerciante de antiguidades, Tânia oferece abundantes descrições e enumerações de obras de arte, habitações, mobiliários e utensílios domésticos que pouco se encontram na literatura atual. São detalhes que nos fazem notar o quão estamos dessensibilizados ao belo atualmente, verdadeiras PCD no quesito apreciação estética.
Também chama atenção o resgate de um vernáculo que já não ouvimos: “a cavaleiro de” (isto é, “em posição mais elevada em relação a algo ou alguém”), “a páginas tantas” (“a certa altura”), “fruta gogoia”... Posto isso tudo, ColeTânia merece ser encontrado nas prateleiras das livrarias recifenses, com direito a revisão textual rigorosa e generosa tiragem.
Enquanto alimentamos a expectativa de uma segunda edição nesses moldes, incluindo outra penca de histórias que ficaram de fora desse baú de joias mnemônicas, Tânia promoverá o lançamento do livro na quinta-feira (11/12), às 19h, no Museu do Estado de Pernambuco. O coquetel também marca o vernissage da exposição ColeTânia: floreiros e bodegons, com curadoria de Carlos Trevi.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico de música, pesquisador e biógrafo
SERVIÇO
Lançamento do livro ColeTânia, de Tânia Carneiro Leão, com abertura da exposição ColeTânia — Memória, Traço e Cor
Onde: Museu do Estado de Pernambuco – Av. Rui Barbosa, 960, Graças, Recife
Quando: Quinta-feira (11/12), às 19h
Quanto: R$ 100
Páginas: 220
Edição independente