Curtas

‘Síntese do lance’, de Jards Macalé e João Donato

A bem-aventurança musical da dupla que se reúne, pela primeira vez, em disco que combina nuances da bossa nova, do samba, do jazz e da latinidade

TEXTO Leonardo Vila Nova

10 de Novembro de 2021

“É um caleidoscópio sonoro que alivia as tensões”, declara Jards (D) sobre o álbum, que, não à toa, abre com Donato (E) dizendo: “Só alegria”

“É um caleidoscópio sonoro que alivia as tensões”, declara Jards (D) sobre o álbum, que, não à toa, abre com Donato (E) dizendo: “Só alegria”

Foto Leo Aversa/Divulgação

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“Um feat desses, bicho!” Esta foi a minha primeira reação ao saber do lançamento de um álbum que reunia dois nomes de precioso quilate na música brasileira: João Donato e Jards Macalé. Em um encontro intencionado por décadas, o acreano de 87 anos e o carioca de 78, respectivamente, estão juntos no álbum Síntese do lance, lançado no final de outubro nas plataformas de streaming, e que deverá sair em vinil até o fim deste ano. Em 10 faixas inéditas, Donato e Macalé nos apresentam um trabalho sossegado, de leveza solar, para distensionar desses tempos pesados. “É um caleidoscópio sonoro que alivia as tensões”, declara Jards sobre o álbum, que, não à toa, abre com Donato dizendo: “Só alegria”. 

Síntese do lance sai pela gravadora Rocinante e surgiu da ideia do guitarrista, poeta e compositor Sylvio Fraga. A produção do disco – gravado em Araras, na região Serrana do Rio de Janeiro – ficou por conta de Fraga, Pepê Monnerat – seu sócio na Rocinante – e Marlon Sette, trombonista e diretor musical de João Donato. Foi o trio quem deu o empurrãozinho para concretizar a coroação de uma antiga admiração mútua entre Jards e João. 

Macalé já nutria amizades com João Gilberto, Tom Jobim e Johnny Alf, nomes seminais da bossa nova. Faltava Donato, outro dessa geração, que, desde cedo, já deixara sua marca na música, com nuances da eletro-bossa, da bossa-jazz e de sons latinos, presentes em Síntese do lance, assim como o samba, vindo das mãos de Jards. 

O piano de Donato e o violão de Macalé estão presentes em todas as faixas de Síntese do lance, com exceção de Dona Castorina, mas a parceria mais efetiva de ambos se dá em apenas uma música: Côco táxi, canção que abre o álbum, é a única composição assinada pelos dois. Remete ao típico (e pitoresco, aos nossos olhos) veículo cubano, um triciclo que possui uma estrutura amarela que se assemelha a um coco, e que é comumente usado por turistas. Ambos já usaram o cocotaxi, transitando pela Malécon, à beira-mar de Havana. Nesta faixa, já se percebe o clima que perpassa todo o álbum. Num mix latino-americano de música caribenha e afoxé, Côco táxi representa bem o que ouvimos ao longo dos 30 minutos e 30 segundos da obra.

As outras músicas – três delas instrumentais – são composições de Donato e Macalé em separado, sozinhos ou com outros parceiros. Entre elas, homenagens que cada um fez às suas respectivas companheiras. A segunda faixa do disco, a já mencionada Dona Castorina, de Donato, é dedicada à sua esposa, Ivone Belém, com quem está casado há 22 anos. Uma lembrança que acarinha, já que Dona Castorina se trata de uma estrada na Floresta da Tijuca por onde o casal costumava passear, e é também o apelido que João deu a Ivone, que, por sua vez, o chama de “Castor”; daquelas formas carinhosas – e, por vezes, inusitadas – com que se tratam os namorados. 

Já O amor vem da paz, foi feita por Jards – em parceria com Ronaldo Bastos – em homenagem a Rejane Zilles, com quem celebra uma década de união. “Eu dei sorte ao encontrar você/ Quando o mundo ia desabar/ Essa força vem do bem querer e me fez pensar (...) Se alguém pergunta de onde vem/ Essa força que nos faz seguir/ Vem dos sonhos, dos dias de sol/ O amor vem da paz”, diz a canção. 

 As músicas que estão no álbum surgiram a partir de diversas fontes, seja durante o processo de gravação do disco ou da reunião de anotações musicais que ganharam vida nesse encontro. Até mesmo os produtores do álbum entraram como parceiros de composição. É o caso de Síntese do lance, faixa-título, um samba que se originou a partir da adaptação de Donato de um ponto de umbanda de Zé Pilintra, encontrado em rabiscos do pianista ainda dos anos 1970. “É no morro sim/ Que se tira uma onda/ É sentado na pedra/ Queimando uma coisa/ Jogando uma ronda.” Quem concluiu a música e assina a parceria é Marlon Sette. 


Donato e Macalé no ensaio fotográfico de Leo Aversa. Foto: Divulgação

O excelente samba-funk Cururu é de Marlon Sette e Sylvio Fraga, cantada por Donato. Os três, então, compuseram juntos a bossa-jazz Açafrão. Já Macalé canta solo em Ontem e hoje, samba-bossa composto por ele e Fraga. Além de Dona Castorina, as outras duas instrumentais do disco são composições de Macalé: João Duke, em que ele conecta João Donato ao compositor norte-americano Duke Ellington, também pianista e um dos nomes mais proeminente da história do jazz; e Lídice, um afro-jazz composto enquanto balançava numa rede, com seu violão, na cidade de mesmo nome, em visita a uma amiga. 

Outra parceira de Jards é com a compositora e cantora Joyce Moreno. Juntos, eles fizeram Um abraço do João, uma bossa em homenagem ao mestre e um dos grandes amigos de Jards, João Gilberto. 

VELHOS JOVENS NUDES
A capa de Síntese do lance é algo à parte. Além de uma celebração do encontro desses dois jovens senhores, é também uma reafirmação do humor e do despojamento deles diante do seu fazer artístico. Sorridentes, Jards Macalé e João Donato estão pelados, levemente escondidos por folhas: Donato usando apenas o boné; Macalé, os óculos. A ideia foi de Ivone Belém, a companheira de Donato. A fotografia é de Leo Aversa. 

E é nesse clima leve, descontraído e, acima de tudo, alegre – como João Donato faz questão de ressaltar – que os dois artistas se juntaram, afirmaram mais uma nova parceria, consolidaram um novo feat na MPB, com a disposição e a curiosidade praticamente infantis trazida por ambos, e sob as bênçãos de Zé Pilintra, como define Donato: “O que é a síntese do lance? Extrair o néctar, o âmago das coisas. É ir direto ao ponto. A música corre fácil, fazendo a vida ficar mais simples e inspirada na entidade do Zé Pelintra”.



LEONARDO VILA NOVA é jornalista e músico.

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