Neste poema escrito dois anos antes de morrer, o tema das palavras cinzeladas pelo poeta mineiro eram os registros de um fotógrafo que, em especial a partir dos anos 1960, havia se firmado como uma atenta testemunha das questões políticas em um Brasil estraçalhado pela ditadura civil-militar. Diante das fotos de Evandro Teixeira (leia entrevista com o fotógrafo aqui) é o título desta coleção de versos em que Carlos Drummond de Andrade, na segunda estrofe, vaticina: “É preciso que a lente mágica enriqueça a visão humana e do real de cada coisa/um mais seco real extraia para que penetremos fundo no puro enigma das figuras”.
Em setembro, a última noite da 9ª edição do Pequeno Encontro da Fotografia trouxe um exemplo da busca por esta lente mágica evocada por Drummond, voltada para o “mais seco real” a fim de mergulhar no âmago – ou no “puro enigma”, como o poeta fraseia – das imagens. O pré-lançamento do site Cartografia PE - Ensaio sobre uma fotografia feita em Pernambuco descortinou uma pesquisa que Mateus Sá propôs para o edital 2018/2019 do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura -– Funcultura, antes da pandemia e de uma certa reconfiguração no modo como produzimos e difundimos nossas fotografias – sejam as selfies tiradas à exaustão durante o confinamento, sejam as imagens acumuladas nos celulares ou nas nuvens, ou ainda aquelas armazenadas em pastas mas nunca impressas ou sequer mostradas.
Naquele momento, ele, Eduardo Queiroga e Pio Figueiroa apresentaram o projeto para a plateia do Café Pequeno, evento que tradicionalmente encerra o Pequeno Encontro da Fotografia e que transcorria na Casa Estação da Luz, no Sítio Histórico de Olinda, discorrendo sobre a iniciativa como uma exposição coletiva virtual, a “ser vista de maneira randômica, por entradas distintas, ou de forma mais linear”, como o breve texto que abre o site descreve. A partir das obras de nove fotógrafas e fotógrafos, a quem denomina, com toda razão, de artistas, Cartografia PE traça um contorno cujas fronteiras são enfeixadas por critérios menos cartesianos e mais subjetivos, o que decerto alegraria Drummond, para quem “dois olhos não são bastantes para captar o que se oculta no rápido florir de um gesto” – é preciso, afinal, ter sempre a intenção por trás da mirada.
Imagem: Mergulha e Voa
E tal pulsão se encontra nos trabalhos de Alcione Ferreira, Clara Simas, Dani Bracchi, Emiliano Dantas, Géssica Amorim, Isaias Belo, do duo Marcela Lins e Guilherme Benzaquen, Mergulha e Voa e Mitsy Queiroz, grupo escolhido para estar nesta primeira fase do mapeamento, cada uma e cada um com sua própria página no site a exibir entre dez e vinte obras. “Primeira fase” porque o trio de fotógrafos-artistas-curadores-pesquisadores que conceberam o projeto acredita que esta é apenas a primeira vereda a ser delineada dentro deste novo território aberto na produção fotográfica contemporânea que nasce e deságua em ou, de algum modo, converge para Pernambuco.
“Desde o início, quando pensei no projeto lá atrás, a ideia sempre era de ter algo plural, que saísse um pouco dos nomes de sempre e que mesclasse gente com uma produção mais consolidada, como Alcione Ferreira, por exemplo, com pessoas nos centros urbanos e outras nos interiores; gente que trabalhasse com a imagem mais direta e outras que iam para uma abordagem mais conceitual. Toda essa mistura vindo para abraçar a fotografia de uma forma mais ampla, não restrita apenas ao conceito mais espacial da imagem, mas também considerando a fotografia enquanto pesquisa e enquanto palavra. Dani Bracchi, por exemplo, opera com a palavra mergulhada na fotografia. Queríamos contemplar esse universo amplo, porque é dessa maneira que a fotografia continua existindo na contemporaneidade – com essas variações múltiplas, essas várias formas de vivências e experiências”, expõe Mateus Sá em conversa com a Continente.
Para Eduardo Queiroga, a abertura de um outro tipo de diálogo entre três fotógrafos que já atuavam juntos em várias frentes, agora com um intuito específico e provocador, foi um estímulo: “Foi um desafio proposto por Mateus, para o qual ele me convidou e convidou Pio, e para discutir um recorte da fotografia a partir também do nosso encontro – somos três pessoas que estão inseridas na fotografia, em contato com a fotografia de Pernambuco por diferentes caminhos, que se formaram de maneira diferente, mas que acompanham o que se faz por aqui, que participam de curadoria, de pesquisa, de ensino. São várias relações que nos conectam: Mateus e eu passamos muito tempo na Escola Livre de Imagem, e foi lá que Pio chegou mais junto, participando de algumas atividades, numa espécie de ‘pré-história’ da Cartografia PE, porque ao longo de anos fomos discutindo projetos juntos, observando pesquisas e conversando sobre fotografia, o que acabou moldando o que se vê hoje no site”.
Imagem: Isaias Belo
De uma relação inicial com quase 40 nomes, e em reuniões periódicas que se tornaram semanais a partir de 2021, os três pernambucanos, que hoje moram em lugares distintos (Pio está há mais de duas décadas radicado em São Paulo, Queiroga é professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais desde 2021 e Mateus mora em Olinda), foram se aprofundando em um “grupo de estudo”. “A fotografia serviu como uma espécie de território que delimitava as discussões no encontro dessas três pessoas, com desdobramentos de pesquisa e experiências a recorrer na conversa. No fundo, Cartografia PE é um grupo de estudo estendido, em que vamos discutindo não só o fazer artístico, mas os processos, pois tanto eu quanto Queiroga e, em grande medida, Mateus temos isso de dar aula, de flertar com curadorias e de habitar o campo de pesquisa”, sustenta Pio Figueiroa.
“Era um processo de achar elos entre os trabalhos, de investigar os procedimentos artísticos, de pensar editorialmente, que acabava unindo todos os nossos fazeres. Quando chegamos a esses nove nomes, percebemos que eram artistas que iam se complementando e, enquanto falávamos sobre a potência dos trabalhos, íamos mergulhando naquela produção – pesquisando em sites, nas redes sociais, nas participações em projetos e exposições – para, a partir daí, dizer 'caramba, gostamos disso'. Só depois de tudo isso é que entrávamos em contato com cada um e cada uma para propor um papo online”, recorda Mateus. “Sempre olhando para a ampliação dos limites da fotografia, chegamos a este recorte que fez muito sentido, inclusive na cronologia. Como Mateus e eu fazemos o Pequeno Encontro da Fotografia juntos, vimos que as datas casavam e que este pré-lançamento poderia ser lá”, diz Queiroga.
Nada mais natural, aliás, do que usar o Pequeno Encontro da Fotografia para batizar o projeto, posto que, desde sua gênese, tal iniciativa busca também se colocar como um farol para iluminar “ideias no nascedouro“, como sublinha Maria Chaves, uma das coordenadoras do evento. “Foi importante e especial apresentar a Cartografia PE, tanto por ser um projeto idealizado por outros dois fundadores do Pequeno, os fotógrafos Mateus Sá e Eduardo Queiroga, junto com Pio Figueiroa, um parceiro querido e recorrente, como também por se tratar de uma vitrine para obras em construção e reconstrução. Para nós pareceu a combinação ideal: a chance de unir uma certa estrada já percorrida pelo PEF, ao longo de suas nove edições, com uma iniciativa que acabou de germinar", afirma Maria, ela mesma produtora, fotógrafa e entusiasta de todas as plataformas de expansão cartográfica da fotografia.
Imagem: Mitsy Queiroz
MEMÓRIA
Uma das lógicas centrais a alicerçar o projeto é a noção da fotografia “como um território conceitual possível de flertar, inclusive, com outras linguagens e outros procedimentos”, como expressa Pio. Tal amplitude permite que o trabalho de Dani Bracchi, já citado por Mateus Sá, entre com a preponderância da palavra e que Jogo da memória, da dupla Marcela Lins e Guilherme Benzaquen, seja deslindado pela primeira vez. “É uma surpresa enorme compor esta cartografia com um projeto contemplado pelo edital de residência artística da Fundação Joaquim Nabuco que foi montado, como uma exposição, em uma galeria inteira, mas aí, quando veio a pandemia, a abertura efetivamente nunca aconteceu. Conseguimos até mostrar em Fortaleza, no Ceará, mas nunca em Pernambuco. É uma grande alegria ver sair aqui, finalmente, este trabalho sobre a greve dos canavieiros de 1979, pensado a partir de processos de insurgência e emancipação em contextos de adversidade numa época - governo Bolsonaro - em que estávamos muito desesperançosos”, explica Marcela, jornalista de formação com mestrado e doutorado também em Comunicação.
Veio, portanto, “do desejo de pensar esperança em tempos adversos” e da descoberta do episódio no livro Greve nos engenhos (Paz e Terra, 1980), da antropóloga Lygia Sigaud, o gás para que Marcela e Guilherme revirassem um passado recente, porém não tão conhecido, tampouco ensinado aqui. As paralisações de 120 mil trabalhadores em Paudalho, São Lourenço da Mata e Carpina ocorreram no mesmo ano e sob a mesma atmosfera das famosas greves do ABC paulista, que, por sua vez, catalisaram a aparição no cenário nacional de uma figura-chave para entender o Brasil pós-Getúlio Vargas – o então torneiro mecânico, um pernambuco emigrado para São Paulo ainda nos anos 1950, Luiz Inácio da Silva. Emergindo dali como uma liderança incontestável, ele fundaria o Partido dos Trabalhadores – PT em 1980 e viria a se tornar, em 2002, o presidente Lula, atualmente cumprindo seu terceiro mandato na presidência do Brasil. A história do movimento grevista no ABC, a prisão e a subsequente ascensão de Lula na política todo mundo sabe, Marcela diz. “Mas quem estuda na escola, aqui em Pernambuco, essas greves ocorridas na Zona da Mata Norte?”, indaga.
Imagem: Marcela Lins e Guilherme Benzaquen
“Para a exposição montada mas nunca vista aqui, atrás da memória nós fomos conversar com os grevistas, gente como Biu da Lu, Beija-Flor e Zé Rodrigues, e criamos um ‘gaveteiro da memória’, um móvel feito para isso em que eram distribuídas as falas deles em telegramas, que pensamos como uma correspondência, uma forma de comunicação daquele grevista com nós da atualidade. A ideia era a pessoa entrar na exposição e manusear esse material, ao mesmo tempo vendo o material fotográfico de cobertura das greves, produzido pelo fotojornalista Natanael Guedes, da Agência Jornal do Brasil, que mostramos com pequenas intervenções. Desde 2017, Guilherme e eu trabalhamos na intersecção entre história, memória e arquivo. Com este trabalho, criamos uma circulação da memória das lutas do passado e do presente”, complementa Marcela.
A palavra "circulação" desemboca em marcha ou no vislumbre de algo em curso. "O pensamento de pensar tudo isso na forma de um site veio também pelo aspecto interessante de propor, ali, uma certa mistura, uma experiência que vai sempre ter algum desdobramento. Qualquer pessoa pode entrar clicando em determinado artista e, depois, ao ver um conjunto de trabalhos, criar uma conexão", comenta Eduardo Queiroga. Nesse fluxo que se estabelece, a surpresa advém também do encontro com obras a nos apresentar uma outra faceta de um trabalho já tarimbado – como no caso de Alcione Ferreira.
Imagem: Alcione Ferreira
Fotojornalista experiente, colaboradora da Continente em diversas vezes, e também documentarista que estreou Muribeca (Brasil, 2020), codireção com Camilo Soares no ano passado, Alcione traz para o território de experimentação da Cartografia PE o que ela descreve como "esse outro lado meu da fotografia". "Comecei a ensaiar o não uso da câmera fotográfica e a trabalhar com colagens em 2012, 2013, a partir da revista Aurora, projeto que Dani Lacerda editava no Diario de Pernambuco, porque era um estímulo para se provocar e, de dentro do que fazia ali num redação, pensar em algo para além do dispositivo. Vem dessa época as fotos das meninas que passavam por medidas socioeducativas e estavam encarceradas. Foi meu primeiro trabalho com colagens, inclusive, de todos que estão expostos no site, ainda feito dentro de uma estrutura de jornal", conta.
Anos depois, já fora do jornal e sob a pandemia, ela se viu estudando e pensando fotografia dentro de casa. "Peguei todos os meus arquivos, com muitas imagens antigas que pesquisei em bibliotecas e em arquivos públicos, e comecei a trabalhar retratos de pessoas que não tinham nome. Sabe quando o que aparece na foto é apenas aquele carimbo com o nome do estúdio fotográfico, mas não o nome da pessoa retratada? Olhei para aquilo e fui criar, em 2020, ficções a partir de mulheres negras retratadas no século XIX dentro de uma lógica eurocêntrica. Comecei a criar fábulas a partir do que me afetava e fui aplicando. As colagens, para mim, nunca são um trabalho pronto; até a conclusão, até que eu consiga finalizar, podem causar angústia. Todo o movimento é o exercício de pensar, afetar e produzir: à medida que aquelas imagens vão chegando e de alguma forma vão pedindo para que eu pense sobre elas, vou produzindo em cima", situa Alcione.
Imagem: Clara Simas
Nessa arqueologia, ela se aproxima de Eustáquio Neves, Aline Motta e da nigeriana-norueguesa Frida Orupabo, outros artistas negros que, derivando do material de acervo ou mesmo dos registros anônimos de gente mais anônima ainda, vão atrás de rastrear suas próprias raízes ou de humanizar aquelas mulheres engolidas pela História. "Se a gente consegue acessar a fotografia daquela época, percebe que os dispositivos eram únicos e só reproduziam esse tipo de imagem da mulher, como se ela só pudesse ser uma escrava da fazenda tal, por exemplo", aponta a artista pernambucana.
Forjar uma imagem-símbolo de alguém, ou de um lugar, e reproduzi-la à exaustão é reduzir a possibilidade de um enquadramento que transcenda tal parâmetro. Contudo, existem as frestas, as brechas, os escapes por onde é factível implodir mitos e preconceitos que a fotografia ajudou a cristalizar. "O sertão não é um lugar encantado que você está a acessar. É um lugar que existe. É isso", resume Géssica Amorim, jornalista, fotógrafa, integrante do coletivo de jornalismo independente Acauã, moradora do município de Flores, no sertão do Pajeú pernambucano, e uma das nove artistas da Cartografia PE, em que se insere com um conjunto de 11 imagens das quais apenas uma mostra uma sertaneja – Brenda Ferreira, cuja história Géssica narrou, aliando escrita e fotografia como sempre faz (e poucos fazem igual), em reportagem publicada em agosto na agência Diadorim.
Imagem: Géssica Amorim
Só que Brenda não é uma "sertaneja típica", por assim dizer, a partir de uma tipificação ainda comum no Brasil que é de circunscrever o sertão (ou os sertões) aos clichês de fome, seca, falta de instrução, escassez de oportunidade: ela é vaqueira, é casada com uma outra mulher, Hellayne, é altiva e encara a lente de Géssica como quem não deve nem teme. O mesmo brio se vê no retrato de Aparecida, menina de 11 anos e já vaqueira também, que Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos levaram para compor o mar criativo, artístico, afetivo e político da exposição Negros na piscina, montada – com 210 obras e cerca de 60 artistas – para a terceira edição do Fotofestival Solar como uma das mostras de abertura da Pinacoteca do Ceará - conforme a Continente publicou em sua edição #270, em junho deste ano (leia a matéria aqui).
Não estão a chorar, nem carregam dor em suas faces estas mulheres do sertão. "Acho que as minhas imagens são parte do que é o sertão, e não como se eu estivesse no caminho de tentar criar outro sertão. Porque o sertão é fluido: está em movimento, como qualquer outro lugar do mundo com suas questões e seus problemas. Não tento variar, no sentido de tentar mudar essa imagem congelada. Eu não sinto que tenho que me esforçar para mudar essa imagem porque não é um esforço muito grande a hora em que fotografo: é o que o estou vendo ali, é o que tenho diante de mim, o que está dentro dessa variação. Só que existe o estereótipo nas imagens clássicas e que são reproduzidas até hoje, como da seca, das pessoas com expressões travadas ou tristes. Isso é algo que obviamente existe, que entra nessas variações… E sertão não é só isso, mas é também. Então, se um dia eu fotografar aqui um espaço seco com alguém com uma expressão triste, não vou me sentir mal, porque isso também está ali. Mas a questão é reproduzir sempre essa imagem, se apegar ao tema dessa maneira, se agarrar a isso porque vende, porque é o que as pessoas gostam de ver, enfim…", observa Géssica.
Seu jeito de fitar o lugar onde nasceu, vive e produz tem contribuído com a renovação do olhar que para lá se dirige. "Minha geração fotografou o sertão se sentindo meio como fotógrafo da National Geographic quando ia para lá. Por mais vezes que eu fosse, por mais sentimento que surgisse, era sempre como se eu fosse uma pessoa desta revista fazendo esta viagem. E aí Géssica Amorim faz do terreno de casa a sua fotografia, altera a paisagem de um jeito poético e tem uma relação com esse mundo que é tão pessoal e tão forte que me emociona vê-la. Quando fizemos a entrevista com ela, foi muito interessante porque ela disse assim 'gente, eu estudo jornalismo, não sou fotógrafa'. Ela negou a fotografia profundamente", lembra Pio Figueiroa. "E parece que, por negar, ela de alguma forma não tenta imitar os procedimentos. Diferente de nós, que ficamos ali sonhando em ser da National Geographic, ela faz dos arredores da sua casa o seu terreno, com seus elementos e sua altivez, em tipo de trabalho no e do sertão que para mim é uma escola e que nos leva, inclusive, a rever o nosso papel", acrescenta um dos idealizadores do projeto.
Imagem: Dani Bracchi
Para ela, foi preciso se afastar para ter consciência do horizonte que lhe cerca e lhe constitui, tal qual Gilberto Gil canta em Back to Bahia – "como se ter ido fosse necessário para voltar": "Meu trabalho é também um reconhecimento do meu território. Morei cinco anos em São Paulo e, quando eu volto para o Nordeste, para o sertão, para o lugar onde eu nasci, é que começo a reconhecer esses elementos, essas situações, muita coisa que sempre esteve ao meu redor e que, de certa forma, eu não enxergava quando estava aqui. Quando eu vou para longe, começo a ver isso de um outro lugar. É como se fosse tudo muito grande e você precisasse se afastar de algo tão grande assim para ver na totalidade. Ou pelo menos tentar, sabe?".
Suas tentativas lograram êxito. "Todas as vezes que eu for ao sertão na minha vida, agora vou com o olhar dela, e fico torcendo para que sejam trabalhos que eu não consiga mais fazer sozinho, e sim mobilizando pessoas e olhares que têm esse tipo de propriedade. Não recusaria um trabalho no sertão mas tentaria ter Géssica junto para transformar numa espécie de trabalho coletivo, porque é muito emocionante entender o procedimento dela e curioso ver sua maturidade de fazer tudo de fato na primeira pessoa e de acessar esse mundo com muita sensibilidade. Ela adora as coisas, as pessoas, a figura que ela visita na comunidade do lado, os tipos de enfeites, as tecnologias, as aventuras, e trata isso com muita propriedade. É muito bonito", enfeixa Pio.
A sensação que ele partilha sobre o trabalho de Géssica Amorim, com suas fotografias nas quais santos e altares dividem o protagonismo com objetos do cotidiano como uma cama ou máquina de costura, envoltos na poesia que ela conjura, pode ser estendida a todos os outros trabalhos do site – são obras que desafiam, comovem e permanecem em nossa retina, dentro de nós, mesmo se vistas no celular, num computador ou num telão. Existem outras e outros artistas no foco do trio que desenhou a Cartografia PE – "Esta é a primeira temporada, sim, porque a ideia é ampliar e trazer outros nomes para o projeto", garante Mateus Sá – mas há algo nesta seleção inicial que nos conduz, diretamente e de volta, ao "puro enigma" da fotografia em si e ao desfecho do poema de Carlos Drummond de Andrade que abre este texto:
Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo
a viajar, a surpreender
a tormentosa vida do homem
e a esperança a brotar das cinzas.
LUCIANA VERAS, jornalista.