Três anos atrás, quando o mundo estava em suspenso, não havia vacinas para covid-19 e todos nós lidávamos com lockdown, tristeza, medo e confinamento, Alcione e Camilo partilharam com a Continente suas impressões sobre os rumos de Muribeca. “Nossa ideia, nosso sonho, enquanto artistas e realizadores, seria fazer a primeira exibição na própria comunidade, junto com os moradores e ex-moradores. No entanto, além da decisão da 5ª Vara da Justiça Federal, que autorizou a derrubada de todos os blocos do conjunto, fato presente no documentário, estamos vivendo e nos adaptando ao isolamento social. Isso mudou completamente nossa realidade e nossas estratégias de divulgação e distribuição do longa”, comentava, à época, Alcione.
“Ao estrear no FIDBA, vimos que a mudança para plataformas online nos grandes festivais acaba sendo interessante para produções independentes e documentários, que normalmente têm pouco espaço no circuito comercial. Tivemos já um bom retorno do público, inclusive da comunidade da Muribeca, que pôde assistir pela internet, onde o filme ficou disponível por 72 horas”, acrescentava Camilo, fotógrafo e professor, sócio da produtora Alba Azevedo e da escritora e dramaturga Renata Pimentel na Senda.
Os diretores Camilo Soares e Alcione Ferreira com Manoel Carlos, um dos personagens do filme. Foto: Rafael Cabral/Divulgação
É curioso perceber que, em 2023, já temos vacinas, o verbete lockdown saiu do nosso léxico cotidiano, o Brasil tem um novo presidente, porém seguimos, talvez justamente porque o estado de suspensão do mundo foi revogado e voltamos à “normalidade”, alheios a questões relevantes como a gradual desintegração de uma comunidade. Muribeca, localizada na vizinha Jaboatão dos Guararapes, fica a 25 km do Marco Zero do Recife. É a mesma distância, por exemplo, do Marco Zero para a Arena de Pernambuco, estádio construído para abrigar as partidas da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo em 2014. No entanto, a população pernambucana é muito mais acostumada a ver a Arena no noticiário – seja porque os clubes locais vez por outra jogam lá, seja porque o espaço ainda é alugado para shows – do que a ouvir qualquer notícia sobre a Muribeca.
Por isso que Muribeca, o documentário, é obrigatório: porque nos conduz a um confronto necessário com o nosso próprio esquecimento. Em 1982, 69 blocos de 32 apartamentos foram inaugurados no Conjunto Habitacional da Muribeca. Em 1995, foram verificados os primeiros problemas estruturais. Em 2012, a Caixa Econômica Federal foi condenada a reconstruir todos os blocos. Em 2019, a 5ª Vara da Justiça Federal decretou a demolição de todas as edificações e o despejo dos moradores. Tais dados, que o filme apresenta no final, antes dos créditos, são importantes porque materializam a profusão de sentimentos alinhavados pela narrativa. Na teia de “resistência, pertencimento e afeto”, dezenas de pessoas, todas vinculadas àquele território condenado, porém de certa forma ainda fértil, falam de si, do bairro, da falência da política habitacional e do enclave entre passado, presente e futuro.
“Com tais fragmentos foi que escorei minhas ruínas” é um verso do poeta norte-americano T. S. Elliot escolhido pela dupla de diretores para abrir o filme. E a primeira voz que ouvimos, em off, é de alguém que narra as primeiras linhas de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. No romance, o escritor colombiano inventa uma geografia física, sentimental e política para Macondo e nos leva a nos apaixonar por uma cidade que não existe. Macondo é ficção. T.S. Elliot é poesia. O cinema é uma linguagem potente para radiografar e remodelar a realidade. E Muribeca, que não é ficção nem poesia, sabe se apropriar de elementos que ora ressaltam o quão ficcional pode ser nossa realidade (as imagens de arquivo de uma enchente, as imagens atuais que mostram os animais e a natureza invadindo o concreto arruinado), ora lembram que a poesia se imiscui nas áridas brechas do real.
Inês. Foto: Frame do filme/Divulgação
Leônia. Foto: Frame do filme/Divulgação
É assim que vemos Miró da Muribeca, poeta falecido no ano passado, uma cria do bairro com quem forjou vínculos tão fortes ao ponto de adotá-lo como sobrenome, sentado no chão de um apartamento vazio. É assim que vemos o conjunto de prédios agora envolto na sombra do abandono ser enquadrado pelas lentes de Alcione e Camilo (os dois assinam roteiro, direção e também a fotografia) com delicadeza e cuidado, sempre com alguém em foco – ora a dona de uma papelaria-símbolo da máxima “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, ora Flavão, ilustrador que assina o lettering e o pôster do filme e morou por décadas lá; ora ainda uma pessoa que toca berimbau, outra que recorda a rádio comunitária, Manoel Carlos, o artista e agitador do bairro, e uma filha que lembra a emoção do pai em receber a conta de luz com o endereço da sua casa própria. Porque é a nossa presença humana, afinal, que dá sentido a essa loucura que é viver, estar e ocupar um lugar na Terra, não?
São as pessoas, pois, que dão sentido a Muribeca, cujo nome vem do tupi “merobeca”, uma mosca inoportuna. Ali era região canavieira, uma lembrança atesta. Ali cinco mil famílias foram afetadas pela ordem de despejo e demolição – situa outra pessoa. Mas ali não é apenas uma obra de engenharia que, em função de uma tecnicalidade, vai ter que ser posta abaixo. É um bairro, uma comunidade, uma encruzilhada de sonhos, direitos (conquistados e ignorados) e gente. E o filme de Alcione Ferreira e Camilo Soares, bem-equilibrado pelo ritmo da montagem de Paulo Sano, dá a dimensão de sonhos e direitos em colapso, mas principalmente das pessoas que sonham e batalham (não existe verbo mais adequado) para que tudo aquilo não chafurde na vala comum do esquecimento, algo tão corriqueiro nas tragédias cotidianas do Brasil.
Miró da Muribeca. Foto: Frame do filme/Divulgação
Por fim, se o real não se dispõe na chegada nem na saída, se apresentando bem no meio da travessia, como ensina Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, Muribeca é um documentário-travessia. Um barco a singrar um rio de memórias e lágrimas, colecionando lembranças áridas e doces enquanto segue em frente, no dever de nunca esquecer, por esse rio altivo, que corre largo, sem secar.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.