Resenha

“Ainda não é amanhã”: o aborto em foco

Com naturalidade, o longa-metragem de estreia da cineasta pernambucana Milena Times narra a história de uma jovem que decide interromper a gestação

TEXTO Laura Machado

04 de Junho de 2025

Foto Divulgação

Janaína tem 18 anos, é moradora de um conjunto habitacional na periferia do Recife e é a primeira da sua família a entrar na universidade. Ela tem uma amiga muito próxima e um namorado, e quando não está completamente dedicada aos estudos do Direito, se diverte com eles durante os finais de semana. Um dia, a vida da menina é ordinária como qualquer outra, e, no outro, ela se descobre grávida. Em Ainda não é amanhã, longa-metragem de estreia da cineasta Milena Times que chega nesta quinta-feira (5) aos cinemas brasileiros, Janaína é só uma personagem, mas poderia muito bem ser uma mulher real.

No Brasil, a gravidez indesejada é uma realidade para muitas e a história ficcional de Janaína reflete as situações verdadeiras enfrentadas por um número avançado de meninas e mulheres. De acordo com pesquisa da empresa Bayer, em parceria com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e realizada pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), 62% das mulheres brasileiras já passaram por uma gravidez não planejada. É importante pensar sobre esse número: quantas dessas gravidezes não planejadas acabaram em aborto?

No filme, essa é a escolha da protagonista desde os primeiros momentos em que se depara com o teste de gravidez marcando positivo. A partir de então, o espectador caminha junto de Janaína por pesquisas na internet, noites maldormidas e o medo oriundo da impossibilidade de realizar um aborto seguro. Isso acontece porque, mesmo que 6 a cada 10 gravidezes não planejadas termine em aborto e hoje no mundo, 45% das operações abortivas não sejam seguras de acordo com a Organização Mundial de Saúde, o procedimento não é assegurado pela lei brasileira.

Assim sendo, Ainda não é amanhã é uma obra que aproxima a arte cinematográfica de uma questão extremamente atual e polêmica na sociedade através de um olhar despido de preconceitos. Em tela, o filme se propõe a contar a história de uma mulher que escolhe interromper a própria gestação de uma maneira realista e acima de tudo, humana.

“A discussão em torno do aborto em alguns momentos se torna muito conceitual. Ficamos elucubrando sobre em que momento começa a vida, até que ponto essa vida é ou não é sagrada e isso vira um debate que muito facilmente pode se tornar abstrato. A gente quis trazer justamente para o lado pragmático, que é aquela pessoa e o que ela decide fazer com a própria vida. Trazer a pessoa por trás da decisão sempre foi o nosso foco”, explicou Milena à revista Continente.

Atuando como diretora e roteirista do longa, Milena contou que foi ainda em 2016 que o argumento do filme começou a ser pensado e escrito. Em 2017, foi aprovado no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e as efetivas gravações aconteceram durante novembro de 2022 e a estreia internacional se deu no Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata. Desde então, o longa acumula mais de dez prêmios, a exemplo de Melhor Atriz para Mayara Santos na mostra première Brasil – Novos Rumos no Festival do Rio, Melhor Direção para Milena Times e Melhor Filme pelo Júri Jovem no 19º Fest Aruanda.

Foto: Divulgação

Na trama de Ainda não é amanhã, Janaína é interpretada pela atriz Mayara Santos e é interessante perceber a construção de sua personagem. Em casa, ela vive com a mãe (Clau Barros), que trabalha em um salão de beleza, e a avó (Cláudia Conceição), que faz bicos como diarista, apesar da idade avançada. Recém-ingressada na faculdade de Direito, a jovem carrega dentro de si a vontade de proporcionar a aposentadoria da avó e uma condição melhor para a mãe. Inteligente, ela também logo conquista o título de monitora em uma das matérias da faculdade. Por todos os ângulos, a protagonista do filme é uma menina esforçada que evoca a torcida de todos para que, através da sua dedicação nos estudos, ascenda socialmente.

Cuidando de um filho, Janaína conseguiria ser essa força motriz de mudança que tanto deseja? A resposta para essa questão não é para onde o percurso do filme nos leva. Afinal, a resposta é incerta e pouco importa. O que importa de verdade é mostrado de maneira muito evidente: o poder de escolha.

Ao tomar essa decisão, a vida da protagonista passa a ser muito mais solitária, dolorosa e árdua do que antes, mas algo que a diretora destaca é que acredita no seu filme como uma forma de mostrar que a interrupção de uma gestação “não é uma experiência banal para ninguém, nunca vai ser, mas também não precisa ser a pior coisa que acontece na vida de uma pessoa”. Sobre o assunto, ela completa: “Talvez o repertório de imagens e a forma como o próprio cinema aborda essa questão seja tão exagerada que, quando você trata disso com um pouco mais de sobriedade, pé no chão e franqueza, você também cria um novo repertório para encarar o tema”.

Sobre interpretar uma personagem que passa por um momento de grande angústia, Mayara disse ter estado “confortável no desconforto” de Janaína e evidenciou como interpretar a jovem mudou a si mesma, fora das telas.

“Foi realmente uma forma de ‘sentir na pele’ o quanto é solitário passar por isso. Mesmo tendo escuta e auxílio, como no caso da Janaína,  não anula a dor e a solidão desse processo que é tão difícil. Foi sensível em um ponto que, quando eu precisei ser a Kelly, que é a amiga de Janaína, eu entendia que tinha que escutar, acolher, ir junto”, contou a atriz.

“O filme trouxe uma experiência, até para quem estava atrás das câmeras, de se relacionar com o seu íntimo sobre aquele tema, porque para além do debate público, do que a gente pode falar coletivamente, o filme pode provocar um debate interno, e esse debate é o que vai ficar”, destacou ainda a produtora do longa, Thaís Vidal.

Em suma e disponível para assistir nos cinemas, Ainda não é amanhã é um filme afetivo sobre a decisão de uma jovem mulher. Aparentemente simples, ele carrega em si o poderio de sensibilizar espectadores através de um convite para a empatia com a protagonista. Aqui, o aborto é tratado sem rodeios, não como uma decisão politica e ideológica, mas simplesmente como uma escolha a ser feita.

LAURA MACHADO, repórter das revistas Continente e Pernambuco

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