Cobertura

Um novo lugar para a arte

Abertura da Pinacoteca do Ceará e uma série de movimentações culturais colocam Fortaleza no centro da cena artística nacional

TEXTO Luciana Veras

01 de Junho de 2023

A Pinacoteca do Ceará se localiza na Praça da Estação, no Centro de Fortaleza

A Pinacoteca do Ceará se localiza na Praça da Estação, no Centro de Fortaleza

Foto MARÍLIA CAMELO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]

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Quando a Pinacoteca do Ceará foi aberta, em 3 de dezembro de 2022, o Brasil vivia a efusividade da Copa do Mundo do Qatar. Dois dias depois daquele sábado em que se abriam as portas da nova adição à rede pública de espaços e equipamentos culturais da Secretaria de Cultura – Secult CE, a Seleção Brasileira jogaria a partida das oitavas de final contra a Coreia do Sul, vencendo por 4x1 e se classificando para enfrentar a Croácia na etapa seguinte. A Canarinho seria derrotada nos pênaltis, como bem se sabe e até hoje se lamenta. Seis meses depois, contudo, Fortaleza se vê bem menos refém desta melancólica lembrança e muito mais em êxtase por sediar um equipamento que, nem bem nasceu, já pode ser apontado como um dos mais valiosos da região e também do país.

Porque, se a inauguração da Pinacoteca do Ceará, em comparação à campanha do Brasil no torneio futebolístico mundial, é um golaço, talvez por isso a metáfora da bola tenha surgido com naturalidade no seminário Negros na piscina, ocorrido no último final de semana de abril em consonância com a exposição homônima que ocupou, de dezembro até maio, o pavilhão 1 do equipamento. “Quero parabenizar o Ceará em relação ao que vem sendo feito culturalmente”, dizia a pernambucana Fabiana Moraes, jornalista, professora e curadora de Negros na piscina ao lado de Moacir dos Anjos. “Estes equipamentos públicos são gratuitos e os lugares onde estão construídos, e ao que se referem, são muito importantes. São símbolos de resistência, mas não só isso: são a expressão de que a resistência pode ser feita no baile, na dança, no drible. Gosto muito dessa palavra drible e este equipamento é um drible dado, inclusive, no governo anterior, que estava aí quando foi inaugurado. Se isso não é um grande drible, nada mais é”, emendava.

Concebida para a segunda edição do Fotofestival Solar, Negros na piscina, com 210 obras de cerca de 60 artistas, foi uma das mostras de abertura da Pinacoteca do Ceará, cuja gestão é partilhada entre a Secult CE e a organização social Instituto Mirante de Cultura e Arte. Diretor do Mirante e idealizador do Solar, o fotógrafo Tiago Santana fez uma linha de passe com Fabiana Moraes: “Venho há oito anos nessa missão de construir, junto com vários companheiros, este drible, este sonho da Pinacoteca. O Solar sempre teve uma posição política muito contundente – nossa primeira exposição, Terra em transe, com curadoria de Diógenes Moura, falava do Brasil profundo, complexo, com toda a diversidade, mesmo quando o país vivia o abismo de 2018. Em 2020, não fizemos o festival por causa da pandemia. Em 2022, sabíamos que obviamente seria em dezembro, mas não sabíamos qual seria o resultado da eleição. Porém, estávamos apostando na mudança, em viver um novo tempo, e queríamos aquele momento do Solar para pensar a esperança e o futuro com o vento bom que viria pela frente. Não sabíamos, mas acreditávamos que iria acontecer. Ainda bem que deu certo”.

Como uma boa finta a desnortear o oponente, o drible se concretizou em um jogada de vários craques. O descerrar das cortinas da Pinacoteca, localizada na Praça da Estação, no centro da capital cearense, começou em 2011, quando sete galpões da antiga Rede Ferroviária Federal S/A – RFFSA foram cedidos pela União para requalificação das fachadas, datadas de 1926 e tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Primeiro, houve a desapropriação de 25 mil m²; em 2019, tal lote se expandiu para 67 mil m², abarcando a Estação João Felipe e imóveis vizinhos. Hoje, a Pinacoteca do Ceará tem 9.275 m² de área total – para fins de cotejo, sua congênere de São Paulo tem 7.462 m² – e ancora o Complexo Cultural Estação das Artes, composto ainda pelo Mercado AlimentaCE, Estação das Artes, Kuya – Centro de Design do Ceará, Museu Ferroviário João Felipe e pelas futuras sedes da Secult CE e do Iphan.

O período de oito anos ao qual Tiago Santana se referiu, incluindo a gestão do seu irmão Camilo Santana – atual ministro da Educação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – no governo do estado, é, na verdade, um pequeno trecho do percurso traçado pela classe artística local. “Houve diversas tentativas de implementar o equipamento, começando lá atrás, nos anos 1940, com a Sociedade Cearense de Artes Plásticas – SCAP. Nos anos 1990, participei de várias discussões. Agora comemoramos os 25 anos do Instituto Dragão do Mar, e 24 anos do Centro Cultural Dragão do Mar, que nasceu revolucionando com várias possibilidades; mas, na verdade, sempre houve a carência e a promessa de um outro espaço. O governo anterior tinha um projeto que não foi executado nesta área da antiga estação, onde, por exemplo, existia o primeiro relógio público do Ceará que não era de uma igreja. Nestes galpões que armazenaram algodão e café chegaram a acontecer bienais de arte e de teatro. Quando Camilo assumiu, como os galpões já estavam em comodato, ele pensou que fazia mais sentido investir não apenas neles, mas em todo complexo abandonado”, conta Rian Fontenele, artista visual e diretor da Pinacoteca.


Negros na piscina ocupou, durante cinco meses, o pavilhão 1, com 210 obras de 60 artistas. Foto: Marília Camelo/Divulgação

Ele explica que, embora o nome seja do século XIX, o espaço refuta qualquer pendor restritivo: “Abrimos como um museu de arte contemporânea e um lugar de diálogo entre memória, na missão de salvaguardar, inventariar, difundir e fruir este acervo do governo do estado, e educação e formação. E com uma reflexão contundente sobre o pensamento crítico necessário para ações e políticas afirmativas. Inauguramos com a mostra Bonito pra chover, onde pegamos o acervo não só da Pinacoteca, mas de todas as instituições estaduais, montamos uma exposição com obras públicas e fizemos uma ligação direta com jovens artistas convidados para que surgisse a ideia de pertencimento. E trazemos um conceito de ‘museu-ateliê’. Como artista, sei que o ateliê não é apenas o lugar de feitura de obra, isso seria o mais elementar; na verdade, é um lugar de memória, de referência e, sobretudo, de experimentação. Somos um museu público, gratuito, acessível e aberto a todas as possibilidades. Temos o Ceará no nome, não precisamos nos restringir ao exercício local: somos um museu regional, nacional e internacional e, em quatro meses, tivemos mais de 60 mil visitantes”.

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Até 14 de maio, último dia de Negros na piscina, ao todo 65.479 pessoas circularam pelo espaço, ratificando a Pinacoteca como um programa cultural consolidado em menos de um semestre e alargando o horizonte de apreciação da arte contemporânea. Esta exposição era um convite ao mergulho em um rico manancial estético e político a conectar artistas consagrados, como Walter Firmo, Marepe, Virginia de Medeiros, Efrain Almeida e Paulo Nazareth, cuja obra batiza a mostra; figuras canônicas como Arthur Bispo do Rosário, Bajado e os mestres Cunha, Vitalino e Didi; nomes da contemporaneidade, como Gê Viana, Val Souza, Retratistas do Morro e Panmela Castro; a presença cearense das Terroristas del Amor; e fotógrafos pernambucanos como Alcione Ferreira, Marlon Diego e Géssica Amorim.

Duas semanas antes, Marlon e Géssica estavam no seminário com a mesa Sertões, metrópoles: Reolhar as periferias. Os dois são jornalistas formados pela UFPE. Géssica, integrante do coletivo de jornalismo independente Acauã e moradora do sertão do Pajeú, está na exposição com o retrato de Aparecida, uma vaqueira de 11 anos do Sítio Cachoeira: “O sertão é sempre visto como estático, congelado, mas quem é de lá sabe que está vivo, em movimento”. Marlon exibe três imagens – La Ursa do Janga (2016), É do Brasil… (2018) e Amores de Brasília Teimosa (2020). “É muito bom se ver na parede”, comentava o fotógrafo, “e poder dialogar com pessoas além da minha bolha”. “O convite para que os dois viessem ao seminário foi, também, para escutar as vozes de pessoas que ainda não circularam muito com seu trabalho. Chamá-las, também, a entrar na piscina”, observa Fabiana Moraes.

Até porque, ela e Moacir dos Anjos concordam, “Negros na piscina remete, de imediato, a uma imagem de subversão”. “À presença possível de certos corpos em espaços a eles não destinados na história do Brasil, espaços de diversão ou descanso, mas não somente. Piscina é também casa, é comida na mesa, é acesso à educação e à saúde. Piscina é muita coisa: festa e trabalho, gozo e segurança. É frase que resume a vontade e a precisão de um levante contra interdições. Contra o impedimento a uma vida plena que é fruto de séculos de colonização e de seus desdobramentos recentes; de predações de certas gentes e de seus descendentes. É chamado que reage ao processo que produziu, ao longo do tempo, possibilidades desiguais para corpos brancos e não brancos buscarem autonomia de vida. Assimetria ancorada, portanto, na origem étnica e na cor da pele de cada habitante do país. O substantivo negro, contudo, não designa somente as pessoas de tez mais escura do que a considerada, por normas não escritas, como branca o bastante para permitir o acesso às piscinas que existem”, escrevem no texto do catálogo.


Pernambucanos Moacir dos Anjos e Fabiana Moraes, curadores da exposição.
Foto: Marília Camelo/Divulgação

Os dois citam o filósofo camaronês Achille Mbembe, para quem “a destituição da humanidade dos povos negros pela empresa colonial também alcançou, antes e principalmente agora, outros grupos de gentes”, engendrando um ‘devir-negro do mundo’. “Os povos indígenas são, nesse sentido, negros. Assim como os muito pobres ou as pessoas transgêneras, tenham ou não pele escura. Se a possuem, são mais negros ainda. Generalizou-se – com o agravante, por vezes, da institucionalização – a negação dos direitos mais básicos para tantos e tantas, assim como se destituiu, deles e delas, o poder de inventarem outros modos de existência – vidas tornadas precárias e postas, por isso, em condição de risco permanente”, complementa a dupla de curadores.

“Na infância, nunca fui à piscina. Meu corpo não era bem-vindo”, diria Neon Cunha, “mulher, negra, ameríndia e transgênera, nessa ordem de importância, e ativista independente”, como se define em seu perfil no Instagram. Nascida em Belo Horizonte e há muito radicada em São Bernardo do Campo, em São Paulo, ela veio ao seminário para a mesa A dimensão eterna de um elogio ao lado do fotógrafo João Bertholini, autor da série de 12 fotografias Ester dançando Vogue (2019), que capturava qualquer olhar na primeira sala da exposição. Neon resumiria: “Me vi nessa exposição, me vi na capa do LP Elza pede passagem, me vi em Ester, que é o deboche, e me vi nas imagens dos Retratistas do Morro, com as pessoas orgulhosas de ter a roupa do domingo, que é a roupa de baile. Isso não é uma pinacoteca, é um fenômeno do Brasil e do mundo”.

Para João Bertholini, que desde 2013 registra a população LGBTQIAP+, a arte opera para “encurtar as distâncias”. Travesti negra e pobre, Ester morreu em novembro de 2020, três dias após ser queimada viva – um destino brutal e reincidente no país que mais mata pessoas trans no mundo. “A utopia é algo a que a gente nunca vai chegar, mas que é preciso ter. Acredito na utopia da arte para encurtar distâncias. A graça da fotografia é a tal subjetividade e ela sempre vai devolver alguma coisa para quem a olha, encurtando o que nos separa. A gente não tem o direito de esquecer Ester”, comentou.

“Eu quero nascer. Eu quero viver”, bradam os versos de Candeia em Preciso me encontrar, estampados em uma das bandeiras de Haroldo Saboia. Viver com plenitude e dignidade passa, também, pela democratização do acesso a exposições como Negros na piscina e Bonito pra chover. “Sabemos que, muitas vezes, pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social não se sentem confortáveis em equipamentos culturais, no entanto, está na nossa missão sermos um equipamento plural e inclusivo”, afirma Ana Javes Luz, diretora executiva da Pinacoteca do Ceará.

“Por isso, temos trabalhado diversas articulações com grupos sociais distintos, tais como os moradores do entorno, via Núcleo de Articulação Comunitária Afirmativa do Instituto Mirante, e alunos de escolas públicas, através de visitas mediadas em que a Pinacoteca assegura transporte e lanche. E estamos ofertando cursos, aulas e oficinas voltadas às temáticas LGBTQIA+, da negritude, dentre outras. Em breve, devemos fazer uma ação para os trabalhadores do comércio. Nosso horário de abertura já foi pensado visando atrair o comerciário: abrimos na hora do almoço, às 12h, e fechamos às 20h, de quinta a sábado, para que esse trabalhador possa usar o intervalo de almoço ou a saída para nos visitar”, corrobora.

A Pinacoteca do Ceará abre, ainda, aos domingos, das 10h às 18h, com entrada franca. Detalhe crucial: a Praça da Estação, bem-assistida por linhas de ônibus, fica próxima a outros pontos cardeais do centro de Fortaleza, como o Cine São Luiz, o Mercado Central e o Centro Dragão do Mar.

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Bonito pra chover é uma alusão ao professor e crítico cearense Gilmar de Carvalho, falecido recentemente. A frase pressupõe a beleza do céu como o indício da fartura que tende a desaguar com a chuva. “Vai se arar uma nova colheita”, sintetiza Rian Fontenele. Sob este arco simbólico abrigam-se três exposições, que permanecem em cartaz até dezembro deste ano. A primeira, no pavilhão 2, é Se arar, coletiva de artistas cearenses a congregar tradição e vanguarda a partir de 188 obras em sete eixos temáticos – “O que pode um acervo?”, “Cearás fabulados”, “Espelho fabulado”, “Ancestralidade e natureza”, “Dilatações visuais”, “Multiespécies” e “Artivismo e vitalismo” – e com curadoria de Cecília Bedê, Herbert Rolim, Lucas Dilacerda, Maria Macêdo e Adriana Botelho. Entre os artistas, Aline Albuquerque, Waléria Américo, Yuri Firmeza, Charles Lessa e Leonilson (1957-1993).

O pavilhão 3 se reparte entre duas homenagens centenárias: No lápis da vida não tem borracha, com curadoria de Rosely Nakagawa, uma grande retrospectiva de Aldemir Martins com 168 obras entre desenhos, pinturas e vídeos. “Aldemir é a própria origem da palavra desenho. Desenho que vem de desejo, desígnio”, nas palavras da curadora; e Amar se aprende amando, o maior conjunto de estudos, desenhos e pinturas já pensando e coligido a partir da vida e obra de Antonio Bandeira. São centenas de obras a radiografar a breve, porém intensa, produção de Bandeira, que faleceu em 1967, com apenas 45 anos, em Paris. Pela primeira vez os esboços e rascunhos são apresentados, deslindando o processo criativo de um ás figurativo, enaltecido por Carlos Drummond de Andrade no poema que nomeia a exposição e começa assim: “caro pintor bandeira, que a tua mão certeira encontra a cada dia essa fina alegria de reinventar o mundo, tornando-o mais profundo, mais claro e vaporoso”.

Das 645 telas, quadros e objetos expostos, apenas um é emprestado, o que denota a robustez do acervo recém-nascido. Além dos ateliês e laboratórios para cursos do programa de formação, do auditório, da loja, do café e dos espaços multiusos, que podem ser vistos por qualquer pessoa, a Pinacoteca do Ceará é equipada com “laboratório de conservação, restauro e higienização; ampla reserva técnica climatizada com padrões térmicos e de controle de umidade adequados para a manutenção do seu acervo, ambiente para pesquisa e catalogação”, como informa a assessoria de comunicação.

Na opinião de Bitu Cassundé, curador de Amar se aprende amando e atual gerente de memória e patrimônio do Centro Cultural do Cariri, no Crato, o zelo da reserva técnica e o apuro na conservação das obras traduzem a excelência não apenas do projeto, mas da política cultural. “O Ceará se transformou numa grande referência para repensar as estruturas educacionais e culturais, muito a partir das formações do Instituto Dragão do Mar nos anos 1990. A ebulição das últimas décadas resulta agora na possibilidade de maturação de uma política mais cara a essas novas estruturas - ou seja, sair do lugar de reflexão e ir para um lugar mais operacional, da prática, do fazer. Todos estes novos equipamentos chegam com a expertise de vários profissionais que vêm sendo lapidados em experiências institucionais. É louvável constatar que, no momento em que o Brasil implodiu sua cultura, o estado conseguiu sobreviver à aridez e à violência do governo Jair Bolsonaro e virou um oásis dentro do caos. A Pinacoteca é resultado de uma série de investimentos, de uma renovada formação de profissionais e de um pensamento mais contemporâneo de reestruturação dos próprios equipamentos, com extremo cuidado na conservação técnica, trazendo pessoas muito qualificadas para trabalhar na articulação e na preservação de distintos acervos”, testemunha.

Inserido em um parque localizado a cerca de 540 km de Fortaleza, o Centro Cultural do Cariri, cuja área expositiva é maior do que a Pinacoteca do Ceará, está na malha formativa e museológica da Secult CE. “A natureza é um dos eixos principais, assim como o esporte, e a ideia é que o centro se articule com os 29 municípios da região do Cariri através de ações relacionadas à formação, à memória e à relação entre a tradição e o contemporâneo. Nesse momento, estamos no processo de ativação dos espaços expositivos, porém já existem ações de cunho formativo e educativo nas áreas externas. No segundo semestre, as galerias de arte já estarão funcionando e iniciaremos outras ativações internas, como o planetário e o teatro, um espaço extremamente sofisticado tecnicamente, com capacidade para 600 pessoas, que vai servir como um ‘teatro-escola’”, adianta Bitu Cassundé.


Exposição Amar se aprende amando fica em cartaz até dezembro no pavilhão 3.
Foto: Marília Camelo/Divulgação

É difícil conhecer a Pinacoteca do Ceará e não se indagar: por que uma iniciativa tão sólida e relevante não repercute na imprensa brasileira? Desde dezembro de 2022, para além dos mais de 65 mil visitantes, transcorreram 46 ações formativas, três seminários, sete cursos e oficinas, oito aulas abertas e o lançamento do 1º Edital de Pesquisa e Criação com 12 bolsistas e do Ateliê de Pesquisa e Crítica para 40 pesquisadores. Em maio, a Associação Brasileira de Críticos de Arte – ABCA anunciou os finalistas da sua premiação anual e a instituição cearense concorre em “Destaques regionais”, na categoria Nordeste, ao lado do artista pernambucano Raul Córdula e do Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM-BA.

Ainda não há previsão para anúncio dos vencedores, mas o rótulo “destaques regionais” acende o alerta: há um inegável “sudestecentrismo”, por assim dizer, na estrutura da produção e difusão artísticas e na legitimação de equipamentos “fora do eixo” – por mais que soe anacrônica, tal expressão segue vigente. “Como trabalhamos a partir desta hegemonia? Descentralizando a construção da identidade da cultura brasileira. É importante montar uma articulação com o Cais do Sertão e o Museu do Homem do Nordeste, em Pernambuco, com a força dos equipamentos de Belém do Pará e com a potência do MAM-BA para de fato nos colocarmos publicamente como uma grande rede de construção, debate, experimentação, referência e memória da cultura brasileira. Dizer que somos um museu cearense, e que esses museus são pernambucanos, paraenses ou baianos, é um olhar redutor e uma grande tolice. Somos artistas do contemporâneo. E a ironia é que não há nada mais contemporâneo do que a arte popular. Para 2024, queremos fazer uma grande relação entre arte, tecnologia e o popular”, antecipa Rian Fontenele, diretor da Pinacoteca do Ceará.

“A partir do acolhimento e retorno que temos recebido de visitantes cearenses, do Nordeste e de outras regiões do Brasil e do mundo, nos parece evidente que a Pinacoteca do Ceará vem ocupar um lugar de destaque no país. É muito importante lembrar que esse equipamento foi inteiramente financiado com recursos do tesouro de um estado com enormes desafios econômicos e sociais”, pontua a diretora executiva Ana Javes Luz.

A Secult CE não descortina o orçamento da obra arquitetônica e de engenharia em si, executada entre janeiro de 2020 e novembro de 2022, mas divulga que o orçamento para primeiro contrato de gestão em 2022 foi de cerca de R$ 12 milhões. Em 2023, serão alocados R$ 11,3 milhões. “Essa vontade política é reflexo da aposta na cultura como potencializador do desenvolvimento social e educacional do seu povo”, corrobora Ana.

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Em abril, a plateia do seminário Negros na piscina pleiteou que a exposição virasse permanente, o que comoveu o curador pernambucano Moacir dos Anjos. “Todo museu, todo centro cultural, é, antes de tudo, um equipamento educativo. As exposições se entrelaçam com os debates, com as projeções, com as coreografias e com as palavras. Fabiana e eu estamos muito orgulhosos de participar com uma das exposições inaugurais deste espaço”, enunciou ao auditório lotado.

Esta foi a segunda exposição desenhada por ele e por sua parceira de arte e vida Fabiana Moraes. A primeira, Língua solta, montada em 2021 para a reabertura do Museu da Língua Portuguesa, não veio ao Recife; tudo indica que esta também não virá, mesmo com artistas pernambucanos, com o design do pernambucano Leonardo Buggy e com sua emocionante celebração de resistência, esperança e alegria e necessária abertura de “uma paisagem social e afetiva em que corpos pretos, indígenas e travestis, entre outros vários igualmente negros, possam ter direito a trabalho, a descanso e a muito mais”.

“Como não pensar que esta exposição poderia ser levada para a Fábrica Tacaruna, se ela efetivamente existisse?”, questiona Moacir, atual coordenador-geral do Museu do Homem do Nordeste, equipamento da Fundação Joaquim Nabuco, da qual ele é pesquisador há mais de três décadas. Ele destaca que, na Pinacoteca do Ceará, os pavilhões têm pé-direito de 6,20m e possuem, respectivamente e gradualmente a partir do primeiro, 528 m², 783,47 m² e 859,58 m² de área expositiva. “Hoje, não existe um equipamento no Recife para receber esta e outras exposições em itinerância pelo país”, lamenta.

Construída entre 1890 e 1895 pela Companhia Industrial Açucareira, da Usina Beltrão, na fronteira entre Recife e Olinda, a fábrica Tacaruna operou até 1982, quando foi desativada e entregue ao Banco Econômico para quitação de dívidas. Em 1994, foi tombada como patrimônio histórico e artístico pelo então governador de Pernambuco, Joaquim Francisco; em 1996, já sob o governo Miguel Arraes, foi declarada de utilidade pública para ser desapropriada. Em 2000, na gestão Jarbas Vasconcelos, foi adquirida ao Econômico para ser transformada em centro cultural com galerias, auditório e espaço para teatro, cinema, dança, literatura e gastronomia. Neste contexto, em 2002, sob improviso mas com instigação, o 45º Salão Pernambucano de Artes Plásticas se realizou lá.

Neste mesmo ano, vários profissionais pernambucanos foram agraciados com bolsas de estudo para especializações na Europa, com o propósito de lecionar no equipamento após o retorno – o que nunca aconteceu. A Fábrica Cultural Tacaruna atravessou as gestões de Mendonça Filho, Eduardo Campos e Paulo Câmara e diversas reformas sem, entretanto, nunca ser disponibilizada para seus devidos fins. Já como local de festas privadas produzidas com aval público, foi notícia várias vezes. Sem vontade política, não há drible que dê jeito.

Quatro dias depois do seminário, o Ceará Sporting Club foi disputar com o Sport Club do Recife o título da Copa do Nordeste. Apanhou de 1 x 0 no tempo normal, mas venceu nos pênaltis diante da Ilha do Retiro lotada. No ano passado, o mesmo Sport perdeu a final para o Fortaleza Esporte Clube. Já Negros na piscina deve seguir para o Centro Cultural do Cariri e para São Paulo, em data indefinida. De fato, não restam dúvidas: no futebol, na ginga dentro e fora do campo, nos equipamentos culturais e nos investimentos nesta cadeia produtiva, o Ceará está batendo Pernambuco por 10 x 0.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente

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