“CADÊ OS JORNALISTAS E FOTÓGRAFOS COMBATENTES?”
Evandro Teixeira, fotógrafo que há 50 anos fez a cobertura do golpe militar chileno, relembra o trabalho de imprensa durante os anos de chumbo na América Latina e a resistência que havia nas redações
TEXTO GILVAN BARRETO
06 de Setembro de 2023
O fotógrafo Evandro Teixeira
Foto Gilvan Barreto
[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]
Em quase sete décadas de atividade, o fotógrafo Evandro Teixeira vêm iluminando alguns dos momentos mais importantes do Brasil e do continente. Celebrado como um dos mais importantes repórteres fotográficos do país, sua obra traz a marca do compromisso com a liberdade de expressão e a democracia. Evandro, o homem que fotografou a dor da América Latina, baiano de Irajuba (1935), radicado no Rio de Janeiro, abre agora a exposição Evandro Teixeira, Chile, 1973. A mostra, em cartaz até novembro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, depois de ter sido apresentada com enorme repercussão no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo.
Com cerca de 160 fotografias em preto e branco e curadoria assinada por Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, a exposição marca o cinquentenário do sangrento golpe militar que, em 11 de setembro de 1973, instaurou a ditadura chilena que culminou na morte do presidente eleito Salvador Allende. Além de imagens icônicas da ditadura civil-militar brasileira, Chile, 1973 traz ainda fotografias do Palácio De La Moneda bombardeado pelos militares, dos prisioneiros políticos no Estádio Nacional em Santiago e a cobertura mais emocionante da carreira do fotojornalista, o enterro de Pablo Neruda, autodescrito em um de seus últimos poemas como “um animal de luz”.
Nesta entrevista, a gentileza e empolgação de Evandro são marcantes. A fala tranquila do baiano só é abalada quando se refere ao recente contexto de corrosão democrática no Brasil. Sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro, confesso admirador do general Augusto Pinochet, Teixeira arrisca um veredito: “Ele não vai ser preso. O Brasil tem medo”. Com a autoridade de quem registrou cotidianamente a truculência dos anos de chumbo, Teixeira exalta antigos companheiros do Jornal do Brasil, onde trabalhou por quase cinco décadas, e hoje diz sentir falta de uma imprensa mais combativa. “Ninguém publica nada? O que está acontecendo?”.
Prestes a completar 88 anos de vida, Evandro revela-se inquieto e contrariado por não poder manter o ritmo acelerado de sempre. Em razão de ter contraído a Covid-19 por duas vezes, o fotógrafo tem dificuldades de caminhar sozinho, de segurar uma câmera por muito tempo. Investe na fisioterapia para logo pegar a estrada como antigamente e sair por aí trabalhando. “A fotografia não morreu. Eu não morri. Minha vida é a fotografia.”
CONTINENTE Evandro Teixeira, acho que podemos dizer que sua fotografia é marcada pelos “instantes decisivos”, de Bresson. Se a gente pudesse escolher os instantes decisivos de sua carreira em apenas uma folha de contato, quais fotogramas estariam nesta folha?
EVANDRO TEIXEIRA Eu cheguei aqui no Rio em 1957, para estagiar no Diário da Noite. Tinha um fotógrafo se aposentando e eu fui ficando. No início, eu cobria casamentos e usava uma Rolleiflex. Ligava para as igrejas todos os dias, “Tem casamento aí?”, “Tem casamento aí?”. Até o dia em que, apesar das recomendações racistas do editor do jornal, fotografei o casamento de uma alemã com um homem negro. Então, fui demitido. Depois voltei. Em 1962, fui convidado para o Jornal do Brasil. Mas aí eu tive medo.
CONTINENTE Mas tinha medo do quê?
EVANDRO TEIXEIRA Ah, porque o JB era o jornal da moda, da elite, com fotógrafos e repórteres maravilhosos, como Carlos Drummond de Andrade, Antonio Callado e outros. Em 1962, eu cobri a Copa do Mundo no Chile e só aceitei convite do JB em 1963. Telefonei pro editor da época, que era o Dilson Martins, e disse: “Agora estou preparado. Se você ainda me quiser, eu topo”. Ele disse: “Vem aqui amanhã” e eu fiquei 47 anos lá. Agora, respondendo à sua primeira pergunta, tem muitas fotos para lembrar: tem as fotos de Pelé, da Rainha Elizabeth, do (bailarino Rudolf) Nureyev, a foto de Chico, Tom e Vinicius (deitados numa mesa), os trabalhos que fiz em Canudos e várias outras da ditadura brasileira como a Queda do Motociclista da FAB, Tomada do Forte de Copacabana, Caça ao Estudante, a Passeata dos Cem Mil, Baionetas e Libélulas… Mas a cobertura do golpe no Chile, em 1973, e o enterro de Neruda têm um lugar especial na minha história.
Foto clássica, feita no protesto contra a ditadura, em 21 de junho de 1968, no centro do Rio. Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS
CONTINENTE Vamos falar sobre Chile 1973. Mas antes tem uma história curiosa sobre as Baionetas e Libélulas; você passou um sufoco por causa dessa foto, não foi?
EVANDRO Sim! Costa e Silva mandou me prender. Passei uma noite de castigo. Aquela foto foi feita numa exposição sobre as armas da guerra do Paraguai. Na saída, eu vi aquelas libélulas e fiz três ou quatro fotogramas apenas. O jornal deu a foto com os insetos bem grandes na primeira página e o retrato do Marechal foi publicado menor, numa página interna. No dia seguinte, assim que cheguei para trabalhar no Palácio (das Laranjeiras), fui chamado para a sala dele. Costa e Silva era um sujeito muito desbocado. Disse: “Como é que você coloca aquelas merdas de besourinhos na primeira página e o presidente lá dentro, como foto pequena?” Falei que era uma questão de edição. Devia ter ficado calado. Me chamou de moleque e gritou pros soldados: “Dá um castigo nesse vagabundo”. Passei a noite lá.
CONTINENTE No Palácio?
EVANDRO Não. Me levaram para o quartel. Passei a noite lá sentado e tomando café com os soldados. Felizmente, não me aconteceu nada de mais grave. Tempos depois, no Chile, tive outra noite parecida.
CONTINENTE A cobertura do golpe no Chile foi muito especial na sua carreira, certo?
EVANDRO Sim. A história jornalística mais importante da minha vida.
CONTINENTE Então você viajou para o Chile no dia 12 de setembro de 1973, no dia seguinte ao golpe, com toda sua experiência com a ditadura brasileira, sabendo muito bem das atrocidades que aqueles militares eram capazes de cometer...
EVANDRO A gente ficou detido na fronteira com a Argentina, em Las Cuevas, num hotel, tomando vinho, fotografando, caminhando... Corremos para Santiago, assim que abriram as fronteiras para nós, no dia 21 de setembro. Ficamos hospedados no Hotel Carrera, que ficava ao lado do Palácio La Moneda. Era uma beleza fotografar dali. Foi um trabalho perigoso, mas acho que eu superei. Modéstia à parte, acho que fiz um bom trabalho. E o enterro do Neruda foi uma coisa incrível. Um dos momentos mais emocionantes da minha vida. A emoção de estar diante do ganhador de um Nobel da Literatura, massacrado pela ditadura de Pinochet.
CONTINENTE E você foi o único a fotografar o corpo de Neruda ainda na Clínica Santa Maria... conta como foi isso
EVANDRO Sozinho! Até hoje eu não acredito. Descobri e fotografei o Neruda morto. A clínica estava cercada por militares, mas deram uma bobeira, deixaram uma porta lateral aberta. Quando entrei, vi o corpo de Neruda numa maca e dona Matilde Urrutia, esposa de Neruda, sentada ao lado. Era um lugar pequeno, apertado. Aí eu entrei e fiz a foto. Só depois pedi licença.
CONTINENTE Você se apresentou como “o fotógrafo de Jorge Amado”...
EVANDRO (Risos…) Eu tinha fotografado o poeta e Jorge Amado aqui no Brasil. Fotógrafo é um bicho muito metido, né? A gente tenta fazer umas amizades e eu contei essa porque dizer que era do Jornal “do Brasil”, podia se relacionar com ditadura daqui, achei que podia negar minha presença ali. Então disse: “Sou o fotógrafo do Jorge Amado. Estivemos juntos, lembra?” Ela me olhou e disse: “Sua presença aqui é muito importante, fique conosco”. Importante era a câmera. Ela era muito inteligente, sabia que aquele momento precisava ser registrado. Eu ficava olhando para trás, me perguntando: ‘Porra, cadê? Não tem ninguém aqui? Só eu?’ Fiquei apavorado. A qualquer momento, algum militar podia entrar ali e me matar, tudo era possível.
Corpo de Pablo Neruda no hospital, em 24 de setembro de 1973, e, no enterro, no dia seguinte. Fotos: Evandro Teixeira/Acervo IMS
CONTINENTE Recentemente, mais evidências reforçaram a tese do envenenamento do poeta. Naquele momento, você ou alguém ali desconfiava que os militares poderiam ser responsáveis pela morte do poeta?
EVANDRO Ele morreu envenenado mesmo. Ele tinha câncer de próstata. Mas estava bem. Quando ele estava exilado na Isla Negra, outra casa linda que ele tinha, no caminho para a clínica, foi maltratado. Ele estava doente, mas estava bem. Não estava para morrer. Ele morreu por causa de uma agulhada que deram na barriga dele, com certeza.
CONTINENTE E a sua fotografia ajudou a comprovar isso, porque a ditadura alegou que Neruda estava fraco e esquálido por conta do câncer.
EVANDRO Exato! Eu até fiz umas fotografias que eles me pediram para fazer, uns exames em laboratório. O homem estava bem. Estava com aquela fisionomia bonita, tranquila. Fiquei fotografando todos os preparativos para o velório para irmos para a casa dele, a La Chascona (palavra em quíchua que significa “emaranhado”, uma homenagem do poeta ao cabelo ruivo e “selvagem” de Matilde). A casa dele era no alto, uma casa muito bonita, linda mesmo. Logo na entrada, tinha um riacho que podia ser atravessado por uma escada. Quando nós chegamos lá, aquele riacho tinha virado um lago. A passagem tinha sido destruída. Não dava para entrar, tivemos que improvisar uma passarela. Arrancamos umas estacas, madeiras.
CONTINENTE Você mesmo arrancou uma porta lá, não foi?
EVANDRO Sim. Eu e uns seis amigos dele. Improvisamos com madeira, portas, tábuas e o diabo. Ali eu dei as ordens: “Dona Matilde, a senhora passa na minha frente, por aqui…”. Que era para eu fotografar.
CONTINENTE Já aproveitou para dirigir as fotos, né?
EVANDRO (Risos…) É… aí subimos. Quando chegamos lá, a casa estava toda destruída. Uma loucura!
CONTINENTE Os militares destruíram?
EVANDRO Sim. Eles haviam provocado a inundação e quebraram tudo... Era um pandemônio. Tentaram de tudo para interditar o acesso, mas a gente conseguiu. Nos acomodando por lá, fizemos algumas orações e dormi. Dormi sentado mesmo. No dia seguinte, saímos para o enterro com a bandeira do Chile sobre o caixão de Neruda. Passamos pela mesma passarela improvisada e seguimos para o Cemitério Geral de Santiago. Além dos poucos amigos que estavam no velório, ninguém sabia do enterro, não tinha ninguém por lá. Da casa para o cemitério eram uns 4 km de distância. Lá pela metade do percurso, a notícia se espalhou. E aí um bando de gente foi chegando. A gente estava preocupado, sem saber qual seria a reação dos militares. Teve uma hora em que o exército apareceu, fizeram o cerco, mas não nos atacaram. Malandro que era, Pinochet convocou a imprensa para uma entrevista coletiva. Marcou no mesmo horário para tentar esvaziar o enterro. E, rapaz, foi uma coisa impressionante, emocionante. Quando chegamos ao cemitério, uma multidão cantava A Internacional, recitava suas poesias, gritavam palavras de ordem em homenagem ao “camarada Neruda”. O lugar ficou lotado. Aí, então, eu corri na frente, subi a rua e fotografei o caixão entrando. Era uma multidão incrível. Chorei de emoção! A câmera estava firme nas mãos, mas fotografei com as lágrimas caindo. Foi a coisa mais emocionante da minha vida. Foi a primeira grande manifestação contra o golpe, que tinha acontecido há apenas quatro dias.
CONTINENTE E as fotos no Estádio Nacional, você já tinha passado lá anos antes numa situação completamente diferente, correto?
EVANDRO As dependências eram fáceis pra mim. Você sabe quando vai ao Maracanã, por exemplo? Eu sei tudo, como entrar, como se deslocar lá por dentro... E lá no Chile foi a mesma coisa. Eu tinha trabalhado lá 45 dias durante a Copa do Mundo (1962), com o Pelé. Conhecia bem o lugar… A ditadura levou a imprensa internacional para lá, para dizer que os estudantes estavam sendo bem-tratados. Mentira! Coitados dos estudantes. Entramos no gramado, colocaram muitos dos prisioneiros na arquibancada. Mas eu tinha a informação que os presos mais importantes estavam no subsolo. Era lá que coisa estava feia mesmo. Pensei: “Vou entrar nessa porra, vou entrar!!” Me arrisquei. Dei uma fugida e fiz quatro ou cinco fotogramas. Esses pobres rapazes morreram todos. Foi um massacre. Mataram todo mundo, até cortaram as mãos daquele cantor…
CONTINENTE O Victor Jara.
EVANDRO Sim, o Victor Jara. Uma tristeza aquilo ali. O esforço valeu a pena e o JB deu uma dessas fotos na capa.
CONTINENTE Eu já vi você muitas vezes elogiar seus colegas de jornal daquela época, como Alberto Dines, mas alguns desses veículos de comunicação apoiaram o golpe no Brasil.
EVANDRO Os jornais apoiaram, mas depois eles se arrependeram. Foi a mesma coisa no JB, Correio da Manhã, Última Hora… depois viram que os militares estavam querendo outra coisa. O JB teve muita força, muita resistência. A fotografia era muito prestigiada. Foi uma época de ouro no jornalismo no Brasil. E o (Alberto) Dines era muito corajoso. Para você ter uma ideia, ficavam dois militares dentro da redação na censura. Rasgavam fotografias, textos… rasgavam tudo. A gente dava um jeito e publicava novamente. Além disso, os censores eram muito burros. Não conseguiam ter uma leitura razoável das fotografias, então eles deixaram passar muitas. Trabalhar no JB era uma aula. Hoje é diferente. Não tem um jornal que ensine como são feitas as coisas. O Globo, por exemplo, tinha grandes fotógrafos, todo mundo saiu, foram demitidos. Era uma equipe maravilhosa.
Imagem da tomada do Forte de Copacabana, no dia do golpe militar no Brasil, em 1º de abril de 1964. Foto: Evandro Teixeira/Acervo IMS
CONTINENTE A gente viu aí com o governo Bolsonaro, pesadelos da ditadura voltaram à pauta. O que você achou da cobertura jornalística do governo Bolsonaro, um confesso admirador de Pinochet?
EVANDRO O Bolsonaro foi um idiota, um maluco terrorista. Todo dia o cara xingava as pessoas. Orlando Brito (falecido em março de 2022) foi o único fotógrafo que o enfrentou. Cadê os jornalistas e fotógrafos combatentes? Aquela imprensa que combatia parece que não tem mais. Ninguém publica nada. O que está acontecendo? E aquela invasão uma semana depois da posse de Lula… entraram no Congresso, no Palácio... Eu fiquei aqui louco. Meu Deus, cadê a polícia? E os caras pintando o sete? Sacanagem. Eu já trabalhei acompanhando o Lula. Ele é impressionante, gostava dele. Mas fiquei puto com ele. Ele errou muito feio, deixou roubar. E hoje ele voltou. Eu só votei no Lula para combater o Bolsonaro. Veja o que Bolsonaro fez no Brasil. É impressionante isso. Ele não vai ser preso.
CONTINENTE Você acha?
EVANDRO Você vai ver que ele não vai ser preso. O Brasil tem medo, o Congresso tem medo. Você vai ver que ele não vai ser preso. Uma vergonha.
CONTINENTE Como é a sua relação com a fotografia hoje em dia, além de cuidar do seu acervo e suas exposições?
EVANDRO Eu estou com um problema nas pernas, não estou podendo sair, andar sozinho. Stuckinha (Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial do presidente Lula) até mandou a credencial, na posse do Lula. Eu iria fotografar a posse. Não pude ir. Fiquei triste.
CONTINENTE Tem aquela poesia famosa do Drummond que fez pra você: “Garrincha e Nureyev, dança / de dois destinos, mães-de-santo/ na praia-templo de Ipanema, /a dama estranha de Ouro Preto, / a dor da América Latina, / mitos não são, pois que são fotos” (Diante das fotos de EVANDRO TEIXEIRA, 1986, Carlos Drummond de Andrade). O trecho dá uma ideia de quanta coisa você fez. São quase 70 anos de Brasil fotografados. Com tantas fotos históricas, ainda teria alguma faltando ao teu portfólio?
EVANDRO Tem, claro. A fotografia não morreu. Eu não morri. O fato é que essa desgraça dessa Covid-19 me derrubou duas vezes e atingiu minhas pernas. Estou fazendo fisioterapia, mas estou com dificuldade de caminhar. Ainda danço um pouco, mas não vou à rua sozinho, não posso carregar uma câmera, ficar muito tempo em pé. Eu gosto de fotografar. Minha vida é a fotografia. Eu tenho uma Leica grande, profissional, outra digital pequena e tem mais duas manuais – uma delas esteve na exposição no IMS e outra está aqui. Isso me deixa muito triste. Se pudesse, eu iria trabalhar, fazer alguma coisa.
CONTINENTE Mas veja só, você é conhecido como o fotógrafo da escadinha, que andava com escadinha embaixo do braço para todo lugar…
EVANDRO TEIXEIRA (Risos) Está lá na exposição, a escadinha estava lá.
CONTINENTE Tem um monte de gente aí querendo caminhar contigo pra fotografar. Tenho certeza…
EVANDRO Eu gostaria de ir, de fazer isso. Tem tanta coisa importante que poderia fazer para ajudar na fotografia. Eu estou penalizado com esse negócio, não posso sair muito. E eu vendi todo o equipamento Canon que eu tinha porque era pesado. Fiquei só com as Leicas. (Abre um gabinete de desumidificação e mostra orgulhoso outras lentes e câmeras Leicas que não havia mencionado antes).
CONTINENTE Eu já vi você falar muito a expressão “Se der, deu”. “Se der, deu”. Isso no sentido de que “vou tentar”, “vou insistir”. E agora você está completando quase 70 anos de profissão. Acho que “deu” muito certo, concorda?
EVANDRO (Olha para o lado e sorri) É.... Deu, sim. Ai que saudade que tenho daquele tempo… Eu viajei pelo mundo, era a glória, rapaz... Viajar, trabalhar, fotografar copas, olimpíadas, que eu fiz não sei quantas, e tantas outras viagens acompanhando presidentes. Naquele tempo, usava câmeras analógicas, eram sempre duas. Usava o *telefoto, aquilo era loucura (Aparelho para transmissão de fotos, utilizado antes da chegada das câmeras digitais. Eram necessários cerca de 15 minutos de ligação DDI para transmitir uma única cópia em papel). A gente sofria muito, mas gostava. Revelava como dava, numa correria danada. Não usava nem pinça, secava o negativo com álcool, olha que maluquice! Era um improviso enorme nos laboratórios que a gente montava nos banheiros dos hotéis. Uma vez viajei pra cobrir a seleção brasileira na Europa, não lembro o nome da cidade. Fiz uma bagunça desgraçada no banheiro-laboratório. Não consegui limpar a porcaria que tinha feito, a arrumadeira me denunciou e fui expulso do hotel. (Risos)
Registros feitos em 22 de setembro de 1973, 11 dias após o golpe militar no Chile. Fotos: Evandro Teixeira/Acervo IMS
CONTINENTE Você tem dificuldade em desacelerar, não é ? Saudades da correria?
EVANDRO Sim, mas era cansativo. Nas olimpíadas, trabalhava o dia todo. Trabalhava até 23h e ainda tinha que revelar o filme. Para você ter uma ideia, uma vez fiz um acordo com o cinegrafista da Manchete. Eu pagava o jantar dele para me fazer companhia e me cutucar quando eu caía no sono. Ele avisava quando a transmissão das fotos acabava. Era pesado, mas era uma maravilha, divertido.
CONTINENTE A primeira vez que te encontrei foi em 1997, 26 anos atrás, no velório de Frei Damião, no Recife.
EVANDRO Ô, rapaz… foi mesmo
CONTINENTE Tinha um batalhão de fotógrafos cobrindo. E eu fiquei te observando, andando com a escadinha… logo você sumiu. “Onde o danado foi?” A resposta só veio no outro dia. Você escapou e saiu com a foto mais bacana daquele dia. Foi um drible que você deu em um monte de fotógrafo que tinha ali.
EVANDRO Eu subi, fui lá na cúpula da Basílica (Nossa Senhora da Penha). Eu gosto muito daquela foto, uma foto bonita, acho que ela está no Moreira Salles (IMS).
CONTINENTE Só pra acabar, nesse mundo de imagens suas, dá para escolher alguma fotografia, só uma, que você tenha um carinho especial?
EVANDRO Tem uma foto que eu gosto muito, que é a do casamento em Paraty (Casamento em Paraty, 1969)
CONTINENTE Adoro aquela foto, é a do noivo pequenininho e ela bem grandona ao lado?
EVANDRO Essa mesmo. Olha ela lá (aponta para foto fixada na parede). Adoro a foto pela ingenuidade dela. Eu gosto dessa foto e cada vez que eu vou à Paraty, eu procuro a igreja. Não conseguimos identificar ainda.
CONTINENTE Voltamos então ao início, quando você fotografava casamentos e foi demitido por fotografar um outro noivo negro.
EVANDRO Pois é, veja só…
CONTINENTE Em referência àquela sua frase: “Sou um homem manejando uma câmera. Quando bem-operada, é um fósforo aceso na escuridão. Ilumina fatos nem sempre compreensíveis. Oferece lampejos, revela dores do impasse do mundo. E desperta nos homens o desejo de destruir esse impasse”. O que você gostaria de iluminar agora?
EVANDRO A tristeza de não poder fotografar. Estar preso aqui. Eu tinha acabado de voltar do Pará e fui entregar uma foto para o meu amigo e vizinho, o Moraes Moreira. A gente se encontrava todo sábado numa padaria aqui perto. No dia seguinte, entramos nessa prisão (pandemia da Covid-19), veio muita desgraça para todo mundo. Sinto falta de agora não poder andar e fotografar. Fiz muitos trabalhos, tem umas coisas importantes como essa foto da Passeata dos 100 Mil. A gente fez um livro (68: Destinos. Passeata dos 100 Mil, Ed. Textual, 2008 – o livro conta a trajetória de vida das pessoas reconhecidas na foto de Evandro Teixeira). Identifiquei 100 pessoas dessa foto e gravamos os depoimentos delas. O livro poderia servir para aulas em colégios e faculdades. Foi um momento triste do Brasil, mas gratificante para quem fez cobertura como eu, por exemplo. Um pedaço da nossa história está ali.
Passeata dos Cem Mil, na Cinelândia, em 22 de junho de 1968. Foto:Evandro Teixeira/Acervo IMS
CONTINENTE E assim, contribuiu para tentar evitar que isso aconteça novamente.
EVANDRO Não estou dizendo que sou melhor ou pior do que ninguém. Mas eu fiz parte da História do Brasil.
CONTINENTE Sem dúvida alguma.
EVANDRO Eu tive muita sorte. A tomada do Forte (de Copacabana), por exemplo, foi uma história engraçada. Um amigo me acordou às 5h e me levou lá.
CONTINENTE Lá bateu continência, entrou no forte como se fosse um militar à paisana.
EVANDRO Sim, inventei um nome de capitão e entrei. Fiz umas fotos escondido. Mas chegou o Castello Branco e não dava para continuar daquele jeito, sem mostrar a câmera. Escondi o primeiro filme na meia e puxei a máquina. Para minha surpresa, os caras me agarraram e pediram para serem fotografados ao lado do Castello Branco. “Seu fotógrafo, tira um retrato nosso aqui”. Achavam que eu era fotógrafo do Exército. Se você for num evento militar, até hoje é assim.
CONTINENTE A câmera é sedutora, não? Os milicos também ficam lisonjeados.
EVANDRO Vaidosos, cara. A Fotografia revela tantas coisas…
GILVAN BARRETO, fotógrafo e artista visual.