Portfólio

Frida Orupabo

“O começo é sempre o corpo”

TEXTO Luciana Veras

01 de Março de 2022

'Resting head', 2020, colagem com alfinetes de papel

'Resting head', 2020, colagem com alfinetes de papel

Imagem Mario Todeschini/Cortesia da Stevenson

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

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Quando era criança em Sarpsborg, na Noruega, Frida Orupabo não reconhecia outros corpos iguais aos dela e da sua irmã. Nascidas do encontro entre a mãe escandinava e o pai nigeriano, as duas tiveram uma infância sem a referência paterna; ele foi embora quando Frida tinha apenas três anos, abandonando as filhas na cidade industrial de população predominantemente branca, cercadas por um enclave de mulheres – avó, bisavó, tias e amigas – no qual elas espelhavam o realce da diferença. “Crescendo ali, a pele era sentida e notada”, diz a artista visual e socióloga em entrevista concedida ao site da 34ª Bienal de São Paulo. “E eu tinha curiosidade de saber de onde eu e minha irmã vínhamos. Esse tipo de experiência desempenhou, desde cedo, um papel enorme na minha prática artística, em que alio raça, sexualidade e gênero e indago: O que significa ser uma mulher… E uma mulher negra?”.

Suas palavras se traduzem nas obras protagonizadas por mulheres negras, seus corpos alicerçados ora como móbiles, ora em camadas justapostas, mulheres essas que interpelam quem as vê, devolvendo a mirada, quase sempre refletida na e da branquitude, responsável por produzir aquela imagem pertencente ao legado colonial. “Eu me reconheço nessas imagens repletas de fúria e, com elas, quero criar uma forma de resistência”, prossegue Frida. Com essa frase, ela fala dos trabalhos compilados entre agosto e dezembro de 2021, no Pavilhão da Bienal e no Museu Afro Brasil, onde se instalou sua primeira individual no país, mas também poderia se referir ao conjunto atualmente aberto à visitação em I have seen a million pictures of my face and still I have no idea, no Fotomuseum Winterthur, na Suíça.

Baby in belly, 2020, colagem com alfinetes de papel.
Imagem: Mario Todeschini/Cortesia da Stevenson

Porque desde que Frida Orupabo surgiu no cenário artístico, convidada pelo cineasta e artista norte-americano Arthur Jafa para A series of utterly improbable, yet extraordinary renditions, instalação desenvolvida na Serpentine Sackler Gallery em Londres, em 2017, seus trabalhos vêm embaralhando as definições de colagens, esculturas, vídeos e fotografias. Naquele momento, instigada por Jafa a amplificar os questionamentos sobre identidade negra, apresentou seu pensamento e sua poética ao mundo em formato e enquadramento que até hoje utiliza: postagens no feed no seu perfil @nemiepeba no Instagram.

Na conversa com a 34ª Bienal de São Paulo, ela observa: “Desde 2013, o Instagram faz parte da jornada para encontrar como eu quero me expressar. É como escrever um diário: todo dia preciso trabalhar em alguma coisa. Porém, quanto mais seguidores eu ganhava, menos eu queria mostrar minha vida privada, e mais pensar um caminho para falar das minhas experiências e de sentimentos como raiva, tristeza, depressão. Com as colagens digitais, criei também uma narrativa, uma expressão diferente para a mesma prática de colocar juntas coisas que não foram feitas para estar juntas. E assim criar novos significados e uma nova linguagem para falar”.


Batwoman, 2021. Imagem: Cortesia Galerie Nordenhake


Sem título, 2019. Foto: Luciana Veras 

Essa “nova linguagem” se engendra a partir da necessidade de exprimir o que sentia. “Sempre achei que faltava uma língua para expressar o que eu sinto. E ainda acredito nisso, ainda sinto essa falta”, comenta a artista. Apesar da dúvida, a artista obteve êxito ao engendrar um idioma próprio. Nos trabalhos expostos pela primeira vez no Brasil, lá estava sua caligrafia extraordinária, composta pelo modo como opera “o reposicionamento da mulher negra”. Nessa escrita visual, ela dá à mulher destituída de tudo – até da dignidade de ter seu nome registrado – o poder “de encarar de volta”.

E assim os faz mesmo retalhando e recortando aqueles corpos, reconfigurando-os como marionetes, inserindo braços e pernas em ângulos improváveis, como se a moldar seres sobrehumanos. Em uma das obras expostas na Bienal, Untitled (2019), a artista manuseia sua colagem com alfinetes em alumínio, em um processo artesanal que contrasta, mas não colide, com a origem tecnológica daquela imagem que lhe serve de fonte. Frida Orupabo se apropria de dezenas, centenas de fotografias de sujeitas anônimas. Quem as registrou? Traficantes no mercado de escravização? Fazendeiros no sul norte-americano, senhores de engenho brasileiros, agentes da lei nas colônias europeias que durante séculos expropriaram a África? Não importa quem as fez, até porque todas, hoje, pertencem à vastidão da memória cibernética – é na internet que a artista busca suas matrizes –, mas importa, sim, essa possibilidade de reparação.


Closed fists, 2021. Imagem: Cortesia Galerie Norddenhake

Não é, entretanto, uma retratação sutil ou amena à qual ela nos convoca. É um revide furioso, inquietante e estrondoso, até, mesmo na mudez, posto que não nos permite o conforto da indiferença. Em uma das paredes brancas do Pavilhão da Bienal, três mulheres pareciam “bailar”. A primeira, sentada de pernas abertas; a segunda, com os braços levantados, semelhante a uma passista de frevo; a terceira, com as costas viradas para nós que a encaramos, em uma postura mais tímida. Em comum, as três partilham o olhar altivo, de quem, ali, não se envergonha do que faz ou da cor da pele. Numa sequência montada no Museu Afro Brasil, outras três obras descortinavam novas mulheres, já não alfinetadas em alumínio, mas em colagens transpostas para quadros de fundo branco e moldura alva, em que elas, a despeito de seus enquadramentos incomuns, também nos afrontam.

Porque, na política visual construída na última década – primeiro nas redes sociais, em seguida nos trabalhos levados a instituições ao redor do planeta, da Suécia aos Estados Unidos, da República Tcheca ao México, da Itália ao Japão – está essa acareação que Frida promove. De um lado, as mulheres negras, reunidas em trabalhos muitas vezes sem título (talvez a cotejar o anonimato das fotografadas, talvez a acentuar a prescindibilidade das palavras); do outro, nós, a parcela privilegiada da população brasileira e mundial com acesso a museus, ainda aprendendo a processar os frutos do racismo nosso de cada dia, em especial em nações como esta ex-colônia de Portugal que, as estatísticas divergem e ao mesmo tempo assombram, comprou quatro ou cinco milhões de homens negros e mulheres negras ao longo de quatro séculos de escravidão.

Seated with two hands, 2021. Imagem: Cortesia Galerie Norddenhake/Installation Photo Kunsthall Trondheim: Susam Jamtøy

***

“Devolver o olhar não era algo permitido às pessoas negras. Era perigoso. E isso fala muito de branquitude, de privilégios, de um entendimento do lugar dessas pessoas e do nosso lugar e da construção de uma normalidade branca. Não escolho imagens nas quais não sinto uma forma de resistência, e por isso tem um monte de imagens nos arquivos coloniais que nunca vou usar. Porque ali não resta subjetividade alguma, as mulheres foram roubadas de tudo, não trazem resistência alguma no olhar. Eu escolho aquelas em que há resistência. Porque entendo o poder do olhar. E, com as obras, você pode encará-las, olhar de volta, mas elas também fazem isso. É isso que cria o vínculo entre o meu trabalho e as pessoas que o veem. Eu não quero que as pessoas fiquem confortáveis ou que foquem apenas nas minhas obras. Quero que foquem nelas mesmas, que fiquem conscientes do seu próprio olhar, da sua posição”, afirma Frida Orupabo.

Ela considera que, ao ampliar as colagens digitais que manipula em seu computador para os fragmentos arquitetados para os espaços expositivos (a instalação The mouth and the truth, exibida em Frankfurt, em 2019, parecia um quebra-cabeça gigante), potencializa o enfrentamento daquelas mulheres, daqueles passados, daquela herança. Quando metamorfoseia aquelas imagens para o tamanho humano, explorando suas camadas e dobras, destacando suas singularidades e assimetrias, as figuras se revelam mais desafiadoras. E é interessante perceber como em Hours after, sua individual de estreia no continente africano, realizada em 2020 na Stevenson Gallery, em Joanesburgo, ela acrescentou a este desafio o uso de cores, algo inédito até então – uma outra leva de trabalhos atravessados pelos pigmentos veio depois ao Museu Afro Brasil e à 34ª Bienal.


Girl with stone, vase and head, 2020, colagem com alfinetes de papel.
Imagem: Mario Todeschini/Cortesia da Stevenson

Mas foi em Hours after que ela expandiu sua alquimia estética e política como nunca, passando a abarcar os temas do parto e da maternidade. “O começo é sempre o corpo”, resume em um dos excertos do diálogo estabelecido com a pesquisadora Elvira Dyangani Ose, publicado no catálogo desta exposição. E se ela engravidou e teve uma filha, como não se voltar, mais uma vez, para o corpo? Em Baby in belly (2020), colagem com alfinetes de papel, a gênese de tudo se descerra na combinação entre a grávida de rosto negro e corpo branco com um feto dentro da barriga, mas não um bebê qualquer, e, sim, um cuja cabeça é de um menino maior. E do ventre irrompe uma criança crescida em Labour II (2020), unida à mãe para compor uma massa estranha, como dois seres em um, ambos firmes a nos encarar.

“Minhas colagens são em preto e branco porque uso imagens de arquivos velhos, que estão sempre em p & b ou sépia. Nunca tinha pensado muito sobre cor até recentemente. Cor é algo difícil, tanto relacionado à estética como ao que pode simbolizar. Acrescenta, por exemplo, novo significado. Para Hours after, eu adicionei cores pela primeira vez. Alguns dos temas nos quais eu venho trabalhando estão ligados à gravidez, ao parto, nascimento. E o uso de cores leves – rosa suave, verde suave – é associado com essas coisas… diferentes fluidos saindo do corpo. Também as considero cores que cheiram. E queria isso para a exposição – dar a ela uma sensação de cheiro”, explica.

Em um determinado trecho dessa entrevista, disponível no site da Stevenson Gallery, Frida Orupabo, 36 anos, norueguesa de sangue nigeriano, diz que durante muito tempo era incapaz de falar. De articular. De procurar sentidos para o que sentia. The only thing I had was my eyes and my anger. A única coisa que ela tinha eram os olhos e a raiva. Amadurecendo essas certezas, ela entrou na adolescência pintando e desenhando, mas também já colecionando imagens que recortava de jornais e revistas, na maioria das vezes representando corpos de cor igual à sua e da irmã por um violento viés racista e machista. Quando ganhou seu primeiro computador, começou a manipulá-las. E aos poucos fez daquelas colagens uma extensão da sua raiva, do seus olhos e da vontade de encontrar, ou forjar uma linguagem para se manifestar.


Woman with a book, 2020, colagem com alfinetes de papel. 
Imagem: Mario Todeschini/Cortesia da Stevenson

I have seen a million pictures of my face and still I have no idea é o título da sua exposição atual em Winterthur. Frida viu milhões de imagens do seu rosto e ainda não tem ideia, mas segue aperfeiçoando a linguagem que inventou. E hoje, ao dividi-la com quem aprecia seus trabalhos, ela aprimora o que começou a fazer ainda na juventude. Como artista e cidadã, como socióloga e mulher, como filha e mãe, contribui para catalisar a arte como condutora de novos processos e indutora de mudanças, na mirada e na práxis, no coletivo e no microcosmo, sempre com cuidado e coragem. Para que seja possível vislumbrar um outro horizonte para as mulheres negras. E para ela mesma.

“Quando tive minha filha, voltei a procurar livros antigos que eu costumava ler e percebi que todos tinham algum tipo de conteúdo racista. Livros, músicas, programas de televisão que eu costumava ler, cantar e ver estavam repletos disso. Está em todo lugar e, quando você se dá conta, tem a noção do tipo de ambiente em que viveu e se pergunta: ‘Como eu sobrevivi?’. Acredito que meu trabalho tem sido e ainda é essencial para que eu sobrevivesse”, define.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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