Comentário

O que te marcou na cultura em 2017?

A redação da Continente respondeu a pergunta de várias maneiras, analisando acontecimentos e obras deste ano que termina em poucos dias

TEXTO Revista Continente

27 de Dezembro de 2017

Linn da Quebrada; protesto contra Judith Butler; 'Black off', de Ntando Cele; Diva Guimarães na Flip; 'Atlanta'; obra de Adriana Varejão censurada; 'The handmaid's tale'; 'Game of thrones'

Linn da Quebrada; protesto contra Judith Butler; 'Black off', de Ntando Cele; Diva Guimarães na Flip; 'Atlanta'; obra de Adriana Varejão censurada; 'The handmaid's tale'; 'Game of thrones'

Fotos Reprodução

Em momentos de revisão, como costumam ser os fins de ano, olhar para dentro é um exercício quase inevitável. Devemos e podemos fazer isso a qualquer hora, mas o intervalo que compreende o calendário de 365 dias traz um conjunto mais “ordenado” de acontecimentos passíveis de análise, digamos assim. Olhando para dentro, este foi um ano em que nos remodelamos editorialmente, a partir do número 200, publicado em agosto, e de um novo site, mais próximo da edição impressa e com conteúdos complementares e exclusivos. Manter uma revista de cultura ativa no Brasil, seja impressa (e sobretudo impressa) ou na internet, é uma tarefa de responsabilidade e resistência. Para celebrar os ganhos e desafios de 2017, a redação da revista Continente compartilha abaixo comentários sobre acontecimentos e obras que nos marcaram ao longo do ano. Aguardamos os seus. Que venha 2018!


LEITURAS


Livros da Ubu. Foto: Reprodução

“Há em nós a tendência de pensar 'grande' em relação a acontecimentos que marcam frações de tempo com o olhar em retrospectiva; tendemos ao superlativo, seja para enaltecer, seja para derrubar. Talvez, em 2017, não tenhamos tanto a enaltecer… Talvez não haja mesmo agora algo 'grande' no campo da cultura que importe mais do que as ações de menor impacto e mais duradoras. Acreditando nisso, celebro pequenas conquistas e permanências. Gosto de pensar na permanência do livro no Brasil (o que, infelizmente, não quer dizer o crescimento da leitura no país; no futuro, quem sabe?...) e no aparecimento de livros muito bem-publicados, feitos por editores caprichosos. Nesse item, celebro obras lançadas pelas editoras Carambaia e Ubu, que atuam nesse campo com o exato zelo, farejando obras ao mesmo tempo importantes e 'secundárias', muitas das quais nunca publicadas no Brasil (aqui me refiro sobretudo ao catálogo da Carambaia). Antes de fazer apologia desse objeto antigo e durável por mera nostalgia, observo nele, mais do que nunca, o germe da resistência, o gesto necessário do silêncio e da concentração, o lugar de estar consigo mesmo, não importa em que circunstâncias, e, sobretudo, a possibilidade de escolha e autonomia – tão imperativas neste mar de ofertas em que nadamos. Celebro, e projeto para 2018, o lugar de relevância da leitura, que ela se espalhe em ondas generosas entre os brasileiros.”

Adriana Dória Matos, editora


IMPACTOS



“Na área cultural, 2017 foi um ano marcado por notícias impactantes, como as mortes de Luiz Melodia, Belchior, Kid Vinil, Tom Petty, Chester Bennington, Chris Cornell, Fats Domino e Jerry Lewis. A cultura também sofreu ataques ultrajantes, como a censura a artistas – até Caetano Veloso foi uma das vítimas, ao ser proibido de cantar no acampamento do MTST. Dentre as decepções, o desfecho da aclamada série Girls, o equivocado clipe de Mallu Magalhães, o disco Humanz do Gorillaz, as revelações de assédio sexual de nomes como Kevin Spacey, Dustin Hoffman e Louis CK, cuja estreia de seu filme foi cancelada. Por pouco, o disco de Chico Buarque não entrava nesse rol dos desapontamentos. A épica Caravanas salvou o álbum do esquecimento num ano que recebeu ótimos discos, como os de Hermeto Pascoal (dois!), Tim Bernardes, Beck, Arcade Fire, St. Vincent, Laura Marling, Kendrick Lamar, Rostam, Letrux, Otto e Rincon Sapiência (que disco!). Neste ano, ainda foram lançados documentários imperdíveis que remontam a trajetória de três vozeirões da música norte-americana, Whitney Houston, George Michael e Lady Gaga, cujo cancelamento do show no Rock in Rio também marcou 2017. Na TV, as séries, mais uma vez, destacaram-se, principalmente as que abordaram questões atuais, como bullying (13 reasons why) e racismo (Dear white people). Dessas, se sobressaíram Atlanta, o belo trabalho de Donald Glover, roteirista, ator, humorista e rapper, que narra com perspicácia o cotidiano de uma desperdiçada geração de negros norte-americanos. De todos os lançamentos, possivelmente o produto cultural mais surpreendente de 2017 é The handmaid's tale. Em 2018, a aclamada série será exibida no Brasil pelo Paramount Channel. Seu mérito: faz um assustador retrato do que o mundo pode se tornar. Ou já se tornou.”

Débora Nascimento, repórter especial


ESPETÁCULOS


Orgia, do Teatro Kunyn, no Recife. Foto: Lucas Emanuel/Divulgação

“Em 2017, o quarto episódio da sétima temporada de Game of thrones, a penúltima de GOT, teve seus altos e baixos do ponto de vista narrativo: desde quando alguns roteiros vazaram, a série recebeu críticas de seus fãs mais fiéis, principalmente daqueles mais apegados aos livros. Porém, o quarto episódio foi uma surpresa. Não somente pelo encontro histórico entre Sansa e Arya Stark, mas também pela épica batalha na Campina entre as forças de Daenerys Targaryen contra os Lannister. Sob a direção de Matt Shakman, The spoils of war apresentou efeitos especiais raramente mostrados de forma tão bem-feita numa produção televisa: principalmente numa série que, temporadas antes, sempre trazia os dragões sob camadas e camadas de 'névoa', e numa paleta de cores mais escuras para 'esconder' imperfeições do CGI. No quarto episódio, Drogon foi visto com sua majestade jorrando fogo pela garganta, enquanto uma batalha se desenvolvia em terra firme entre aqueles que não eram queimados. Tudo isso atrelado a uma trilha sonora bem-pensada de Ramin Djawadi, a cena foi um marco não somente entre os fãs, mas na própria cultura pop e nas histórias de séries televisivas. Além de Game of thrones, muitas coisas me marcaram este ano na cultura, mas poucas tiveram o impacto do espetáculo Orgia ou de como corpos podem substituir ideias, do Teatro Kunyn (SP), apresentado, no Recife, durante o Trema! Festival de Teatro. Recebidos numa casa bastante arejada e com uma vista agradável, na Rua da Aurora, a plateia pôde perder a noção de quando termina a conversa entre atores e público, e quando começa, oficialmente, o espetáculo. Inspirado nos diários de Túlio Carella, o espaço cênico torna-se a cidade, ao caminharmos pela Rua da Aurora até o Parque 13 de Maio, onde – através de MP3s – escutam-se narrações do diário junto às cenas. Que forma diferente de se experimentar o teatro contemporâneo – ainda mais eu que, réu confesso, sempre tive um pé atrás com essa arte. Teatro Kunyn foi deixando saudades, saudades dos amores sem amarras de Túlio.”

Eduardo Montenegro, estagiário


POESIA


Malha Fina Cartoneira na feira Desvairada. Foto: Reprodução

“Um ano de instabilidade no Ministério da Cultura por conta de, entre outros fatores, diversas trocas da gestão. O atual governo, aliás, propõe inviabilizar recursos para a área que, junto à educação, é responsável pela construção do pensamento crítico, criativo, e pela conscientização dos sujeitos sobre as sociedades. Como alternativa a isso, muitas vezes, os artistas tiram de onde não têm e botam onde (aparentemente) não caberia. Nesse sentido, algo que me marcou em 2017 foi a poesia independente. Desde a feira de poesia independente Desvairada, em seu primeiro ano, a poetas como Fred Caju – editor do selo independente Castanha Mecânica e vencedor do Prêmio Pernambuco de Literatura – e Phillipe Wolney, que produzem além de seus versos, seus próprios objetos-livros e suportes literários. De fato, feiras de literatura não são exclusividade deste ano, mas é incrível ver tantos artistas se unindo para publicar e tendo uma postura de resistência. Destaco também a primeira tradução do poeta Frank O’Hara, impecável desde a edição cuidadosa ao minucioso trabalho de transcriação da dupla Beatriz Bastros & Paulo Henriques Britto, pela editora independente Luna Parque.”

Erika Muniz, estagiária


CENSURA


Protesto no MAM-SP à performance. Foto: Werther Santana/Estadão Conteúdo

“Falar de cultura em 2017 é falar de censura, proibição, perseguição. O cancelamento da exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira, depois de um mês em cartaz, devido às manifestações lideradas principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL), foi o início de uma série de protestos conservadores e sem fundamento contra a produção e o pensamento de artistas no país. Depois disso, a onda conservadora não parou e seguiu lançando suas acusações e preconceitos sobre outras manifestações. A presença de uma criança durante a performance de um artista nu, no Museu de Arte de São Paulo (MAM-SP), no 35º Panorama de Arte Brasileira, foi motivo de protestos histéricos, que falavam de 'erotização precoce' e até de 'pedofilia'. Quando achávamos que já havíamos visto tudo, outro grupo protestou e quis proibir a palestra da filósofa Judith Butler, no Sesc Pompeia. Sua participação foi mantida, entretanto Butler chegou a ser agredida quando deixava São Paulo, no aeroporto de Congonhas. Num ano como este, é apropriado lembrar das palavras de Heinrich Heine grafadas na Bebelplatz, em Berlim, onde o regime nazista promoveu uma grande queima de livros 'inapropriados' em 1933: 'Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas'.”

Mariana Oliveira, editora-assistente


MULHERES


As servas de The handmaid's tale. Foto: Divulgação

“Em tempos distópicos, como 2017 e anos anteriores, vale a pena lembrar o poder da arte em provocar reações positivas, ainda que dolorosas, instigando um acordar mental necessário que poucas áreas de conhecimento são capazes de despertar. Nesse sentido, a adaptação da obra de Margaret Atwood, O conto da aia (The handmaid's tale), para uma série televisiva, é um dos maiores ganhos do ano. Não só pela qualidade estética (foi ganhador de cinco prêmios Emmy), mas pelas questões que aborda – ou a junção bem-sucedida de ambas as coisas. As séries se sofisticaram tanto, que algumas, como esta da Hulu (concorrente da Netflix), conseguem ultrapassar a qualidade de produções cinematográficas, de modo que The handmaid's tale é, sem dúvida, uma das melhores obras de audiovisual do ano. Há cinema, há literatura, há arte, fotografia e incríveis atuações, tudo na perspectiva de mulheres cuja rara capacidade reprodutora as torna escravas de famílias abastadas que não conseguem gerar filhos em uma sociedade cada vez mais estéril. O livro foi publicado em 1985, mas a história, aparentemente futurista mesmo para os dias de hoje, mostra-se bastante atual; na verdade, uma grande metáfora dos nossos tempos. Aliás, a perspectiva da mulher – tanto da autora quanto das atrizes e das diretoras que se revezaram a cada episódio – não é mero detalhe, mas a força motriz das mudanças que se anunciam, e que devem vir com tudo em 2018, na continuação da série, cujo roteiro está sendo escrito junto a Margaret Atwood. Mudanças que devem vir com tudo não só na continuação da série, pois, como escreveu Eliane Brum, em seu artigo As mulheres que dizem não, 'há uma outra tessitura, uma que se costura numa camada abaixo dos acontecimentos, e que nos aponta onde está a vida e a possibilidade. Há algo que se move – e não é para trás'.”

Olívia Mindêlo, editora Continente Online


NEGRITUDE


Debate no X Janela Internacional de Cinema do Recife. Foto: frame de vídeo

“Foi em julho, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em homenagem a um escritor negro – Lima Barreto –, que vivemos um dos momentos mais marcantes do ano. Diva Guimarães, uma senhora de 77 anos, levantou-se da cadeira e emocionou a plateia – do evento e das redes sociais – com seu depoimento sobre o que é ser uma pessoa negra no Brasil (seu vídeo teve mais de 400 mil compartilhamentos o Facebook). No segundo semestre, a questão negra também aqueceu os debates em eventos como o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em que a representação afrodescendente no cinema brasileiro foi tema de um encontro e de estreias como Nada, Peripatético, O nó do diabo e Vazante. A discussão teve repercussão nacional, inclusive posterior, principalmente com relação à diretora Daniela Thomas, de Vazante, cujo filme foi criticado negativamente, rendendo um texto seu na revista Piauí. No mesmo veículo, o crítico Juliano Gomes, um dos negros presentes no debate, respondeu ao texto de Daniela. Nas bandas do Recife, a presença de artistas negros, como Linn da Quebrada, Lia de Itamaracá, Afrobapho e Rincon Sapiência, marcaram a última edição do No Ar Coquetel Molotov, com seus discursos potentes e incisivos, protagonizando uma edição que se notou diversa também em seu público. No Janela Internacional de Cinema, por sua vez, houve uma mostra exclusiva para o movimento L.A Rebellion, composta por realizadores africanos e afro-americanos que frequentaram a escola de cinema da Universidade da Califórnia, e festivais de artes cênicas como o Feteag, o Cena Cumplicidades e a mostra Luz Negra foram outros exemplos da potência negra na arte. Um ano para todos nós nos situarmos nesta questão mais do que urgente, com suas interseções que atravessam as discussões de gênero, sexualidade e classe.”

Sofia Lucchesi, estagiária

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