Comentário

"Adolescência" e as relações familiares

Minissérie dramática disponível na Netflix foca na discussão sobre a convivência familiar e não em desvendar a autoria de um crime

TEXTO Humberto Santos

24 de Março de 2025

Os pais de Jamie: Manda (Christine Tremarco) e Eddie Miller (Stephen Graham)

Os pais de Jamie: Manda (Christine Tremarco) e Eddie Miller (Stephen Graham)

Foto Divulgação

A truculência dos policiais invadindo a casa de uma família pacata numa cidadezinha do norte da Inglaterra pode dar a impressão de mais uma série sobre violência, crime e mistério. Adolescência é tudo, menos isso. O crime no seriado, apesar de sugestionar muito sangue, é mostrado ao telespectador de forma breve, sucinta, na tela de um laptop e sem muito foco. Aliás, em toda a série, você não vai ver uma gota de sangue. A violência sugerida na cena inicial parece ser apenas uma isca do autor para chamar a atenção do telespectador para tudo o que ele não vai encontrar ali. O anticlímax vem com a prisão de um menino de 13 anos que se urina nas calças diante da presença dos policiais e de sua família.

Esse anticlímax já é preparado pela forma magnífica como cada episódio é filmado. Em plano sequência. Apenas uma tomada com a câmera se deslocando por quase uma hora levando você junto como num carrinho de brinquedo de parque de diversão. E a viagem vale a pena. A maneira como a cena inicial é dirigida é bem diferente das da maioria dos filmes de ação. Parece mais lenta. Assim como a imagem, os efeitos sonoros e visuais também não nos remetem aos tradicionais filmes do tipo. Nenhum tiro, nenhuma bomba. Nada de cocaína ou outras drogas. Polícia violenta? Longe disso. Família com histórico de abusos, drogas ou álcool? Um menino rebelde, notas baixas? Nada. Ele é acusado de assassinar uma colega de escola com sete facadas na noite anterior. Ele diz que não foi ele.

A partir daí, a série se desenrola de uma maneira pouco previsível para quem está acostumado a sentar no sofá e fugir um pouco da nossa dura realidade com algum tipo de entretenimento. Se você vai assistir com esse intuito é bom se precaver. Talvez ela seja indigesta demais para acompanhar com um saco de pipocas ao seu lado. A obra é sobre relações familiares, não um crime ou internet. Estes entram como componentes que ajudam o diretor a levar você numa viagem, às vezes difícil, aos dilemas que pais e filhos já enfrentavam muito antes da internet ser inventada.

Como você se relaciona com seu filho, como o filho vê seu pai, como as experiências sociais fora da residência, isso inclui o computador do próprio quarto, afetam e expõem os mais profundos sentimentos do ser humano, como amor e ódio. Pais perdidos, escolas despreparadas, a internet pode ser uma selva cheia de símbolos próprios que parecem sequestrar as pessoas para dentro dela. E uma tragédia acontece. Culpa das redes sociais?

Com certeza estamos no meio de uma revolução. Não aquelas às quais estamos acostumados a ler nos livros de história. Mas uma revolução tecnológica e, sobretudo, comportamental, onde as particularidades advindas dela afetam a comunicação como nunca aconteceu na história da humanidade. E ela é rápida. Não estamos acostumados. Não estamos preparados. A adaptação ainda pode demorar. Enquanto isso seguimos dando cabeçadas por aí. Não se sabe nem mesmo como vamos nos adaptar. E nessa corrida contra o tempo, as crianças acabam saindo na frente, claro. Adultos já têm conceitos e percepções sobre a vida bem consolidadas. A criança é mais um quadro em branco, pronto para ser pintado pelo que lhe é oferecido como novidade.

Aos poucos, o telespectador vai percebendo a intenção dos autores: mostrar que podemos estar nos metendo em encrenca grande. E o pior: sem sequer desconfiarmos. É como se, numa corrida de F-1, as crianças aparecessem atrás da gente, só que eles já estão dando uma volta em cima de nosso carro e a gente acha que continua na frente. É quase patético ver a cara do policial, pai de um colega do garoto acusado, descobrindo que os emojis deixados pela garota assassinada nos posts do assassino têm um significado completamente diferente do que ele pensava e mudam completamente a linha de raciocínio dele. Ele foi alertado pelo próprio filho. E confessa, à colega de trabalho, que realmente mal conversa com ele.

O último episódio talvez seja o mais denso de todos. As reflexões da família após 13 meses de o filho preso e a notícia, dada pelo próprio, de que iria se declarar culpado, mostram o quão frágeis podem ser nossos castelos construídos dentro de aparências e regras pré-estabelecidas por uma sociedade que parece não conseguir se adequar às mudanças tecnológicas e comportamentais. A fala do pai que afirma nunca ter batido no filho com um cinto, para não repetir o que seu pai fazia com ele, mostra a tonelada de culpa e ressentimento que ele carrega. É de dar pena a cena final onde ele "enterra" o filho simbolicamente, dá um beijo no ursinho de pelúcia e desfere o soco final na barriga de cada um de nós: "Eu poderia ter feito melhor". Você poderia? Nocaute.

HUMBERTO SANTOS, jornalista

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