Cobertura

Narciso acha feio o que não é espelho

Contrariando a razão neoliberal, que renega o social em detrimento dos seus filhos, da sua cozinha e da sua sala de estar, Sesc São Paulo trouxe ao Brasil Judith Butler e Wendy Brown

TEXTO Bárbara Buril

08 de Novembro de 2017

Protesto se tornou em uma ilustração exemplar do que discute o evento 'Os fins da democracia'

Protesto se tornou em uma ilustração exemplar do que discute o evento 'Os fins da democracia'

Foto Bárbara Buril

É claro que não estamos vivendo no mesmo tempo político. Que tempo é hoje, politicamente?”, questionou a filósofa norte-americana Judith Butler nesta terça-feira (7/11), na conferência de abertura do seminário internacional Os fins da democracia, que reúne até a próxima quinta-feira (9/11), no Sesc Pompeia, em São Paulo, intelectuais de várias nacionalidades para debater aquilo ao qual o nome do evento alude de maneira intencionalmente ambígua: os objetivos e o colapso das democracias liberais em diferentes países do mundo. A pergunta de Butler, considerada atualmente uma das maiores pensadoras de nossos tempos, se trata de uma provocação inicial à campanha liderada pela ala conservadora brasileira contra a sua vinda ao Brasil, sintetizada sob a risível, mas sombria, hashtag “forabutler”.

Na entrada do Sesc Pompeia, os cartazes diziam: “Pedofilia não”; “#xôbutler”, “Menina nasce menina”; “Meus filhos, minhas regras”; “Não à ideologia de gênero”; “#escolasempartidoja”; “evil evil butler out out”. O protesto se transformou em uma ilustração exemplar para um evento que pretende justamente questionar os movimentos regressivos que ganham força hoje não apenas no Brasil, mas ainda em outros países, como na Alemanha, com a relevância alcançada pelo partido de inspiração neonazista Alternative für Deutschland (AfD) no parlamento alemão, ou nos Estados Unidos, com o movimento dos supremacistas brancos, em evocação contemporânea ao fantasma da Ku Klux Klan, que, ao contrário do que pensávamos, ainda ronda por aí.

O que Judith Butler defende, em obras aclamadas como Problemas de gênero, não é a pedofilia, a pedagogia ideológica ou a doutrinação gay, como sugere a campanha liderada pelo MBL e pelo ex-ator pornô Alexandre Frota. O que Butler busca, em sua teoria queer, é revelar que os modos pelos quais interpretamos o gênero e os corpos é fruto de uma construção social. Cumprindo a missão de uma filósofa, o que ela realiza, em seu empreendimento teórico, é “desautomatizar” as visões estabelecidas, dando-nos outras perspectivas possíveis – que existem, queiramos ou não. Desse modo, é possível entender a campanha contra Judith Butler também como um ataque frontal ao livre-pensar inerente ao fazer filosófico.


Judith Butler falou sobre os diferentes tempos políticos.
Foto: Erika Mayumi/Divulgação


O problema que enfrentamos, portanto, é maior: vivemos, claramente, não apenas em tempos diferentes (enquanto uns buscam a supremacia branca, outros procuram tirar da pele o direito de atribuir valor sobre quem se é), como também existe um conflito entre esses tempos políticos divergentes. É o que a teórica política Wendy Brown, professora da Universidade de Berkeley, na Califórnia, e esposa de Judith Butler, apontou na mesma ocasião do encontro do Sesc Pompeia: a razão do neoliberalismo é responsável pelo surgimento de um autoritarismo que se justifica, ironicamente, em nome da liberdade.

“O neoliberalismo é responsável pela rejeição do social”, defendeu na sua palestra e no livro Undoing demos: Neoliberalism’s stealth revolution (em livre tradução, “Desfazendo o demos: a discreta revolução neoliberal”). Ela argumenta que o neoliberalismo trouxe um inflacionamento do individual, em detrimento do social, e que isso tem sido bastante problemático se ainda buscamos manter uma democracia, já que a democracia pressupõe, para ela, a existência do social não como abstração, mas como prática. No entanto, a urgência do social, que se mostrou evidente, por exemplo, com o que se chama de “crise migratória”, teve justamente como resposta a ascensão de movimentos autoritários que exigiam a preservação das liberdades individuais: negativamente, as suas liberdades de não terem de lidar com aquele que não é espelho.


Para Wendy Brown, a democracia vive um paradoxo. Foto: Erika  Mayumi/Divulgação

Assim, de uma maneira mais ampla, o que as reações à vinda de Judith Butler denunciam, mais do que uma completa falta de leitura da obra da filósofa e uma ausência de uma visão mais profunda de mundo, é um sintoma evidente de que o social perdeu a sua força. A razão neoliberal, como muito bem colocou Wendy Brown, quer saber dos seus filhos, da sua cozinha, da sua sala de estar. Universaliza-se a norma privada a ponto de tudo o que não cabe nesta norma ser jogado no limbo da deturpação: o processo é gerido pelo medo, o afeto per se do neoliberalismo. É por isso que, para ela, a razão neoliberal é fortemente autoritária e antidemocrática.

Se há algo bom nesse cenário é o que Vladimir Safatle apontou na abertura do evento: “se um simpósio acadêmico pode provocar tantas reações, vem a pergunta: o lugar social da universidade é assim tão extemporâneo quanto querem nos fazer acreditar?”. Os líderes dos protestos contra a vinda de Judith Butler se tornaram os feiticeiros cuja magia foi de encontro a eles mesmos.


Visão geral da conferência de abertura do seminário. Erika Mayumi/Divulgação

Em tempos nos quais o sentimento geral é de estupor, eles nos ajudam a perceber que a universidade pode mais do que nos dizem, quando querem nos fazer acreditar na pretensa irrelevância dos que pensam, como indicou Safatle. Na verdade, ao contrário, nos dizem: “Vocês, que pensam, importam”. E, ao abandonarem o posto de ativistas sociais em menos de duas horas que a conferência tinha começado, também disseram: “Nós, que não pensamos, não importamos mesmo, é hora de ir”. E, voilà, não dá para sustentar mesmo um delírio por muito tempo.

BÁRBARA BURIL*, jornalista e mestre em Filosofia.

*A repórter está cobrindo o evento em São Paulo, a convite da Continente Online. 

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