Cobertura

“Belíssima máquina de manutenção do status quo”

Festival de Brasília inicia sua 50ª edição com três filmes que provocaram debate sobre o papel do cinema na questão racial

TEXTO Carol Almeida

18 de Setembro de 2017

'Vazante', longa-metragem de Daniela Thomas

'Vazante', longa-metragem de Daniela Thomas

FOTO Ricardo Telles

A responsabilidade de fazer uma curadoria de um festival de cinema, tenha ele o tamanho que for, passa por saber identificar a potência das imagens quando elas são colocadas em atrito. Há aí um exercício de montagem, igualmente cinematográfico, de juntar filmes que, uma vez dispostos um ao lado do outro, construam uma história própria que vai além de suas respectivas propostas individuais. E a história que foi contada na primeira noite da mostra competitiva do 50º Festival de Brasília foi um testemunho sensível de como o próprio cinema, esse a quem se reivindica um papel fundamental no pensamento crítico sobre ser brasileiro, é também um manifesto das sobrevivências coloniais que pairam sobre nós. Um testemunho de que as estruturas opressoras do Brasil escravocrata se repetem nos atos falhos do próprio pensamento da elite intelectual de esquerda.

Ao colocar o mais novo longa-metragem de Daniela Thomas, Vazante, um filme de época que se passa no período do Brasil Colônia, no desfecho de uma noite que vinha já carregada pela energia de dois curtas-metragens que tensionavam de forma muito orgânica e inteligente as possibilidades de futuro da juventude negra, a curadoria do Festival de Brasília levantou a bola. A cortada veio na manhã do dia seguinte, com o debate promovido entre as equipes dos filmes e as pessoas que participaram da conversa. Mas antes de chegar a esse debate, é preciso falar de que energias foram essas que circularam entre as imagens da primeira noite de Mostra Competitiva no Cine Brasília.

A começar pelo novo filme de Gabriel Martins, Nada. O curta tem como personagem central uma menina negra, Bia, que é de largada colocada em confronto existencial com o mundo a partir do momento em que deixa público na escola sua intenção de não fazer nada na vida. Tipo: nada. Nada de vestibular, de bater cartão, de atender a uma demanda para se transformar num ser funcional dentro da sociedade. Bia tá ali na vibe da batida do rap, um pensamento inteiro se construindo com o headphone no ouvido e a constante sensação de que o seu deslocamento no mundo não precisa se transformar em um drama, porque às vezes, para resistir, é preciso começar com um simples e bem tranquilo “foda-se”.


Nada, curta-metragem de Gabriel Martins. Foto: Diogo Lisboa e Rick Mello

A sutileza da insurgência está em todo canto. Na forma como o filme usa da própria vibração sonora que Bia escuta dentro do volume da sala de cinema – em algum momento, estamos nós com o headphone em alto volume no ouvido –, em como o timing cômico é sabiamente usado para deixar em primeiro plano todo esse absurdo que é “ter que fazer alguma coisa”, no gesto final de uma menina que parte para um movimento errante que sempre, no cinema e fora dele, foi dado quase que exclusivamente ao homem e, claro, na cisão histórica que uma adolescente negra cria quando quer se dar ao luxo – luxo? – de apenas não fazer nada.

Adicionado a tudo isso, há Clara Lima, rapper mineira que estreia aqui como atriz numa performance extraordinária, há Karine Teles numa participação especial que prova mais uma vez ser essa uma das nossas melhores atrizes de cinema e há Gabriel Martins, um jovem diretor negro que faz parte de uma das produtoras mais pulsantes do cinema brasileiro contemporâneo: a Filmes de Plástico, formada em boa parte por outros realizadores negros e periféricos da cidade de Contagem, Minas Gerais.

As rimas de Bia ainda ressoavam na cabeça quando, no bloco de filmes seguintes, surge o curta-metragem Peripatético, de Jéssica Queiroz, em sua estreia no Festival de Brasília. Num tom bem mais frontal, o filme traz como protagonista outra jovem negra que, ao contrário de Bia, está na batalha diária para conseguir seu primeiro emprego. Simone e seus melhores amigos, Thiana e Michel, elaboram diariamente estratégias de sobrevivência dentro da quebrada da periferia de São Paulo e boa parte das vezes isso se dá a partir de fabulações de como a cultura pop e geek, tantas e tantas vezes, é o lugar onde dá pra segurar. Como enfrentar uma infância e uma adolescência inteiras de ter que pegar várias conduções pra sair e chegar em casa sem Batman, sem espadas, sem Pokémons? E como lidar com as narrativas interrompidas desses jovens que, a qualquer momento, podem ter suas vidas exterminadas pela polícia racista brasileira? Com o cinema, Jéssica responde.

Peripatético, curta-metragem de Jéssica Queiroz. Foto: Carolina Filmes

Mas para além dessas fabulações, há algo muito importante e vivo no filme dessa também jovem diretora negra que é o tom frontal acima mencionado. O filme se abre e se fecha em planos propositalmente pensados para ter frontalidade com a câmera, numa ação de “sim, estamos olhando para vocês na mesma medida em que vocês estão nos olhando” e “sim, é com vocês mesmos com quem estamos falando, não vire o rosto”. Jéssica, primeira diretora negra em todos os 50 anos de Festival de Brasília a apresentar um curta-metragem numa mostra competitiva – e este ano ela está acompanhada de Glenda Nicácio, que será a primeira diretora negra a estrear um longa também na mostra competitiva de Brasília – deixou nossos rostos centrados e concentrados na tela do cinema quando surgia, então, Vazante, de Daniela Thomas, diretora branca.

O longa, teoricamente, está focado no drama de uma jovem moça branca que, assim como várias outras mulheres ao longo não apenas da nossa história, mas da história do mundo, foram ainda muito cedo estupradas pela figura predadora do homem branco. Teoricamente porque, na verdade, a câmera passa bem menos por essa personagem do que se imagina. O protagonismo do filme começa e termina com o mesmo homem branco de sempre: um português que estupra porque essa é a parte que lhe cabe no latifúndio do patriarcado. Mas eis que, para construir essa história, Daniela Thomas usa de uma opressão ao corpo feminino usando, ela mesma, de uma outra opressão a todo e qualquer corpo negro em seu filme.

Mais uma vez, a câmera está lá, perseguindo os conflitos existenciais do homem branco. Mais uma vez não temos qualquer personagem negro com um arco melhor desenvolvido e o único homem escravizado que tem uma voz insurreta nessa história é o homem silenciado, porque há deliberadamente uma aniquilação de sua língua no filme – ele fala em algum idioma que não entendemos e que, claro, não precisa ser traduzido, porque né? Mais uma vez, esses personagens servem de adereço dramático para as pessoas brancas do filme e seus corpos mortos são usados como bonitas metáforas de como a branquitude estetiza e poetiza os genocídios que podem estetizados e poetizados. Mais uma vez, temos uma fotografia e um som tecnicamente perfeitos no pano de fundo de uma história cuja perversidade é sublimada pelo elegante enquadramento da mão de uma menina passando pela relva. Mas se o filme de Daniela Thomas doeu na pele, é preciso dizer que ele doeu mais na pele de uns que de outros.

Corta então para o debate do dia seguinte que já é, sem dúvida, um dos momentos históricos desses 50 anos de Festival de Brasília. Daniela Thomas, com toda a carreira sólida que tem no cinema, era ali uma representação do corpo da própria instituição do cinema brasileiro e sobre que bases ele foi construído. Ao seu lado, não apenas uma parte do elenco negro de Vazante, como a diretora Jéssica Queiroz, mais a produtora e roteirista do curta Peripatético. Diante de todos eles, uma plateia que estava disposta a, finalmente, jogar as cartas sobre a mesa. Porque havia nessa plateia pessoas negras que estavam dispostas a fazer o exercício da frontalidade na conversa não apenas com Daniela, mas com a instituição do cinema que ela representa em certa medida.

E o que se ouviu nesse debate está profundamente atravessado pelas tensões – ou negação dessas tensões – elaboradas por um país que permanece escravocrata não apenas no seu cotidiano, mas em várias decisões da cadeia criativa do pensamento. O filme como um todo e várias de suas sequências foram questionados por mulheres e homens que apontaram para aquilo que, nas palavras do crítico e homem negro Juliano Gomes, colaborador do site Cinética, se transformou numa “belíssima máquina de manutenção do status quo”. O próprio elenco negro do filme de Daniela se mostrou mais do que disposto a manter esse debate vivo e à diretora coube, apenas, ouvir, porque mesmo quando ela tentava contextualizar seu próprio percurso no cinema – “tenho uma carreira que começou em 1996” – havia ali ao seu lado a jovem diretora Jéssica a pontuar a existência de uma mulher como Adélia Sampaio, primeira negra a dirigir um longa-metragem no Brasil e que, ao contrário de Daniela, não pode fazer outros longas.

De volta à sessão dos filmes na noite anterior, deixo aqui três imagens sobre o mesmo mural. Na primeira, vemos o personagem do homem branco português que, em Vazante, pode se dar ao direito de não usar sapatos. Na segunda, ouvimos a protagonista de Peripatético dizer: “Trabalhar ainda é uma questão de sobrevivência. Isso se você quiser ser uma mina independente de barriga cheia e com sapato bonito no pé. Sapatos (...) Eu não lembro o que veio primeiro na minha vida: o trabalho ou o sapato.” E, por fim, a imagem de Bia, em Nada, rimando sozinha em seu quarto: “Pois o após vem sempre com a voz, quem fez e não foi nós, graças a Deus já chegou nossa vez... É, eu tinha dito procêis, sabedoria pra não fazer igualzin aos português”.

 

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