Tecido social e Assentamento nº 4, obras da artista visual, pesquisadora e educadora Rosana Paulino. Foto: Nabor Jr/Divulgação
Eustáquio e Rosana são dois nomes, entre diversos outros, que balizam esse diálogo entre as gerações que marca a produção atual. Diante do que foi exposto até aqui, é possível a percepção de que a produção contemporânea na arte negra brasileira não é algo que brotou do nada. Ela se refere a uma continuidade, uma existência que resistiu a processos de invisibilidade e que hoje, apesar das cotidianas dificuldades, amplia sua voz e seus corpos, utilizando-se das mais variadas linguagens. “Para quem lida com arte, ela é, de certa forma, atemporal, mudam-se os meios e a forma de abordar, mas o que interessa de fato é a ampliação do discurso”, opina Eustáquio.
Discursos como o da artista pernambucana Ana Lira, que desde sempre questionou estruturas de poder e uniu o jornalismo, a fotografia e as artes visuais para trilhar seu caminho de contestação. “Meu trabalho deveria servir para isso: mover as coisas de um modo mais horizontal. Eu, como negra, tive uma quantidade enorme de negações no mundo. Entendi que a chave era construir outros espaços de poder. Foi quando percebi que não poderia ser só artista, ou só fotógrafa, mas que meu potencial de comunicação tinha também de ser permeado pela educação e pela formação, que deveriam estar articuladas de modo que minha trajetória servisse para outras pessoas também construírem as suas. Hoje em dia, meu trabalho é calcado nisso: processos de educação e de construção coletiva”, traça.
LIRA, LAURIANO, AMARAL
O trabalho de Ana é extremamente propositivo e de longa duração, pois ele se constrói a partir dele mesmo. Ela conta que, muitas vezes, fica meses ruminando o que determinada reação significa e, a partir daí, começa a criar, sempre tendo como norte o questionamento a estruturas de poder. Nesse caminho nasceu Voto!, inicialmente um trabalho desenvolvido com um coletivo de audiovisual que pretendia analisar as estruturas de poder no espaço urbano, sobretudo a partir de imagens de campanha eleitoral. Depois de produzir dois filmes sobre o tema, Ana passou a receber materiais, via convocação pública, que remetessem à crise de representação.
“Pensei: se todo mundo está em crise, mas segue votando nas mesmas pessoas, onde estão esse não, essa raiva, essa violência? Vi que elas rasgavam, riscavam a cara dos políticos (nas propagandas políticas de rua). Comecei a fotografar esses (cartazes de) candidatos com os rostos rasgados. O ensaio virou o Voto. Quando ele começou a circular, entendi que ia além, que o contexto era importante. Daí eu volto ao material bruto do filme para utilizá-lo em uma nova construção simbólica, em que um dos elementos era que todo mundo que participou poderia disseminar o material, desde que citando os nomes de quem estava envolvido. E, à medida que este material foi sendo disseminado, outras pessoas criaram obras. Fui exibindo esses materiais e entendi que o trabalho precisava de um segundo movimento: investigar proposições.”
Tais proposições foram discutidas durante exposição no Recife, na qual o debate central foi em como sair dessa crise. Já na circulação posterior da exposição em Belém, o elemento-chave para a discussão nos grupos públicos foi a perseguição e até mesmo o assassinato de representantes de religiões afro-brasileiras.
Esse caráter transdisciplinar e questionador das estruturas de poder encontra lugar também na trajetória do paulistano Jaime Lauriano. Dividido entre o curso de Artes Visuais e o de Economia, acabou estudando por seis anos (entre idas e vindas) no Centro Universitário de Belas Artes, em São Paulo. Saiu de lá como arte-educador e transpassado pelas experiências em compartilhar conhecimento com jovens das periferias de São Paulo, em aulas em que misturava artes plásticas com tecnologia, com a de perda de colegas de infância, vítimas da ação violenta da polícia militar, estruturou, então, suas investigações e trabalhos artísticos compreendendo a potência de sua voz através da arte.
“Esse entendimento me ajudou a moldar as minhas escolhas conceituais e estéticas, para aproximar os meus trabalhos de aspectos da educação e da história. Passei a entender que as minhas orientações políticas deveriam andar de mãos dadas com as estéticas. Por exemplo, utilizar a pemba branca (espécie de giz usado em rituais de religiões de matriz africana) nos desenhos dos mapas do Brasil Colônia foi uma opção de trazer à tona esse elemento primordial nas religiões afro-brasileiras, e mostrar que, assim como a configuração territorial do Brasil, a constituição dessas religiões é proveniente de uma grande violência, neste caso, o sequestro de povos africanos para trabalharem em situação de escravidão.”
Na obra de Lauriano Nessa terra, em se plantando, tudo dá (2015), uma muda de pau-brasil cresce dentro de uma estufa até que as suas raízes e galhos destruam a estrutura de vidro. Ao rompê-la, a planta terá como destino a destruição, de forma que sua existência é condicionada ao aprisionamento, em uma relação direta entre a violência dos povos nativos brasileiros e o processo de colonização.
Os processos brutais, físicos, sociais e psicológicos que atingem a população negra, da época da escravidão até hoje no Brasil, permeiam o trabalho do paulistano Sidney Amaral (falecido em maio deste ano), a partir de diferentes suportes, como pintura (extremamente realista), escultura e desenho, nos quais, ao se apropriar de cenas e objetos do cotidiano, introduz elementos de estranhamento, ironia e sarcasmo, para tratar das questões sociais e raciais. Como na obra Castigo, em que, utilizando-se do recurso da autorrepresentação, o artista apresenta seu corpo negro marcado pelas identidades visuais de multinacionais que ditam regras e modos de viver. Ou como em Mãe preta ou a fúria de Iansã, na qual representa a defesa de uma mulher frente a ameaça à vida de seu filho com seus tons intensos e potentes.
Mesmo que sofra a descontinuidade por sua morte precoce, a obra de Sidney Amaral (que conta duas décadas) precisa ser mencionada, quando se trata da arte negra contemporânea brasileira. “Gosto de pensar toda minha produção de modo híbrido, de vasos comunicantes, onde um parece outro, onde tudo se mistura com tudo. A proposta é criar um conflito onde as linguagens se bifurcam e se entrelaçam. Vejo minha obra sempre como um espelho que, ao ser olhado por muito tempo, nos lembra dessas metamorfoses do mundo, do meu querer estar no mundo e encontrar esse meu lugar. Sou um ser que estou deslocado todo o tempo”, disse o artista, em entrevista recente para a revista de artes negras O Menelick 2º Ato.
No olhar da curadora Diane Lima, a atualização conceitual, do ponto de vista da própria linguagem, moderniza o que é a produção negra visual contemporânea. Não somente ela, mas as que vieram antes, tanto em estilo, quanto na ética e política, em uma proposta contínua de resistência, à medida que existe uma propensão a se trabalhar com algumas formas de ver a vida e o mundo próprias da condição da negritude. “E esse movimento de resgate e de reinvenção é um traço presente na produção de hoje, o que não significa que está relativizado, ao contrário. São obras, produções e práticas que causam uma ruptura em nosso próprio imaginário de negras e negros, que também tivemos nossos corpos e mentes colonizados nos espaços educacionais e comunicacionais. Estas obras apresentam essa outra perspectiva de ser negro.”
AGORA SOMOS TODXS NEGRXS?
É na ampliação das vozes negras que a arte, mais que a ciência ou o conhecimento acadêmico, tem o potencial de criar narrativas que questionem padrões e proponham mundos outros, de forma que macro e micro caminhem de mãos dadas. O macro se refere às tramas institucionais e espaços de dominação; o micro se relaciona à percepção de mundo, o mais difícil de se alterar, porque se constrói a partir de signos e imaginários.
Tal percepção norteou a curadoria que o artista e pesquisador Daniel Lima fez da exposição Agora somos todxs negrxs?, aberta em São Paulo, no Galpão VB - Videobrasil, até 16 de dezembro. A coletiva reúne 15 artistas negros, em sua maioria nascidos nos últimos 30 anos do século XX, que trabalham com questões de raça e de gênero, usando suportes como fotografia, pintura, vídeo, instalação e performance. Entre eles estão Ana Lira, Jaime Lauriano, Sidney Amaral e Rosana Paulino, já citados neste texto, e outros que logo serão citados. Essa gama de gente e de linguagens tece uma trama de artistas articulados, que não apenas dialogam e recuperam as gerações anteriores, mas também trabalham em colaboração entre si.
Apesar da potência dessa produção, em termos gerais, muito pouco se conhece sobre o trabalho de artistas negros no Brasil e há poucas discussões críticas sobre essa produção. Para a curadora Fabiana Lopes, isso acontece porque o Brasil permanece na fase de reelaborar o que se entende por cena de arte contemporânea. “Por isso, eu acredito que seja bem mais relevante abordar a produção dos artistas em relação umas com as outras. Particularmente, estou mais interessada na produção como rede. Entender isso é, a meu ver, mais importante no momento do que destacar indivíduos.”
Agora somos todxs negrxs? traz uma visão aquilombada de mundo – algo essencialmente brasileiro, os Estados Unidos, por exemplo, sequer têm uma palavra que traduza quilombo – e especialmente desafiadora em um universo branco, como é o da arte contemporânea. “Para mim, exposição como a nossa causa, sim, alguns incômodos, porque desafiamos o que está aí, tomando o lugar de palavra. Se a gente ocupa um lugar, tiramos o lugar do outro que, neste caso é branco, e ele vai escolher maneiras sutis para desafiar essa iniciativa”, acredita Daniel.
Aceita, série de fotografias de Moisés Patrício. Foto: Divulgação
Porém, é preciso cautela ao definir a arte negra contemporânea brasileira como coletiva, apenas. Ao defini-la, a contradição pode surgir. Ainda assim, é inegável a perspectiva comunitária dessa nova geração de artistas negros, porque ela é feita dessas interações, o que, de certa forma, permite que sua voz ecoe e transpasse a hegemonia branca nas artes visuais. “Todos nós, como artistas, percebemos como essa operação de trazer o debate racial, de gênero, de transgênero, vai sempre bater de frente com o mundo hegemônico branco, não à toa existe uma crítica em setores do jornalismo especializado que nos coloca como modismo, oportunismo. Ora, oportunismo em uma sociedade que teve quase 358 anos de escravidão?”, questiona Daniel.
O olhar do mainstream que muitas vezes percebe a arte negra como modismo se refere ao fato de que instituições e espaços comerciais estão um pouco mais abertos para receber esses artistas. Ou seja, o boom é mais na recepção do que na produção em si. É o que percebe Fabiana Lopes, que menciona uma matéria publicada em fevereiro de 2015, no jornal Folha de S.Paulo, intitulada Que povo é esse?. O texto tratava da presença constante de um grupo de artistas e intelectuais negros em aberturas de exposição em espaços de elite da cidade de São Paulo. “O que esse artigo nos diz sobre a expectativa que existe dentro da sociedade brasileira dos lugares que devem e dos que não devem ser ocupados por ‘esse povo’? O que o artigo nos revela sobre as marcações de espaços de pertencimento e não pertencimento? Se ‘esse povo’ faz parte da sociedade brasileira desde sua formação, por que o estranhamento? Talvez, a real pergunta escondida atrás do título seja ‘o que esse povo está fazendo aqui?’. A despeito, entretanto, de toda tentativa de apagamento, apesar do esforço histórico em delimitar o espaço a ser ocupado por ‘esse povo’, a produção de artistas negros continua vibrante, crescendo e abrindo espaços.”
O fato ao qual a matéria do jornal paulistano se refere é a performance A presença negra. Idealizada pelos artistas Peter de Brito e Moisés Patrício, teve lugar na capital paulista em 2014 e 2015 reunindo pessoas negras do campo das artes e de outras esferas de conhecimento, que apenas ocupavam espaços de galerias, usualmente em bairros nobres da cidade, durante a abertura de exposições. Normalmente, grupos de 20, 30 pessoas (todas negras) circulavam nesses lugares e, como se diz, atualmente, “causavam”.
“A presença negra é uma ação pacífica e alegre, um ato consciente e subversivo que tem como propósito preencher a lacuna que existe entre a comunidade de artistas negros e certos espaços sociais, por meio da ocupação de galerias, museus e instituições culturais, por um grande número de afrodescendentes, em dia de abertura de exposição. O mote da ação é a apreciação da mostra. A exposição na qual deverá ocorrer a ação é escolhida com antecedência e os participantes são convidados a chegar no transcorrer da mesma, de modo que a ocupação ocorra aos poucos. O convidado receberá com antecedência um texto contendo todas as informações para a participação e deverá confirmar sua presença e manter sigilo quanto ao evento escolhido”, afirma trecho do Manifesto da ação. Atualmente, a performance não tem mais acontecido, mas foi um importante momento de articulação e encontro desses artistas e contribuiu para pautar a presença negras nas artes visuais.
Dentre os trabalhos de Moisés Patrício, um dos idealizadores de A presença negra, o que tem alcançado grande visibilidade, dentro e fora do Brasil é a série Aceita, fotografias tiradas diariamente de suas mãos, que ofertam diversos objetos de forma a criar uma linguagem e uma poética que problematizam temas como trabalho, identidade, preconceito, representatividade, religião, política e uma série de outras questões, já que a série reúne quase mil imagens, realizadas desde 2013. Inicialmente difundidas na página do Instagram do artista, Aceita ganhou espaços em museus do Brasil e esteve na Bienal de Dakar, no Senegal. Para além da fotografia, rituais, performances e instalações também são suportes para a sua arte. “Um artista é um artista. Ser negro no Brasil é muito específico. Qualquer fronteira é complicada, porque a prática da arte é não ter fronteira. Andar à deriva. Na minha profissão, ser negro está no meu gesto, no meu código, no meu corpo, na forma como me projeto e oferto minha arte.”
Este rompimento de fronteiras perpassa a obra do mineiro Paulo Nazareth, que já percorreu distâncias inusitadas entre países das Américas. Um performer andarilho que, nessas vivências, acumulou objetos e imagens. Apesar de tantos caminhos percorridos, Paulo pensa o mundo a partir de onde nasceu, Santo Antonio das Figueiras, e traz em sua essência de artista as memórias de sua infância, quando amassava o barro e fazia bonecos usando madeira em convivência e aprendizado com mestres da arte popular. Reconhecido internacionalmente a partir dos trabalhos expostos nas bienais de Veneza e Lyon, carrega essa influência por todos os lugares por onde passou e percebe em seu trabalho uma retomada em sua percepção pessoal como negro.
A FALA DO CORPO
A performance, linguagem que tem crescido como um todo no campo das artes visuais, é ferramenta potente para manifestar as questões do corpo afro-brasileiro. Um corpo que foi marcado, como mostra A transmutação da carne, do baiano Ayrson Heráclito, e exposto, como apresenta o mineiro Luiz de Abreu, em Samba do crioulo doido. Mas são corpos também que colocam sua intervenção no espaço, rebelam-se e rompem com o passado.
A paulistana Musa Michele Mattiuzzi, que além de performer é também escritora e pesquisadora, apropria-se do lugar exótico no qual a mulher negra é colocada pela sociedade brasileira para subvertê-lo e criar narrativas para esse corpo feminino negro. Em merci beaucoup blanco, um experimento escrito de fotografia e performance, gravado em vídeo para Agora somos todxs negrxs?, ela se utiliza da cor branca e de perfurações em seu corpo para problematizar o processo de embranquecimento das mulheres negras e a tentativa de formatá-las ao padrão cisbranconormativo.
As específicas questões das mulheres negras, que em uma proposta de cruzamento entre raça e gênero são as mais afetadas pelo machismo e sexismo vigentes na sociedade – segundo o Mapa da Violência de 2015, em 10 anos, a morte de mulheres negras cresceu 54%, se comparada com mulheres brancas – são elementos usados também nas performances da mineira Priscila Rezende. “Acredito que na ação performática tudo é informação, tudo pode ser utilizado para transmitir algo, uma vestimenta, cor, ou simplesmente o meu corpo presente no espaço já é potência de reverberação. Ser negra no Brasil é resistência. Sabemos que estar vivo já é simbólico. Conseguir se manter vivo, sobreviver além das violências e brutalidades, tanto físicas quanto psicológicas e emocionais às quais somos submetidas diariamente carrega em si um poder e força muito significativos. Por isto acredito que a presença de um corpo negro carrega uma fala, mesmo que não expressa em palavras. Nosso corpo, nossa pele, nosso cabelo, nossa existência em si já é simbólica”, afirma a artista.
Em Bombril, usa seu cabelo para lavar panelas e falar da relação entre estética e racismo, questionando padrões eurocêntricos de beleza, que se mostram como uma forma de violência contra a população negra, especialmente as mulheres. Para nutrir seu trabalho, além de partir das próprias vivências e experiências, usa também histórias de outras mulheres negras que carregam em suas trajetórias semelhantes de dores e sofrimento, mas também de força e empoderamento, que foram ou são apagados, escondidos.“A cada dia vou conhecendo mais e mais artistas negras, e acho incrível a diversidade dessa produção, que abarca trabalhos de desenho, pintura, performance, gravura, instalação, escultura. Nos últimos anos, foco minha pesquisa no campo da performance e tenho algumas artistas como norte, como Renata Felinto e Michelle Mattiuzzi. Rosana Paulino também é uma referência muito importante, porque me identifico com as questões abordadas em seu trabalho. Além disso, é uma artista que abriu portas para a geração ao qual pertenço”, destaca Priscila.
Dentre as referências de Priscila, a paulistana Renata Felinto, que vive atualmente no Crato, no Ceará, percorre uma trilha diversa no que se refere às linguagens utilizadas para dar vazão à sua voz. Essencialmente crítica em seus trabalhos e ativa nas redes sociais, Renata criou a videoperformance White face and blonde hair, na qual percorre lojas sofisticadas da Rua Oscar Freire, endereço da elite paulistana, de peruca loira, óculos escuros e trajes sociais, e Danço na terra em que piso, em que executa uma vibrante coreografia em espaços diversos da capital paulista, fortalecendo a figura feminina negra com sutileza e poesia.
Em Bombril, Priscila Rezende aborda estética e racismo. Foto: Divulgação
Seus últimos trabalhos têm tratado de questões como sua condição de mãe sozinha, que recebe toda a culpa da sociedade por estar nessa situação. Em uma obra que está em andamento, reuniu recibos e notas fiscais de gastos com suas crias durante um ano, recolheu frases que mulheres nessas condições ouvem das pessoas próximas. A partir daí, criou estampas com as tais contas em tecido para produzir enxovais de bebês compostos de lençol, manta, cueiro, fronhas e paninhos. “Minha vida tem sido disparadora de assuntos sobre os quais tenho tratado nas obras. Pode parecer egocêntrico, entretanto, todo artista visual, em verdade, cria a partir de si”, argumenta ela, que é professora na Universidade Regional do Cariri. Renata também está num processo de pesquisa para o trabalho O axexê da negra – Ou descanso das pretas que mereciam ser amadas, no qual aborda as mulheres por trás das amas de leite, numa seleção de imagens dessas pessoas que, em um movimento performático de Renata, são enterradas em uma cova. Partindo de A negra, de Tarsila do Amaral, questiona como uma das principais obras do modernismo brasileiro se propôs atualizar a arte brasileira a partir de uma referência escravocrata. “A gente percebe como a elite brasileira, desde sempre, não tem um pingo de autocrítica e se vê isolada dos processos históricos”, critica.
ARTE OU ARTE NEGRA?
A criação crítica do artista afro-brasileiro centrada nas diversas nuances da discriminação traz um questionamento: o artista negro precisa, necessariamente, tratar das questões raciais em sua obra? Poderia isso aprisioná-lo em uma única possibilidade de tema? São questões complexas que não têm uma resposta específica, mas que fornecem elementos para debates importantes. Ana Lira conta que, quando estava produzindo o trabalho Voto, queria participar de editais de circulação, mas não conseguia, porque em todos constava a necessidade explícita de racialização do trabalho. Sua obra, apesar de criticar o poder que alimenta o racismo como estruturante da sociedade brasileira, não trata diretamente da discriminação.
Porém, o letreiro que ela produziu para a exposição Agora somos todxs negrxs?, que se localiza logo na entrada do espaço expositivo e traz a frase “Que bocas alimentam fé em consumir corpos que levam fumo?”, problematiza a questão do genocídio e o encarceramento da juventude negra. “A única maneira que podemos existir no mundo é falando de nossas dores, que é claro que devemos fazer, mas não devemos nos contentar apenas com esse lugar, deixar que ele seja o único permitido. Senão essas relações de poder que eu tanto critico estarão cada vez mais legitimadas. Quero falar do que eu quiser, sem pedir permissão para nada”, afirma Ana Lira.
Assista ao nosso vídeo sobre o tema:
“Objetivamente, eu entendo esses dilemas e esse lugar de enquadramento do corpo racializado. É importante ter esse lugar de autonomia para se falar de qualquer coisa. A branquitude tem esse livre arbítrio de ir e vir universal que é um lugar coletivo. Não se fala de raça branca, não se delimita dessa maneira, como se coloca com o negro. Acho que essa é uma discussão que tende a se aprofundar nos próximos anos, porque é algo que deve ser questionado. Mas eu vejo potência, importância, motivos e justificativas que fizeram com que nós demarcássemos esse território do ser negro nas produções artísticas. Passamos por um processo de invisibilidade tão grande, que precisamos mostrar. Se não tivéssemos tido essa voz e essa oportunidade de nomear as coisas que a arte nos dá, de fato, acho que não teríamos tido os avanços que temos hoje. Mas também é importante quando o artista traz outra construção sobre o que é ser negro, que vai além de tratar sobre a negritude, mas ser a negritude. Isso é complexo, potente e desafiador”, expõe Diane Lima.
Para Renata Felinto, sua condição é inerente à sua obra. Por isso é enfática: “Eu vivo o ser negra. Impossível pensar a minha criação artística sem passar por isso, seria como ficar pintando paisagens, não estamos mais num momento onde pintar paisagens faz sentido para uma mulher que se sabe negra. Soa anacrônico, alienante. É momento de expor, apontar, dialogar, rever, repensar, revisar”.
Fabiana Lopes destaca que as perguntas que parecem relevantes são: quais as questões articuladas por esses artistas contemporâneos dentro desse contexto social que se define como Brasil? Como esses artistas abordam seus objetos? Quais são suas estratégias estéticas e conceituais de pesquisa? Como essas estratégias se articulam na obra? Esperar que artistas “falem sobre” isso ou aquilo significa não entender a abrangência e os limites do campo de arte contemporânea. “Talvez essa expectativa venha de uma dificuldade que esse ‘público expectante’ tenha em fazer leituras de obras em que questões estético-conceituais venham entrelaçadas com reflexões sobre o universo social do artista. Num contexto social em que o racismo é gritante (sufocante, muitas vezes), é bem possível que esse elemento venha costurado na pesquisa artística”, acredita.
Nessa encruzilhada em que o debate se apresenta, fundamental é discutir a necessidade, ou a tentativa, de se catalogar ou engessar a arte brasileira produzida por pessoas negras. A sociedade brasileira é estruturada no racismo, forjou-se sob a violação dos corpos negros e indígenas. Para além dos ataques físicos, busca ainda aniquilar as singularidades da negritude e é aí que se localizam os mecanismos de padronização dessa produção artística. Ser homem ou mulher negra, seja cis ou trans, apresenta um oceano de possibilidades, que não se encerram em via única. A diversidade da produção dos artistas que permeiam esta reportagem comprova esta afirmação, que se reforça em obras de pessoas como Janaina Barros, Juliana dos Santos, Dalton Viana, Jota Mombaça, Sonia Gomes, Lidia Lisboa, ZMário, Tiago Gualberto, Helô Sanvoy, Dalton Paula, Hélio Menezes, Charlene Bicalho, Millena Lizia, Natalia Marques, Olyvia Bynum, Wagner Viana, Rubiane Maia, Peter de Brito e tantos outros que não couberam nesta reportagem.
CHRISTIANE GOMES é jornalista, membro do conselho editorial da revista de artes negras O Menelick 2º Ato.