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Zé Manoel: Talento lapidado pelo piano clássico

Compositor, cantor e pianista lança, neste ano de consolidação de carreira, seu segundo álbum, o já aclamado 'Canção e silêncio'

TEXTO Marina Suassuna

01 de Setembro de 2015

Zé Manoel

Zé Manoel

Foto Elvio Luiz/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 177 | set 2015]

Quando lançou seu primeiro EP homônimo
, em 2012, Zé Manoel impressionou muita gente pelo requinte de suas canções, executadas no piano com a desenvoltura e o lirismo de um mestre da música popular brasileira. A surpresa do público também se deu pela afinidade do pernambucano, de apenas 31 anos na época, com uma seara musical ainda carente de jovens adeptos em Pernambuco: a música erudita. Suas harmonias carregam a cultura adquirida pela formação em piano clássico durante 10 anos, que inclui conhecimento de compositores como Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Tom Jobim. A graduação em Música pela UFPE, somada à experiência de tocar na noite e em cruzeiros, lapidou ainda mais a linguagem adotada por Zé Manoel.

Este ano, além de consolidar seu trabalho nacionalmente em shows pelo sudeste do país, o músico pernambucano deu mais um passo importante em sua carreira. Graças à aprovação no edital da Natura Musical 2013, conseguiu lançar seu primeiro CD (segundo registro da carreira), intituladoCanção e silêncio. O edital permitiu ainda que Zé Manoel reunisse, no mesmo álbum, dois dos produtores mais requisitados do país, o gaúcho Carlos Eduardo Miranda e o carioca Kassin, que contribuíram bastante para a identidade do álbum.

Kassin não só ficou a cargo da produção adicional de bases, como também assumiu o baixo nas gravações. “Além de tocar lindamente e escolher timbragens específicas para o disco, ele me ajudou a criar climas e dinâmicas para o piano. O caminho estético escolhido por ele e Miranda me surpreendeu positivamente. Foi um mergulho mais profundo no meu universo musical, uma redescoberta e ressignificação do meu trabalho”, ressalta o pianista. “Quando convidei Miranda para produzir o disco, isso causou estranheza a muita gente, pela história dele com bandas importantes de rock, além de ser uma figura importante na cena mangue da década de 1990. Mas eu queria exatamente alguém que não reverenciasse estruturalmente o que eu já vinha fazendo e que não tivesse receio de mexer, desconstruir. Alguém que trouxesse referências externas ao meu universo.”

Além de acompanhar todo o processo de escolha do repertório, Miranda foi responsável por definir a sonoridade e a instrumentação do disco, que, além dele ao piano e Kassin no baixo, contou com a presença luxuosa de Tutty Moreno, baterista com atuação em discos históricos da música brasileira, como Transa e Araçá azul, de Caetano Veloso; Expresso 2222, de Gilberto Gil; Cantar, de Gal Costa, entre outros.

CONCEITOS
De acordo com Zé Manoel, Canção e silêncio foi importante para desfazer velhos conceitos e reestabelecer novas conexões musicais-artísticas. Ele se refere, sobretudo, à revisão que fez de sua concepção acerca da canção romântica. “É inegável que uma das minhas referências é a música romântica, o bolero, o brega, samba-canção, o jazz balada, a bossa nova. Mas sempre tive receio de adentrar mais esse universo já tão explorado e desgastado pela música brasileira. Tanto é que, inicialmente, eu reneguei a música que hoje dá nome ao disco. Uma música romântica, sem muitos arrodeios.”

O disco conta com arranjos do maestro baiano Letieres Leite, do pernambucano Mateus Alves e do carioca Fabio Negroni, e têm as participações de Juliano Holanda (guitarra), Pupillo (bateria), do percussionista Johann Brehmer e da cantora pernambucana Isadora Melo. “No caminhar das gravações, todos foram me ajudando a aceitar melhor as diferentes formas com que o trabalho de um compositor pode se manifestar, sem censurá-las, fazer juízo de valor. Foi um processo libertador”, afirma.

Durante a seleção para o repertório de Canção e silêncio, Zé Manoel deparou-se com a menção constante à água em suas composições. Nascido em Petrolina, o músico acredita que a inspiração vem de sua forte ligação com o Rio São Francisco, e também da “simbologia da chuva no sertão, onde a água é quase um Deus”. Mas a água da qual o artista se banha neste trabalho é, sobretudo, a salgada. Aquela que “deposita sobre a areia cachos de estrelas marinhas”, como diz a canção O mar, parceria com o letrista Sérgio Napp. A relação que Zé Manoel estabeleceu com o elemento água como inspiração poética também inclui momentos de apreensão e desespero, quando um pescador da cidade de Olinda consegue fisgar, com sua rede, o próprio filho que havia desaparecido no mar, história real retratada na letra de Sereno mar.

“Neste trabalho, estou quase o tempo todo à beira do mar, entre os mistérios, a beleza, as histórias de pescadores, as angústias de viver entre a vastidão solitária desse mar de água salgada e do lado oposto, o concreto frio e feio”, explica. “Porém, em alguns momentos do disco, visito Petrolina. Na prática, foram visitas reais. A música Água doce surgiu numa dessas idas em que o céu estava bonito para chover e lembrei o quanto essa sensação de pré-chuva é um estado de espírito no Sertão, um sentimento de paraíso, que só quem passa quase o ano todo sem ver chuva sabe como é.”

Ao mesmo tempo, a chuva funciona como alegoria de pranto e lamento vividos pelo personagem da canção Cheio de vazio, que sai de madrugada pela Rua da Aurora, sem saber para onde ir. Para Zé Manoel, a presença da água não foi um pré-requisito para a escolha das músicas, aconteceu naturalmente. “Percebi que tudo fazia muito sentido com o momento que eu estava vivendo. No Recife, vivo muito esse fascínio pelo mar. Este disco sou eu integrado, entregue ao Recife”, esclarece o músico, que trocou a cidade natal pela capital pernambucana em 2007.

Prestar atenção às letras de Zé Manoel é enxergar paisagens tão universais quanto atemporais. Suas composições têm aparência de narrativa cinematográfica, não só pela potência visual, mas pela instrumentação clássica, que remonta a melodias elaboradas com picos de emoções peculiares às de uma trilha audiovisual. 

MARINA SUASSUNA, jornalista, com especialização em Estudos Cinematográficos.

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