Arquivo

Alessandra Leão: Mergulho na produção

Na trilogia 'Língua', cujo EP homônimo ganha lançamento neste mês, cantora e compositora realiza projeto de imersão pessoal

TEXTO Maria Eduarda Barbosa

01 de Setembro de 2015

EP que carrega influência da cultura popular encerra trilogia da cantora

EP que carrega influência da cultura popular encerra trilogia da cantora

Foto Tiago Lima e Vânia Medeiros/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 177 | set 2015]

Foi num boteco em Olinda, o Bar do Déo
, que o acaso uniu cinco mulheres em torno da música. Elas já se conheciam de alguma forma. Alessandra Leão, Karina Buhr, Isaar e Renata Mattar. Também casualmente Telma César, que morava em Maceió, estava no Recife à época. Ali surgia a primeira formação da Comadre Fulozinha. Na verdade, a ideia de montar um grupo apareceu pouco tempo depois desse encontro, numa conversa entre Alessandra e Karina, que, junto a Renata, escolheram o nome da banda. Era 1997 quando a cantora, compositora e percussionista Alessandra Leão iniciava sua carreira musical. São 18 anos trabalhando, tempo sobre o qual ela brinca: “Estou na maioridade, já”.

A artista de 36 anos nasceu no Recife, mas vive em São Paulo desde 2014. A mudança para essa cidade veio junto à produção de seu novo projeto Língua, formado por três EPs: Pedra de salAço e o terceiro, homônimo ao título da trilogia. O primeiro foi lançado em novembro do ano passado, o segundo saiu em maio deste ano, e o que encerra o ciclo tem lançamento neste mês. O trabalho surgiu de um mergulho de Alessandra, que vinha de cinco anos sem lançar disco solo. Mas, antes de falar sobre o recente projeto, vamos a um passeio pela carreira da artista.

Ainda adolescente, Alessandra estudou teatro e começou a pesquisar caminhos para se aprimorar. “Então comecei a cantar e dançar.” A percussão sempre foi uma paixão. Assim que teve contato com o instrumento, surgiu a ideia da Comadre Fulozinha. Uma amiga se tornou a produtora do grupo e os shows agendados incluíram apresentação no Abril pro Rock. “Toda a energia do teatro eu comecei a voltar para a música.”

Em 2000, Alessandra deixou a Comadre por motivos pessoais. “Meu filho estava bem pequeno e achei que deveria trabalhar com outra coisa, com a família. Depois voltei a tocar e a trabalhar com música”, afirma. A amizade entre ela e as outras integrantes continua e, embora a artista possua uma sonoridade diferente da que era feita no grupo, a cultura popular se mantém viva em seu trabalho. “Acho que tem uma essência ali, ainda. Essa música de rua continua sendo uma referência muito forte.”

Quando retornou à música, Alessandra chegou com o ótimo Brinquedo de tambor, trabalho solo lançado em 2006, que a revela compositora. O álbum conta com produção e arranjos feitos por Caçapa, violeiro, compositor e arranjador. Alessandra e o músico se conheceram em 1997, no grupo de maracatu de baque solto Boizinho Alinhado. A parceria profissional entre os dois começou em Brinquedo de tambor. “E a partir daí a gente não parou mais”, conta Caçapa. Atualmente, além de trabalharem juntos, eles estão casados.

Em 2008, Alessandra lançou o disco Folia de santo, produzido e idealizado pela artista. O projeto surgiu antes mesmo do lançamento do primeiro disco solo e dialoga com músicas populares que fazem referências à devoção. Um ano depois, Alessandra lançou seu álbum solo Dois cordões, e agora dá seguimento à finalização da trilogia Língua. Junto a Caçapa, Alessandra criou o selo Garganta Records, que possui oito títulos lançados, nove com o EP Língua. A artista conta que a ideia surgiu do anseio de maior autonomia para a produção. “A criação de um selo proporciona isso, essa estrutura, essa formalização”, ressalta.

Ao lado de Rafa Barreto, guitarrista da banda que a acompanha nos shows, Alessandra mantém o projeto Punhal de Prata, no qual interpreta o repertório de Alceu Valença da década de 1970. O pai do guitarrista foi parceiro de Alceu em trabalhos como Morena tropicana. Além dos shows, Alessandra pretende lançar CD do Punhal em 2016.

Motivações pessoais, financeiras e de relação com o público fizeram Alessandra tocar para a frente o projeto da trilogia de EPs. “A gente chegou aqui no ano passado e não tinha grana para fazer um disco. Em paralelo a isso, eu e Caçapa já vínhamos conversando sobre outras formas de lançar pelo selo (Garganta Records)”, conta a artista. “Acho que a gente precisa fazer vários mergulhos ao longo da vida. Não é um só, nem um mais intenso que o outro. Acho que são vários”, explica. Pedra de sal é a preparação, a tomada de ar para a descida, e trabalha a relação dos outros com os espaços. Aço é quando o mergulho acontece. “É a parte mais densa, visceral, mais conceitual e autocentrada, digamos assim.” E Língua é o retorno dessa imersão, pois trata de partes mais externas do corpo.

Ao ouvir os dois primeiros EPs da trilogia Língua, é possível acompanhar a tomada de ar e o mergulho de Alessandra. Em Pedra de sal, o timbre forte da artista se une aos arranjos bem-elaborados, porém mais leves em relação a Aço. No primeiro EP, as músicas anunciam a preparação para o mergulho. Nele, a guitarra torna-se protagonista, ao lado da voz marcante de Alessandra. Já a percussão, sempre presente na musicalidade da artista, ganha toques mais leves. Nas cinco músicas, é possível sentir o caminho traçado até acontecer o mergulho.

A primeira música faz referência à Iemanjá, enquanto a faixa-título chega com mais ousadia vocal e sonora, trazendo em seu fim a primeira tomada de ar. Em seguida, os acordes anunciam a participação de Kiko Dinucci, que também canta ao lado de Alessandra. Em Tatuzinho, não encontramos a percussão, apenas as suas vozes, que assumem um ritmo mais intimista ao lado da guitarra. O ritmo emenda com os efeitos eletrônicos de Mofo, próxima música do EP, cuja sonoridade é mais densa. Em Devoro o lobo, última música de Pedra de sal, também com participação de Kiko Dinucci, Alessandra alcança seu ponto alto vocal na primeira parte da trilogia, em uma canção repleta de ruídos e efeitos combinados ao timbre da guitarra.

Aço começa visceral, mais denso, com ruídos, acordes dissonantes e elementos percussivos. Na trilogia, a bateria é pensada como percussão, com timbres que remetem à sonoridade da música do Congo, uma grande referência para Alessandra. Em Mergulho, segunda música do EP, a ciranda se mistura às guitarras, com participação de Odete de Pilar, coquista e cirandeira da Paraíba. Aço segue com Prolonga e Acesa, uma parceria entre Alessandra, Kiko Dinucci, Rafa Barreto e Missionário José, continuando com Mergulho, na qual a artista canta: “cada tropeçar/ cada levantar/ deixa a pele se romper/ nado pra correr/ rasgo pra me ver”. E isso foi exatamente o que ela fez, recriando-se com autonomia e experimentações criativas. O EP finaliza com a volta de Odete de Pilar em Foi no Porão, na qual fica claro que a influência da cultura popular permanece no trabalho de Alessandra. 

MARIA EDUARDA BARBOSA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

Leia também:
“O artista deve lutar contra as armadilhas da dependência”
Eddie: mais adulta e cosmopolita
Lira: o peso da palavra, do declamador ao autor
Zé Manoel: Talento lapidado pelo piano clássico
Graxa: burilando as possibilidades do lo-fi
D Mingus: A sujeira da sonoridade
Zeca Viana: A capacidade de se reinventar
Matheus Mota: Um olhar sobre o homem comum
Johnny Hooker: Porta-voz das vítimas do amor

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”