Morte e vida, sexto disco da banda, carrega de forma bem evidente esse embate nas entrelinhas de suas 11 faixas. É o momento “pós-punk” do grupo formado por Fábio Trummer (voz e guitarra), Alexandre Urêa (voz e percussão), Andret Oliveira (trompete, teclado e samplers), Rob Meira (baixo) e Kiko Meira (Bateria). Mais grave – e soturno – e andamento mais cadenciado – e sóbrio – que os anteriores Veraneio, Carnaval no inferno e, principalmente do Original Olinda style que deu a dimensão de artista que eles carregam até hoje.
Nesse trajeto, a Eddie apresenta um de seus discos mais cosmopolitas até agora. Queira não abre o repertório desafiando os estereótipos tidos pela música pernambucana e assim segue já num ápice na ótima Carnaval de bolso, terceira na sequência de canções do disco. Trummer traduz seus 10 anos de residência em São Paulo em uma canção que redimensiona a festa popular num universo de referências que fala muito mais do Brasil que de Pernambuco, ou mesmo de Olinda. Daí em diante, Morte e vida segue num crescente com o viciante dueto Longe de chegar, com a cantora Karina Buhr até a última Olho você, que fecha uma embalagem de referências ao pop, frevo, surf music e samba.
Com isso, a banda conseguiu chegar em um álbum que parece dialogar com dois públicos distintos. São músicas que, no andamento mais rápido de uma apresentação ao vivo, prometem uma energia mais pujante ao tropicalismo de canções passadas, garantindo diversão ao vivo, ao mesmo tempo que o ouvido mais reservado e atento vai encontrar letras que mostram o que é certamente o momento mais politizado da Eddie. Falam de desapego, de violência e de Deus, em uma montanha-russa que vai da melancolia à euforia, comuns ao processo de amadurecimento de uma vida que se torna menos jovem e mais adulta.
É nessa postura mais política que encontramos a melhor parte do amadurecimento da Eddie. Fábio Trummer consegue falar sobre a desilusão urbana e de um cotidiano mais sofrido sem ser literal, sempre fazendo jogos de palavras, em versos como “quantas pedras bastarão para calejar as flores?” dePedrada certeira, outra parceria com Karina Buhr. O polimento mais cru e com maior diálogo com o rock de Morte e Vida vem na masterização final de Fernando Sanches Takara, do CPM22, que já assinou a produção de discos do Ratos de Porão e é integrante de uma das principais famílias de produtores e músicos de São Paulo, junto com o irmão Maurício Takara.
Valendo-se do inevitável bordão-clichê, a pedrada certeira de Morte e vida está na obra a que faz referência: Mortevida, um mural de colagens, somando diversas referências dos grafiteiros Alberto Lizarazo e Mozart Fernandes. Cada faixa é um objeto ora estranho, ora harmônico em um conjunto que representa o processo e a jornada da Eddie até aqui.
OUTRAS NUANCES MUSICAIS
“A ideia era tentar não se repetir”, explica Trummer, autor de quase todas as músicas. “Coisa bem difícil de se conseguir quando a banda é a mesma”, diz o músico, afirmando que nesse álbum o grupo trava um diálogo maior, de fato, com outras pessoas. Em termos sonoros, Trummer explica: “Tiramos o baixo reggae da frente da canção, o que nos aproximou de uma sonoridade do rock dos anos 1980, para não ficar caracterizado apenas com uma banda ‘original Olinda style’, que escondia outras nuances da nossa música. Queria sair desse estereótipo, que nós mesmos criamos e que estava limitando nossa música”.
Essa fuga não é apenas de antigos, mas de novos rótulos. “Morte e vida é um disco de música popular urbana brasileira”, conta o músico, que prefere não se ancorar em denominações como o “surfrevo” que tem sido usado para falar da música da Eddie. “Nossas canções refletem as diferenças culturais de nosso país. Não temos medo de usar essa miscelânea a nosso favor. Nosso som é uma mistura de classes e de cores”, completa.
Trummer contou ainda que, na atual fase da banda – com uma agenda de shows que nunca esteve tão forte como nos últimos cinco anos –, a experiência ao vivo acabou pautando seu processo criativo. “O palco é parte vital da nossa sobrevivência na música e temos dado atenção especial a essa questão, então este é sem dúvida um de nossos álbuns que têm mais músicas de show”, conta o vocalista, que disse ter feito ainda uma demo ao vivo, para que todos os arranjos fossem definidos juntos, enquanto nos discos anteriores essa era uma etapa definida apenas na hora e de acordo com a gravação.
O viés mais politizado, ele explica, vem da postura da banda que precisa conviver entre limites de política e arte, para poder, por exemplo, se apresentar no Carnaval do Recife e Olinda. “Prefiro não tocar mais em lugar nenhum do que ter que ocultar minha posição política em relação à minha classe artística e ao meio cultural”, conta, lembrando o episódio do Carnaval de 2015, quando a banda foi excluída da programação de Olinda por cobrar publicamente da prefeitura o pagamento do cachê aos artistas da cidade.
Por fim, com Morte e vida, Trummer espera conseguir abrir novos diálogos com artistas com quem a banda não tem ainda uma relação. “Vejo a música como um organismo que podemos vestir com qualquer roupa. Sendo assim, adoraria ver artistas de frevo se descaracterizando para fazer outros gêneros, cantando outros mundos”, provoca, numa expectativa de, no futuro próximo, ter também mais parcerias internacionais em suas canções.
BRUNO NOGUEIRA, jornalista, pós-doutor em Comunicação e professor da UFPE.
Leia também:
“O artista deve lutar contra as armadilhas da dependência”
Lira: o peso da palavra, do declamador ao autor
Alessandra Leão: Mergulho na produção
Zé Manoel: Talento lapidado pelo piano clássico
Graxa: burilando as possibilidades do lo-fi
D Mingus: A sujeira da sonoridade
Zeca Viana: A capacidade de se reinventar
Matheus Mota: Um olhar sobre o homem comum
Johnny Hooker: Porta-voz das vítimas do amor