Reportagem

A prevalência da arte figurativa

No Brasil, trabalhos de artistas das novas gerações têm encontrado na figura uma forma de decolonizar o olhar e discutir questões como o feminicídio, o racismo e a permanência da escravidão

TEXTO Luciana Veras

02 de Maio de 2023

'Salão de Mulheres ou 1º Salão de Artes Latino-americana e Caribeño', Marcela Cantuária, 2022. Óleo, acrílica e spray sobre tela, 200 x 300 cm

'Salão de Mulheres ou 1º Salão de Artes Latino-americana e Caribeño', Marcela Cantuária, 2022. Óleo, acrílica e spray sobre tela, 200 x 300 cm

Imagem Vicente de Mello/Divulgação

[conteúdo aberto à degustação | ed. 269 | maio de 2023]

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Entre 29 de março e 2 de abril, o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, localizado no Parque Ibirapuera, enclave verde no meio da urbanidade de São Paulo, era o epicentro de um circuito que conectava a SP-Arte, a maior feira de artes visuais da América Latina, cuja 19ª edição armara sua engrenagem ali, a galerias e museus espalhados pela cidade. Ao longo de cinco dias, 31 mil visitantes passeariam pela construção geométrica desenhada por Oscar Niemeyer, conhecida como o Pavilhão da Bienal justamente por abrigar, a cada dois anos, a famosa mostra internacional que há mais de meio século é cartão de visitas do Brasil – sem fugir ao nosso apreço para deflagrar e difundir epítetos exagerados, a Bienal Internacional de Arte de São Paulo é, de fato, a maior exposição de arte contemporânea do hemisfério Sul e uma das três mais relevantes do planeta, ao lado da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza.

No dia de abertura da SP-Arte, uma das pessoas mais festejadas nos quase 170 estandes era o crítico e curador de arte Paulo Herkenhoff. Responsável pela curadoria da 23ª e 24ª Bienal de São Paulo (respectivamente, em 1996 e 1998), ex-curador adjunto do Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMa e nome respeitado nos campos da pesquisa e crítica artísticas no país, ele percorria os amplos corredores do pavilhão na condição de ex-diretor do Museu Nacional de Belas Artes – MNBA, onde atualmente trabalha como voluntário na campanha de doações de obras e no debate para atualização da coleção. Ao chegar ao estande da paulistana Luciana Caravello Galeria de Arte Contemporânea (SP), pegou um bloco com folhas adesivas e colou na parede ao lado de Amarrado (2016), de Rafael Prado, o selo de “obra doada ao MNBA”.

“A obra traz um significante verbal, que, para quem conhece o Rio de Janeiro, talvez fosse desnecessário, ao mesmo tempo em que imita a questão do turismo. É de uma complexidade grande, com ambivalência”, descrevia Herkenhoff, mirando a pintura como as figuras retratadas na tela espiam o personagem-título, um homem literalmente atado por cordas como se estivesse em uma performance – ou sendo atacado, talvez – diante dos transeuntes no centro do Rio. Amarrado, com seus 147 x 145 cm, é um exemplo do figurativismo ou figuração, a nomenclatura utilizada para delinear a arte figurativa.

Se digitarmos tais palavras no Google ou no YouTube, os resultados versarão de compêndios acadêmicos a videoaulas para estudantes do Ensino Médio, em explicações mais eruditas e outras bem coloquiais. Na essência, o figurativismo se ancora na representação de seres humanos, animais, objetos e paisagens em formas legíveis e reconhecíveis para aqueles que as encaram. A ênfase na palavra representação, a noção de verossimilhança e o uso dos contornos da natureza rumo a uma certa emulação do real são elementos-chave nesta vereda artística, que tanto pode se traduzir em pinturas rupestres, nos portentosos retratos de autoria de europeus medievais, nas paisagens que simbolizavam o “novo mundo” descoberto nas Américas ou na práxis de artistas contemporâneos brasileiros, a exemplo de Marcela Cantuária, Antônio Obá, Clara Moreira, Wallace Pato, Fefa Lins, Terroristas del Amor, Panmela Castro, Carmézia Emiliano e Rafael Prado, entre outros.

“Minha obra é figurativa porque vou trazer questões da Amazônia e quero lidar com problemas da vida. Com o abstrato, a arte vai muito para o assunto da abstração em si, da pintura em si, das formas geométrica em si, mas quando vai para o figurativo, a seta aponta para fora: na natureza-morta, no retrato, em pinturas de assunto político, surgem outras questões”, comentou Prado, nascido em Porto Velho, capital de Rondônia e radicado no Rio de Janeiro, à Continente. Em Amarrado, ele partiu de um “livro com paisagens brasileiras em inglês” para transpor uma das fotografias: “A parte em inglês é a legenda da foto. Você olha no contexto do Rio e parece que está vendo uma pessoa amarrada, ali no Largo da Carioca. Achei bem ambígua”.

Filho de um nordestino seduzido pela promessa do garimpo na Amazônia e bisneto de uma indígena, o artista apresenta cenas marcadas por ambiguidade e/ou brutalidade nos trabalhos da SP-Arte ou nas telas da individual Órfãos do Eldorado, montada em abril de 2022, na Nós Galeria (SP), com o título emprestado da novela homônima de Milton Hatoum. Às vezes, cria “uma atmosfera úmida, pegajosa”, nas suas próprias palavras; em outras vezes, “materializa sensações” para fugir de clichês atrelados à região amazônica. Para tanto, manipula a tinta a óleo. “É histórico: são mais de 500 anos de pintura com o óleo, que é um pigmento natural. O acrílico é um material mais recente, derivado do plástico, tem coisa de 50 anos só, mas é mais duro: uma vez que você passa, seca logo. Realmente, prefiro usar o óleo porque, quando você pinta, a tinta demora duas semanas para secar, então você retoca, mexe, remexe e a pintura continua respondendo. Deixa tudo mais vivo”, ensina Prado.

Beth da Matta, artista visual e ex-gestora do Museu Aloísio Magalhães de Arte Moderna – Mamam, no Recife, era diretora artística da Nós, quando houve a montagem de Órfãos do Eldorado. Nas telas de Rafael Prado, e no trabalho de outros artistas que ela acompanha, agora já como produtora institucional da Galeria Lume (SP), encontra um ponto de convergência. “Não dá para dizer que a pintura figurativa dá conta de maneira uniforme das especificidades de cada trabalho, mas, para além de questões técnicas, se é óleo ou acrílico, percebo um olhar mais recente que não é colonial. A figura humana aparece nos rumos de Rafael, por exemplo, e também em Elvira Freitas de Lira, em mundos completamente diferentes, porém unidos pela figuração. Ao mesmo tempo, o lugar do periférico, do oprimido, dos artistas indígenas e da arte afro, por exemplo, vem sendo ocupado como possibilidade de existência. Daí vem a figura humana, seja ela a própria figura, ou a figura do outro, no seu entorno, no seu território. É algo como ‘vamos tomar posse disso aqui’, como uma centelha para ocupar espaço”, analisa.

Convidada para cobrir a SP-Arte, a Continente fez da feira uma plataforma para lançar uma pergunta e assim investigar uma onda – tendência, inclinação, qualquer coisa que seja – observada ao longo dos últimos anos, nas páginas dos nossos Portfólios, em vernissages e outros eventos a congregar artistas, público, curadoria e mercado: existe uma prevalência do figurativismo na arte contemporânea do Brasil? Se sim, a que pode ser atribuída? E como reverbera na sociedade?


Sobre a ferida aberta mais um corte (eu não quero morrer
um homem sem cicatrizes), Fefa Lins, 2023. Óleo sobre tela,
230 x 150 cm. Imagem: Fefa Lins/Divulgação

Paulo Herkenhoff foi um dos primeiros a responder. “Acho que hoje existe um peso, não uma prevalência, da figura como a forma mais explícita de discutir a sociedade, os corpos da sociedade e como esses corpos se movimentam e atuam, ao mesmo tempo em que há sobreposições a eles, como regras de dominação”, entende o crítico e curador.

“O século XXI tem necessidade de uma arte que seja simbólica e dê conta de tudo aquilo que vem se descobrindo e discutindo, muitas vezes de maneira muito dolorosa: o feminicídio, o racismo, a permanência da escravidão. Também existe a necessidade de descolonizar o olhar e de dar oportunidades a artistas de todo o Brasil, seja alguém de Rondônia que mora no Rio, seja um jovem que cresceu num subúrbio e não tem dinheiro para frequentar escola de arte. Este é um fundo ético da arte brasileira, ao meu ver. E este é o século de construir pontes. Tem um filósofo de que gosto muito, Richard Rorty, que dizia que a arte não vai mudar o mundo, mas vai mudar a nossa maneira de olhar, e isso já é um começo de mudança de mundo”, acrescenta.

O começo de mudança, para ele, perpassa “uma arte que seja significadora de toda a necessidade de transformação da sociedade”, o que também deságua na sua prospecção de novidades para o Museu Nacional de Belas Artes. “A ideia é criar um acervo que preencha essas lacunas estéticas, temáticas, de agendas e geografia, e incorpore essa pauta que hoje tanto define o Brasil”, resume Herkenhoff, sinalizando o esforço para reconfigurar o MNBA não apenas à luz de inovações técnicas e estéticas, mas também com a arte engajada para discutir, e não refutar, o seu tempo. Ao todo, mais de 100 obras foram doadas ao museu encravado na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, entre livros de artistas, xilogravuras, “uma grande imagem de autoria do Mestre Valentim, de Conceição dos Bugres, e cerâmicas da indígena peruana Julia Isidrez”, para alegria do veterano curador.

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No espaço da Lume, no segundo andar do Pavilhão da Bienal, várias obras capturavam o olhar, porém era impossível debelar o magnetismo de Gerioneida I (como uma papoula), da pernambucana Clara Moreira. Tal desenho em lápis de cor sobre papel de algodão, com 200 x 115 cm, foi citado por Paulo Kassab Jr., fundador e um dos diretores da galeria, como uma síntese dos preceitos que a norteiam. “A Lume vai fazer 12 anos e, desde o começo, trabalhamos muito com fotografia, com a fotografia expandida, e pensamos a curadoria com uma forte ligação com a literatura, com a poesia e com muita figuração, sim. Aliás, dá para ver pelo nosso estande que trabalhamos bastante com o figurativo. Inclusive, mesmo em uma obra mais abstrata, como o trabalho do pintor Paulo Whitaker, ele faz um abstrato através de uma forma que é figurativa. E, nessa obra de Clara, ela traz a mitologia, a história da poesia grega com o mito de Gerião, e a representação do figurativo que nos acompanha desde o começo”, afirmava.

Kassab Jr. não crava “uma resposta exata” sobre a reemergência da figuração, mas arrisca alguns palpites. “Pensando no Brasil e na história da América Latina, vejo que aconteceu um afastamento desse figurativo, que teve um momento muito forte até anos 1960 e 1970, e talvez tenha havido essa negação porque em tudo que se via como arte latino-americana se esperava algo tal qual Frida Kahlo, sempre com muita cor, muita figuração, aquelas figuras históricas. Como se tudo que pudesse ser enxergado como uma arte latino-americana, aliás, pudesse ser definido como uma coisa só. Agora a arte sempre se revisita e acredito que, pela primeira vez, trazemos com mais força os povos originários, dando importância também a outras vozes antes silenciadas e que hoje estão fazendo arte, mas voltando a aparecer, de modo significativo, pintoras importantes do figurativo, como Vânia Mignone. Tenho a impressão de que, durante um tempo, houve uma certa recusa de se mostrar o Brasil figurativo, como se a gente quisesse provar que podia fazer uma arte tal qual os europeus, mas que hoje estamos na linha de compreender e aceitar que isso também pode ser nosso legado”, opina.

Ao término da feira, a boa notícia: Gerioneida I, gestada pela artista no rebote “a uma louca paixão por um poema escrito 600 anos antes de Cristo pelo grego Estesícoro, disparada depois do resultado das eleições de 2022”, como narraria depois à Continente, foi doada pela dupla de colecionadores Camila Magnus e Roberto Miranda de Lima à Pinacoteca de São Paulo.

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Para demarcar sua presença na SP-Arte, a Amparo 60 idealizou o tema 25 anos no passeio entre a abstração e a figuração contemporânea, recorte que celebrava tanto a trajetória da galeria nascida em Olinda como a flutuação contínua entre dois campos de produção e poética artísticas. Designer de formação e mestra em Museologia, a carioca Heloísa Amaral Peixoto repetia a parceria estabelecida com a galerista Lúcia Santos em 2022 para conceituar o estande. “O eixo para comemorar o marco dos 25 anos foi pensar todo o percurso com a alternância de gerações. Quando a Amparo 60 surge no final da década de 1990, muito pela proximidade com Janete Costa como arquiteta, revela e promove José Patrício, Luiz Hermano, Ascânio MMM, ao que demos continuidade com um repertório que tanto atende a questões de abstração geométrica, com Cristiano Lenhardt, e traz o figurativo, com artistas jovens como Clara Moreira, Fefa Lins e Jeff Alan. São correspondências absolutamente naturais e espontâneas”, destaca a curadora independente.


Gerioneida I (como uma papoula), Clara Moreira, 2022. Desenho
em lápis de cor sobre papel de algodão, 200 x 115 cm.
Imagem: Ana Pigosso/Divulgação

A menção a Janete Costa, mãe de Lúcia Santos e referência na arquitetura moderna no Brasil, falecida em 2008, indica sua predileção por uma “curadoria de intersecção com olhar interdisciplinar”, sem encaixotar design, arquitetura ou antropologia. “O Brasil tem uma excelente produção em artes visuais muito em função do protagonismo na arquitetura. Essa questão espacial é muito forte, a utopia da geometria na América Latina é muito forte, mas ao mesmo tempo temos uma forte representação indígena, uma herança africana. Nós somos uma banda larga”, enuncia.

“Por isso, nunca, jamais, absolutamente será a figuração versus o abstrato. É uma coisa alimentando a outra. Atrás da figuração, há uma malha geométrica que existe e não é excludente. A questão construtiva tem um vocabulário muito rico no Brasil. O próprio Lucio Costa se inspirou na organização das missões jesuítas para pensar o eixo fundamental de Brasília. Por outro lado, nunca se havia visto nada representando o ‘novo mundo’ das Américas antes de Frans Post e Albert Eckhout virem com a missão de Maurício de Nassau a Pernambuco. A iconografia do novo mundo nasceu ali”, acrescenta.

O que isso tem a ver com a figuração contemporânea? “A figuração nunca saiu, nem vai sair, de nós”, crê Heloísa. Como “tudo veio muito forte no Brasil” – o Modernismo, o abstracionismo geométrico, o abstracionismo lírico, a art déco e a art nouveau – e como há a cultura popular de berço e uma paisagem que se impõe (“temos um território muito grande, a vastidão do mar”), nada se oblitera.

“Precisamos de mais gente para dar conta de toda essa visualidade, para alargar o conceito de banda larga. É muito pertinente, nesse sentido, a questão da figuração contemporânea, com artistas que, dentro de sua pesquisa, partem da centralidade da figura para propor reflexões. Jovens artistas contemporâneos como Clara, Fefa e Jeff resgatam uma tradição dentro da história das artes visuais no mundo e no Brasil que é a pesquisa sobre o retrato. Identifiquei que isso vem aparecendo em Pernambuco – uma arte centralizada na figura, na representação por vezes autorreferencial, na questão do corpo, trazendo uma reflexão a partir de si, sem viagem de ego ou movimento meramente estético, e com muita força”, complementa.

Havia dois retratos de Fefa Lins expostos na Amparo 60 da SP-Arte. Ainda na primeira noite, o impactante Sobre a ferida aberta mais um corte (eu não quero morrer um homem sem cicatrizes), óleo sobre tela de 230 x 150 cm pintado em 2023, trazia a etiqueta de alerta: obra doada por Cleusa Garfinkel para a Pinacoteca de São Paulo.

Em 2019, Dance with me, de Élle de Bernardini, se tornou a primeira obra de uma artista trans a ser incorporada àquele acervo, após ser mostrada no octógono dentro da exposição Somos muit+s: experimentos sobre coletividade. Faz pouco tempo, portanto, que se deu a ruptura na cisnormatividade vigente na coleção da secular instituição. O quadro de Fefa, no qual o artista se enquadra como um duplo, duas cópias de si a escarafunchar o novo corpo pós-cirurgia, era um dos hits incontornáveis da feira: pausa obrigatória para selfies ou ponto de encontros e/ou gravação de entrevistas, chamava a atenção pela magnitude e também por contrastar, propositalmente, com o outro autorretrato, Dia nacional da tranquilidade trans (2023), óleo sobre tela de 120 x 90 cm.

Nessa obra, Fefa se pinta deitado numa boia, de óculos escuros e seios à mostra, antes da mastectomia que lhe caracteriza em Sobre a ferida aberta mais um corte. “Escolhi essas duas telas por representarem cada uma das minhas fases”, revelou o artista. Há, pois, um orgulho que não se mascara nessa representação de si e a certeza de que corpos trans não somente importam, como devem ser vistos, admirados, reproduzidos. Logo depois de ter falado com a revista, exultou ao descobrir que Dia nacional da tranquilidade trans também havia sido vendido. Na mesma hora, uma outra colecionadora adquiriu Projeto coreográfico para travessia noturna (2022), obra em lápis de cor sobre papel de 100 x 150 cm de Clara Moreira, também representada pela galeria pernambucana.

Um dia após o fim da SP-Arte, Fefa Lins anunciou, em seu perfil no Instagram, uma colaboração sua e de Clara na linha “vem aí”: “a relação entre o desenho e a pintura ”. Era o chamado para uma exposição em duo, a ser aberta em julho na Amparo 60. A curadoria será de Clarissa Diniz, que, mesmo em trânsito, ofereceu à Continente uma breve antecipação: “A vontade de produzir um diálogo aproximado entre Fefa e Clara partiu dos próprios artistas. Reconhecem, entre si, um compartilhado interesse entre o ‘gênero do retrato’ (enquanto um tema central às tradições eurocêntricas da arte) e o desafio de ‘retratar o gênero’, no sentido de inventar modos de representar, figurar, expressar, simbolizar, significar as identidades de gênero e suas muitas implicações. Nos últimos anos, tive a oportunidade de dialogar de uma forma mais próxima com Clara e Fefa, o que então os estimulou a me convidar para habitar esse diálogo, a colaborar com ele”.

Embora se trate de um trio efetivamente circunscrito à pernambucanidade, é, também, composto por três antenas que captam a essência para além dos rótulos, desprezando convenções e rasas tentativas de catalogações. “Queria eliminar este binômio, esta dicotomia entre figuração e abstrato, porque acho que, na prática artística, não se sente tanto essa diferença. Para mim, quando se trata de um pensamento artístico e poético essa diferença não se configura. Quando pude experimentar, em simultaneidade, o figurativo e o abstrato, não senti essa diferença crucial como procedimento poético nem no corpo, na linguagem ou na gramática da figura. Para a práxis do artista e para a fruição de quem observa e sente, essa dicotomia desinteressa”, afirma Clara Moreira.

Contudo, o que ela defende, na verdade, é o borrar das fronteiras, rechaçando as ideias do purismo da linguagem da arte abstrata e do “primitivismo”, por vezes rubricado como naïf, da figuração. “Torço pela superação da dicotomia, porque gosto de variar de formas de representação sem que isso contabilize que são duas expressões. Um lugar como o Recife, capital de Pernambuco, tem uma arte popular que não é simplesmente figurativa, mas também bastante avançada nos padrões das tramas, nas escamas geométricas dos peixes, nas padronagens indígenas, nos padrões que ornam as golas de maracatu. Não descarto que existam outras questões, de mercado inclusive, mas creio que a mistura entre figurativo e abstrato é muito saborosa e é nela que quero seguir, às vezes até margeando a figuração, indo ao limite de perder o entendimento e a legibilidade de tudo que é codificado e gramaticalmente estabelecido”, situa.

Em Promessa da casa (II) (lápis de cor sobre papel de algodão, 100 x 150 cm, de 2022), ela brinca com o “gesto do autorretrato”, que naturalmente gera uma intimidade, mas perturba quem lhe vê ao descortinar seu corpo nu com um tijolo sobre a cabeça. “O retrato era a melhor arte, mas, quando retirada do contexto ocidental, podia ser visto e sentido como selvagem, primitivo, exótico. Fiz esse desenho pensando no lugar da escassez na minha condição de pessoa trabalhadora. Se meu corpo parar, minha vida acaba: artista, sou um corpo trabalhando. Desde pequena, quando meu pai me ensinou técnicas de desenho, que cultivo isso, mas tentei fugir. Não achava que era pra mim e fiz Arquitetura para fugir da arte. No meu bairro, todo mundo era artista, mas artista não era profissão”, rememora Clara.

Clarissa Diniz também prefere estar mais alerta ao que escapa às rotulações. “Essa contraposição binária entre figuração e abstração me parece um falso problema, uma dicotomia historicamente elaborada no século XX para circunscrever e delimitar a ideia de abstração como um projeto político, estético e vinculado à ideia de autonomia da arte. Quando artistas de vários lugares do mundo imaginam que a arte pode ter autonomia e investem nessa ficção, tomam como contraposição uma arte vinculada a uma ideia de mundo, cotidiano, de vida comum, enfim, que vai atribuir a vinculação à representação. De modo geral, esses artistas foram tachados de abstratos, mas nem todos exatamente tomam a categoria de abstração para si, muito embora quiseram negar a noção de que a arte está vinculada a algo que não ela própria, ligada a algo fora dela, a um referente, para defender a ideia de que a arte só interessa a si mesma e tinha uma espécie de soberania linguística, de interesses, de compromissos, estratégias, formas e por aí vai”, aprofunda a pesquisadora e professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.


Amarrado, Rafael Prado, 2016. Óleo sobre tela, 147 x 145 cm. Imagem: Rafael Prado/Divulgação

Ela menciona a exposição Do figurativismo ao abstracionismo, que em 1949 inaugurou o Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM-SP, como um satélite a transmitir as diretrizes conjuradas pelos Estados Unidos para enaltecer a arte que fugia da representação (em 1936, o MoMa havia montado a exposição Cubism and abstract art). “Essa mostra inaugura a ideia que temos do MoMa, que vai bancar esse posto de grande apoiador de iniciativas nas Américas e reproduzir, por meio de uma aliança através da abstração, uma aliança que estava se dando no plano social e político. No caso do MAM, o título nos leva a pensar como se a figuração fosse algo menor, um ponto de partida para chegar à abstração, o que não é”, sublinha.

Repensar o tradicional retrato, embaralhar questões de gênero e sua representação e explorar as convergências entre desenho e pintura são mais estimulantes do que ecoar platitudes. Nesse sentido, Pernambuco foi e é vanguarda. “É o lugar onde isso vem aparecendo com muito frescor”, diz Heloísa Amaral Peixoto. “Um salve aí pra a figuração pernambucana contemporânea!! ”, arremata, via Instagram, Fefa Lins.

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A sede da Mendes Wood DM fica numa construção que se assemelha a um hangar, com pé-direito altíssimo e sóbria decoração, numa rua na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. A galeria aproveitou a efervescência do período e o perímetro ampliado da SP-Arte para agendar uma visitação aberta a Signo, nova individual de Antonio Obá, guiada pelo próprio artista. Foi ele, com sua voz tranquila e olhar atencioso, que recebeu os convidados, de jornalistas a colecionadores estrangeiros, de admiradores a outros artistas. Em exibição até o dia 13 de maio está um conjunto de 13 desenhos em grafite e nanquim dourado, concebidos e executados em uma escala bem mais intimista no cotejo a exposições anteriores do artista, como Sentinela (2019).

Para além do suporte e da dimensão, há outras diferenças entre obras como Esfinge e Genealogia – Breve comentário para o livro dos milagres, ambas com 40 cm x 90 cm, e Oferenda (32 x 24 cm), e telas como Yauaretê (85 x 145 cm, 2019), e Banhistas 3 – Espreita (189,5 x 266,5 cm, 2020) e Dança dos meninos (190 cm x 209 cm, 2021): a ausência da pluralidade cromática. Quem se acostumou, e se afeiçoou, ao vívido contraste entre tons tão bem-manifestado em sua pintura, realçada no texto de Pollyanna Quintella para o Portfólio da Continente #256, edição de abril/22, entretanto, não há de estranhar: mesmo com menos cor, Obá permanece certeiro.

E atento. “É latente essa relação muito demarcada pelo figurativismo dentro do campo da pintura, sobretudo agora. Mesmo que em um momento anterior, para mim, não era exatamente tanto figurativo, e, sim, outra natureza de trabalho, existiam outros artistas que estavam ali produzindo, mantendo as pesquisas. Acho interessante falar do meu local: sempre teve essa discussão dentro das escolas de arte, das faculdades, dos agentes que estavam ali à frente. Mas, ao mesmo tempo, eu estava fazendo minha pesquisa no meu tempo, com minhas inclinações e meus incômodos, e tudo se relacionava muito com a ideia do corpo. Para além da categoria figurativa, do figurativismo, vem antes o meu interesse pelo corpo. Tanto que eu não produzo só pinturas. A linha de investigação tem o desenho que veio antes mesmo da pintura. É uma raiz forte, que sempre foi figurativa e sempre me interessou”, observa o pintor, que confeccionou todos os desejos de Signo, por exemplo, em menos de dois meses, com urgência, mas sem pressa. “É uma grande pobreza imaginar que uma linguagem tão mental como o desenho sirva somente como mola propulsora para a pintura.”

Esfinge, Antonio Obá, 2023. Grafite e nanquim dourado, 40 x 90 cm. Imagem:  Bruno Leão/Divulgação

Obá considera que a propensão ao figurativismo gera contradições: “Vira um ethos, mas também, às vezes, vira um incômodo. Porque é engraçado: é aquela coisa das falas que acabam se tornando um lugar comum. O estilo é a figuração, mas, de repente, nisso há a representação figurativa negra, o corpo negro. E o porquê do corpo negro. Fico pensando em quantos séculos nós temos de história da arte. Quantos séculos de, por exemplo, artistas, pintores, escultores brancos fazendo figuração com corpos brancos. E essa pergunta também nunca foi feita: por que corpos brancos? E por que, então, é tão estranho ver um corpo negro representado? Isso é um problema essencial, porque existe o risco de manter uma perspectiva do exótico, do pitoresco. ‘Ah, você só faz corpos negros’. Meu trabalho é quase autobiográfico e eu tenho esse corpo, não é? Posso pintar amanhã um corpo branco? Posso, tranquilamente. Meu pai é branco, sabe?”.

Nascido em Ceilândia, no Distrito Federal, onde durante anos atuou como professor de artes e onde ainda reside, ele crê na arte como “um portal” para se discutir questões estruturais da sociedade, como o racismo. “Lembro uma sensação que tive quando dava aulas no Ensino Médio, em 2015: achava muito bonito ver os adolescentes assumindo a estética afro, com o cabelo crespo, black power, a musicalidade sobretudo, como acolhiam isso como uma verdade, criando uma identidade a partir do viés estético, da vestimenta, do cabelo. É muita sorte adquirir essa ideia de identidade através do símbolo, mas temos que entender que não é só isso. Até porque, para além do apelo, tudo é imagem e as imagens são produzidas e consumidas de uma maneira extremamente rápida, ao mesmo tempo sem esse aprofundamento. Nada dura mais, passou de 15 segundos já é muito tempo. É legal, sim, é importante a imagem enquanto essa porta de acesso para aprofundamentos, mas é preciso ir além, sem delegar à arte o papel transformador de tudo. É apenas uma partezinha, por vezes muito frágil, dentro de um todo que é extremamente mais complexo”, vaticina.

Poucos dias depois, abrindo uma brecha na agenda atribulada e na diferença de fuso horário, foi a vez de Marcela Cantuária discorrer sobre a nova figuração. Em Paris para a uma residência na L’Air Arts Association, em cartaz com The South American Dream no Pérez Art Museum, em Miami, e se preparando para passar junho em outra residência, na Bordallo Pinheiro, em Portugal, a pintora carioca brincava: “Comecei a pintar figurativo desde que eu comecei a pintar, então acho que não sei fazer outra coisa”, disse, aos risos e com modéstia. Para além das pinturas em grandes dimensões, seus traços firmes, fortes e coloridos se espraiam em bordados, biombos e oratórios – um deles, que integrava a exposição Propostas de reencantamento, aberta em outubro de 2022 no Sesc Pompeia, estava no estande da galeria A Gentil Carioca na SP-Arte – e em projetos como o conceito visual de Portas, álbum mais recente da cantora Marisa Monte, para o qual fez uma série comissionada.

“Pinto retratos que o patriarcado e o capitalismo se esforçam para apagar. São imagens de mulheres guerrilheiras, mulheres desaparecidas, mulheres que foram subvalorizadas. Através da arte figurativa, consigo estampar esse retrato. Pra mim, é fundamental, porque eu sinto que estou mexendo não só com a história da pintura, mas com a história das mulheres também, ao juntar esses dois assuntos que me são muito caros”, sentencia. Uma individual sua de 2019 se chamava, justamente, Figurar o impossível. “E acho que o lance da cor explodindo nas telas vai muito pelo meu desejo de afirmar o assunto. As pessoas se atraem, a princípio, por conta das cores, que também corre nas minhas veias. Minhas pinturas sempre foram quentes, com muito contraste, desde o início da faculdade.”

Em Salão de Mulheres ou 1º Salão de Artes Latino Americana e Caribeño (óleo, acrílica e spray sobre tela, 200 x 300 cm, 2022), ela homenageia mais de 30 artistas: “me apropriei de uma pintura antiga de salão e substitui por artistas que admiro, de todas as idades, entre vivas e mortas”; em Voltarei e serei milhões (óleo e acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 2018), põe Marielle Franco, assassinada há cinco anos, sentada com uma cadeira de vime e com uma pantera negra aos seus pés – Marcela doou esta obra ao Museu da Maré, comunidade onde Marielle nasceu, no Rio. “Na minha perspectiva, acho que essa produção muito forte da figuração brasileira está dando conta de um enorme vazio que temos na história da pintura e dando voz a grupos como as mulheres, a população LGBT, os povos indígenas. Não acho que seja só uma demanda de mercado. Entendo que é o momento de preencher um espaço”, aponta à Continente.


Wakazá – A árvore da vida, Carmézia Emiliano, 2022. Óleo sobre
tela, 70 x 60 cm. Imagem: Rodrigo Guedes da Silva/Divulgação

La larga noche de los 500 años (óleo, acrílica e spray sobre tela, 270 x 500 cm, 2019) representou a artista na 8ª Bienal da Pintura do museu Dhondt-Dhaenens, na Bélgica, em 2022. O goiano Dalton Paula esteve lá com Retrato silenciado (óleo sobre livros, 425 x 28,5 cm, 2014). Hoje, esses dois expoentes da figuração contemporânea brasileira também estão em Acervo em transformação, a exposição de longa duração que ocupa o segundo andar do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP. “A figura humana é protagonista neste museu. Pietro Maria Bardi, que foi diretor por muito tempo, tinha a concepção de que o figurativismo era uma arte mais democrática. Penso que arte figurativa, além de ser mais acessível, é uma maneira de conectar períodos muito diferentes. Na arte contemporânea, a figura humana está extremamente presente, por exemplo, na pintura brasileira contemporânea, nessa pintura racializada, de pessoas negras e indígenas que estão querendo revisitar as narrativas. Acho que aqui nos cavaletes, sobretudo, temos mais aflorada essa discussão sobre as questões da representação humana, da figura humana, dos sentimentos, agora somadas às questões de sub-representação e de representatividade. É muito bonito ver uma obra do Dalton Paula na primeira fileira se conectando com Holbein, com Rembrandt, com Renoir, homens brancos e europeus que pintaram há tantos séculos atrás”, comenta Guilherme Giufrida, curador assistente do Masp.

No outro piso do museu que é sinônimo da Avenida Paulista, Carmézia Emiliano: A árvore da vida reúne 35 trabalhos recentes desta artista da etnia macuxi. Nascida em Roraima, onde até hoje vive e trabalha, Carmézia é expoente ímpar da figuração indígena, “uma artista tecelã, que fia com seus pincéis e tintas a história das mulheres indígenas da sua região”, nas palavras de Denilson Baniwa, e alguém “no topo mais amplo do universo da nossa pan-existência”, segundo Jaider Esbell (morto precocemente em 2021), outros dois proeminentes artistas advindos dos povos originários. “Eu pinto a cultura indígena para eu não me esquecer” é uma frase da artista destacada em seu portfólio enviado pela Central Galeria (SP), que a representa.

Wakazá – A árvore da vida e eu (ambas em óleo sobre tela, 70 x 60 cm, 2022) são amostras belas e pujantes do seu labor em evidenciar o lugar de onde vem e seu protagonismo. “Se é certo que o autorretrato se move às margens da arte ocidental, ele é hoje o centro do debate sobre quem exerce a possibilidade de se figurar em oposição a ser por outro figurado”, anota a curadora Amanda Carneiro no catálogo, em argumento certeiro. “Estou retratando só as mulheres, que são mulheres poderosas. Então, eu pinto para não me esquecer disso”, assina Carmézia.

E para que ninguém se esqueça. Afinal, se os ventos de renovação estão a soprar no país, na arte não haveria de ser diferente.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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