Marielle Franco está viva. Está no seu segundo mandato como governadora do Rio de Janeiro. A criminalização das drogas acabou. O Brasil diminuiu a taxa de mortalidade de pessoas negras e de periferia. As notícias referentes ao Complexo da Maré, lugar onde nasceu e cresceu Marielle, não mais carregam a outrora tão recorrente tríade estigmatizante: operação policial, morte e tráfico. Hoje, os principais acontecimentos divulgados sobre o bairro estão ligados às ações culturais e educativas do Museu da Maré, que serve de exemplo para todo o país.
Nada descrito acima é realidade, mas poderia ser. É o que propõe a artista carioca Marcela Cantuária, quando, na pintura da série Mátria livre, a ex-vereadora nos lança um olhar ao mesmo tempo sereno e imponente, do tipo que tem sido raro entre os líderes atuais, quase sempre tão ávidos por provar seu lugar de poder. Sentada no trono que é tanto uma referência ao candomblé quanto à foto icônica do revolucionário dos Panteras Negras, Huey P. Newton, Marielle emana autoridade, mas não hierarquia. Deitada entre seus pés, uma pantera negra lhe faz companhia. Com sua mão direita, ela segura a cabeça do atual governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que, em pleno ato de campanha eleitoral, comemorava a quebra de uma placa com o nome da vereadora junto aos seus aliados. No peito, ela tem estampada a favela da Maré.
Acima dessa cena, na mesma pintura, lê-se a frase que a artista viu na entrada do Estádio Nacional do Chile, local que é também museu de resgate à memória das pessoas mortas e torturadas no país durante a ditadura pinochetista: “un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. Do espanhol, “um povo sem memória é um povo sem futuro”, frase que parece reter a questão central de seu trabalho.
Voltarei e serei milhões (2019), série Mátria livre. Óleo sobre tela,
200 x 150 cm. Imagem: Vicente de Mello/Reprodução
A memória, esse sujeito principal e ativo da obra de Marcela, está em constante construção e reconstrução. Para reivindicar suas verdades, há sempre quem recorra às imagens como recurso de legitimação. Toda imagem, no entanto, é produto de escolhas, e se algo foi escolhido para estar no enquadramento, para ser uma fração totalizante de realidade – o fragmento que importa –, existe alguma coisa que se optou por deixar de fora do quadro, que se exclui e se apaga, e é nesses processos de escolhas que a narrativa hegemônica é moldada.
A imagem do “descobrimento” do Brasil são pinturas de caravelas e naus enormes estampadas com a Cruz da Ordem de Cristo de Portugal chegando à Bahia, enquanto nossos índios formam uma aglomeração agitada e atônita (mostrada, quase sempre, com seus sexos devidamente ocultados por pequenos trapos) com a chegada da caravana portuguesa. Às vezes, a cena contém apenas as naus e caravelas que, ferozes como os homens que as ocupam, desbravam o mar atlântico. Já em outro grande evento, que foi a proclamação da nossa República, homens brancos montados em seus cavalos, triunfantes, empunham espadas ou chapéus para o alto.
Em sua pintura, Marcela Cantuária escolhe deixar de fora esses homens fortes que demonstram toda sua imponência e domínio. Prefere substituí-los pelas referências e alegorias que lhe são caras, criando a própria narrativa de memória, que tem em seu epicentro mulheres, guerrilheiras e guerrilheiros, índias e índios, operárias, latino-americanos e figuras da vida pública. Na tela, a artista conjura esses símbolos para lhes dar novos significados, para contar a história que estava fora de quadro. Condensando imagens vivas de Marielles, Nises da Silveira, Marias Bonitas e tantas outras, ela vai compondo outras realidades imagináveis, possíveis. Parte de outro lugar que não o da violência, mas também sem negar esse espectro que quase sempre permeia as narrativas sobre as falsamente chamadas “minorias”, para criar novas imagens-possibilidades.
“A pintura é uma forma que eu tenho de reajustar o mundo através das imagens, me apropriando de coisas que estão nele, mas que nunca tiveram um lugar ou que nunca foram contempladas de fato”, diz a artista de 29 anos em entrevista à Continente. “Se a gente parar pra pensar, as grandes lutas, as grandes revoluções, precisam ser imaginadas primeiro. Eu acho que a função da pintura, da arte, da imagem, está na pré-figuração de uma sociedade”, reflete a artista, que é ativista do grupo Brigadas Populares, organização política brasileira e socialista.
Que se possa sonhar (2020). Óleo e acrílica sobre tela, 150 x 330 cm. Imagem: Vicente de Mello/Reprodução
A “mátria livre”, que dá nome à série que contém o retrato de Marielle Franco, é uma expressão utilizada também pelas Brigadas Populares, como explica a organização em seu site oficial: “É uma referência à saudação brigadista ‘pátria livre’, que usamos há um bom tempo e ilustra o nacionalismo revolucionário das BPs. Como brigadistas, adotamos o termo mátria porque acreditamos que a libertação do nosso país só vai acontecer junto à luta das mulheres, mas seu uso não é algo novo. Por toda América Latina, movimentos feministas reivindicam a expressão”.
Na “bio” da artista em sua página no Instagram, lê-se a breve descrição: “americana do sul”. A identificação sul-americana (e latino-americana) é um dos territórios que marcam seu trabalho. “Essa identidade veio quando eu comecei a me encantar pelas lutas políticas. Comecei a trabalhar com ocupação quando era bem jovem, aos 16 anos. Trabalhava em ONG entre os 18 e 19 anos, dando aula de arte, mas depois acabei me afastando um pouco disso. Voltei há uns dois anos, agora fazendo parte das Brigadas Populares”, conta.
Comandante (2017), série Castelos no ar. Óleo e acrilica sobre tela,
35 x 25 cm. Imagem: Marcela Cantuária/Reprodução
Nascida e criada na capital do Rio de Janeiro, graduou-se na única faculdade de pintura do país, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), localizada na Ilha do Fundão, zona norte da cidade. “Tive muitos atritos durante a faculdade por causa de uma questão com a paleta de cores, porque alguns professores olhavam pra isso meio torto, porque não obedecia ao ensinamento clássico da pintura.
Rolou um estranhamento dos professores mais conservadores, porque diferia dessa paleta clássica. Tenho paixão por todas as cores e lanço mão delas. Acho que é uma forma que utilizo tanto para encontrar a técnica, quanto para encontrar o conceito da obra. Acho que as cores mantêm essa chama da luta acesa”, reflete a artista sobre suas pinturas.
Para construir imagens carregadas de tantas referências e elementos, ela utiliza recursos digitais como base de seu processo de criação, que se dá a partir de pesquisa de imagens históricas, realizando a montagem com interferências múltiplas em programas de edição de imagens. Posteriormente, essas montagens são projetadas numa tela, e, então, pintadas.
Mamá Dolores y Mamá Tránsito/ Filhas do vulcão (2019), série Mátria livre. Óleo, acrílica, spray e encáustica sobre tela, 150 x 200 cm. Imagem: Vicente de Mello/Reprodução
Um elemento que encontramos em sua obra são os glitches – “defeitos” que surgem em imagens digitais, quando há alguma alteração irregular em pelo menos um dos milhões de caracteres que compõem seus códigos –, que escancaram um certo “ruído” na memória coletiva.
“Quando eu trabalho essa questão do glitch em imagens que falam de memória, é muito sobre essa questão da contranarrativa, sobre como é que essa história foi contada na pintura ao longo dos anos, o que é que a gente aprende no colégio, sobre as guerras e tal, sobre o socialismo… então, eu acho que o glitch é a forma como a gente aprendeu as coisas, foi uma lente dos estadunidenses, dos imperialistas”, explica. A artista inventa, a partir desses ruídos, seus próprios códigos e imaginários.
Se é preciso “reajustar o mundo através das imagens”, existe uma outra força nesse jogo dialético, que sente a necessidade recorrente de reajustar as imagens que já estão no mundo, um tipo de gesto similar ao que fez a cineasta Petra Costa, em seu documentário Democracia em vertigem, quando escolhe retirar as armas das mãos de dois dirigentes mortos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) numa foto histórica. Segundo evidências da Comissão da Verdade, a própria polícia teria interferido de forma bastante direta na criação dessa imagem-memória, plantando armas nas mãos dos dois comunistas como justificativa para assassiná-los brutalmente.
Roda viva (2018), série Futuro do pretérito. Acrílica sobre tela, 30 x 40 cm. Imagem: Marcela Cantuária/Reprodução
Marcela também faz releitura de imagens-memórias em sua série Futuro do pretérito, em que resgata imagens de protestos, faixas, cartazes com fotos de pessoas desaparecidas na ditadura militar. Quando, na pintura Roda viva, interfere na pichação em que se lê “Ontem o Vietnam, hoje a República Dominicana. Quem será a próxima vítima dos americanos sanguinários?”, passando um traço vermelho sobre República Dominicana e substituindo por Síria, ela evoca o presente, faz o “tempo rodar num instante”, e coloca em evidência o quanto é preciso lembrar o passado, especialmente no país onde, hoje, pede-se a volta do AI-5. Como escreve o filósofo e ativista Noam Chomsky, em seu livro Quem manda no mundo?: “A amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade moral e intelectual, mas também porque prepara o terreno e estabelece as bases para crimes que ainda estão por vir”.
O cineasta cambojano Rithy Panh nomeou seu filme, lançado em 2014 e que trata sobre a sangrenta ditadura liderada por Pol Pot durante os anos 1975 e 1979, de A imagem que falta. Nele, o diretor utiliza recursos de animação para poder contar o genocídio que ocorreu no Camboja – são poucas as fotografias que mostram esse momento histórico. No Brasil, país onde existem poucas iniciativas que deixam acesa a memória daqueles que sofreram e lutaram durante o regime militar, e onde ainda existem ruas e avenidas com nomes de ditadores, de história ruidosa, forjada pela narrativa hegemônica, também nos faltam imagens. Às vezes, somente os artistas são capazes de nos fazer olhar para essas feridas abertas, mas também ampliar nossa imaginação, reconfigurando a política, os afetos, o passado, a memória e o presente, abrindo passagem para outras possibilidades de futuro. “Em tempos de crise, é preciso estar com os artistas”, já dizia Mário Pedrosa.
SOFIA LUCCHESI, jornalista com formação pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), fotógrafa e art dealer.