Curtas

Ato-desato

Em sua primeira exposição individual de inéditos, Clara Moreira nos convida ao diálogo através de 18 desenhos à mostra na galeria Amparo 60

TEXTO Erika Muniz

23 de Junho de 2021

Obra do políptico 'Fala comigo', composto por mais 11 desenhos

Obra do políptico 'Fala comigo', composto por mais 11 desenhos

Imagem Divulgação

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As possibilidades para este texto são diversas. Mas, após visitar a exposição Ato-desato, de Clara Moreira, na galeria Amparo 60, no Recife, as escolhas começam a se delinear. Para explicitar algumas, poderíamos contar sobre a maneira com que os trabalhos da pernambucana equilibram-se entre uma espécie de força e delicadeza; sobre o merecido destaque que a artista vem tendo no cenário brasileiro; ou, ainda, sobre o que compartilham os 18 desenhos – incluindo um autorretrato em tamanho natural –, que tecem esta sua primeira mostra individual de inéditos.

Dentre as várias sensações despertadas, talvez seja mesmo um “desejo de comunicação” – para utilizar as palavras da própria artista – o que sobressalta aos que se encontram diante de suas criações. Os desenhos escritos por Clara Moreira parecem nos convidar ao diálogo, como quem, antes de mais nada, “permite se afetar pela sensibilidade do outro”. Isso permanece mesmo quando o encontro com as obras é mediado por uma tela de smartphone ou computador.

Nestes tempos em que a virtualidade impõe-se cada vez mais às trocas comunicativas e até às relações, a natureza das composições de Clara – que utiliza majoritariamente materiais como o lápis de cor e o grafite – nos convoca a refletir sobre as ausências e as vontades de presença que o atual momento constantemente faz aflorar, além de incorporar os desvios que o próprio ato de desenhar comporta.




Respiro minhas lágrimas, 2021. Lápis de cor sobre papel 30 x 30 cm
Ouço minhas lágrimas, 2021. Lápis de cor sobre papel 30 x 30 cm
Imagens: Divulgação 

“Quero conversar através dos desenhos. (...) Muito do meu trabalho é aquilo que acontece quando alguém, que não sou eu, olha, interpreta, sente e toma para si, recriando aquela imagem na sua própria percepção”, declara a artista, no vídeo disponível no Instagram da galeria. Assim, a vivência de cada um que esteja diante de um trabalho seu produz e agrega às obras sentidos diversos. “Dou algumas pistas, escondo alguns segredos, faço algumas elaborações, mas acho que meu grande desejo é que as pessoas se coloquem em movimento de diálogo com a exposição”, pontua Clara Moreira, que, em 2020, foi apontada como um dos destaques da SP-Arte.

Ato-desato ocupa a antessala da Amparo 60. A montagem consegue criar um fluxo para a apresentação das 18 obras que compõem a mostra. No processo de seleção junto à curadora Sofia Lucchesi, ao realizar o exercício de aproximar seus trabalhos, Clara percebeu que, naquele momento, sua pesquisa propunha algo em torno de “uma gramática poética” que viabilizasse essas conversas com o público através dos desenhos.

O recorte escolhido para a mostra é o do tempo, já que se tratam de suas criações mais recentes, produzidas durante a pandemia. Possivelmente, por conta disso, a gravidade e o peso do atual período se apresentam em alguns momentos. Essas sensações que remetem ao contexto em que vivemos, no entanto, aparecem a partir de metáforas, que acabam revelando a habilidade de Clara em construir diversas camadas de sentidos em seus desenhos.

Próximo à entrada, Autorretrato desenhando naturalmente convoca os visitantes. A partir dela, posta mais ao centro da antessala da Amparo, é que seguimos em direção aos outros trabalhos trazidos na mostra. Os já familiarizados com as incríveis pássaras da pernambucana – exibidas, inclusive, na exposição Antes do cio dos gatos, compartilhada na mesma galeria com as artistas Juliana Lapa e Tereza Costa Rêgo, em 2020 –, as encontrarão, desta vez, em Muitas. Na obra, várias delas estão reunidas, rubras e coreografando em diagonal, como se marchassem. Seus olhos atentos e também a cor vermelha que lateja do papel nos provocam: “É preciso estar atenta e forte”.


Muitas, 2021. Lápis de cor sobre papel 75 x 105 cm. Imagem: Divulgação

Outro momento das pássaras é no políptico Fala comigo, composto por 12 desenhos. Tanto nele quanto em Ato-desato – díptico que intitula a exposição – existe a presença de outro elemento que sutura a exposição e parece ser motivo constante nas recentes criações de Clara: as fitas de cetim.

A dedicação física, técnica e, ao mesmo tempo, a abertura aos desvios e a delicadeza que as obras da artista evidenciam nos capturam quase que imediatamente. Sua capacidade de transformar, com sensibilidade, sentimentos que partilhamos, mas, por vezes, não conseguimos exteriorizar por meio das palavras é o que mais nos intriga. “A fita de cetim é um material muito oportuno porque, a partir da nossa manipulação, ela surge como tensão ou como suavidade, como força ou como leveza extrema. É um elemento usado também para fazer promessas, para se enfeitar, mas ainda para suspender, prender e tensionar. Esse material trabalhado dentro do desenho se torna uma ferramenta de comunicação. É como se pudesse manipulá-la”, revela Clara em entrevista à Continente.

“Existe uma distância entre o ato e o desato, que talvez seja o que estou querendo falar. Não bastava ser o atado; não bastava ser só o desatado. Tinha que ter um par de relações para poder encontrar no meio uma coisa que estava querendo partilhar”, declara. Sua habilidade em trabalhar diversas camadas semânticas consegue, por exemplo, transformar uma expressão como “nó no peito”, bastante usada em nossa oralidade, em linguagem visual. Ora as fitas aparecem enlaçadas, ora livremente soltas, mas sempre em movimento. Às vezes é preciso dobrar, esticar e torcer palavras; pintar de gestos o que queremos dizer, para que seja possível haver comunicação. Em um mundo cujo diálogo parece se tornar cada vez mais escasso e difícil, os desenhos de Clara Moreira, em Ato-desato, nos possibilitam nos confrontar com as subjetividades do outro.

 
Obras de Fala comigo (políptico de 12 desenhos), 2021. Lápis de cor sobre papel 31 x 36 cm. Imagens: Divulgação

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A exposição faz parte do Mirada, uma parceria entre a galeria liderada por Lúcia Santos e a SpotArt, que conta com um ambiente expositivo e número de visitantes reduzidos, respeitando os protocolos de saúde e trazendo conteúdos online (vídeo e fotos) para uma experiência aos que não visitarem presencialmente a mostra. Paulo Bruscky, Marcelo Silveira e Fefa Lins são outros nomes que participaram anteriormente do projeto, que deve permanecer ao longo de 2021.

ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

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