Antônio Obá, artista natural de Ceilândia, cidade satélite de Brasília, dedica-se a fuçar os enlaces entre corpo e imagem, Brasil e racialidade, identidade e diferença. Apesar de transitar por linguagens diversas, entre performances, instalações e objetos, apresentamos aqui um recorte de suas pinturas realizadas nos últimos anos, especialmente interessadas em articular histórias, memórias e imaginários das comunidades afrodiaspóricas. Como muitos artistas de sua geração, Obá empenha-se na criação de imagens curativas, aquelas capazes de remover a poeira das ambiguidades do passado e movimentar os sentidos do presente, na busca de um trânsito mais digno entre sujeito e representação. Para compreender um pouco melhor tal empreendimento, cabe aqui recorrer a um conceito que tem sido caro às suas últimas produções: sankofa.
Sesta, 2019, óleo sobre tela, 170 x 300 cm. Imagem: Reprodução
Sankofa integra o conjunto de ideogramas – o adinkra – que o povo da antiga Costa do Ouro (Akan) instituiu para representar conceitos ou aforismos, e que depois se espalhou pelo Togo, pela Costa do Marfim e pelos países da África Ocidental, com manifestações presentes em toda a diáspora africana hoje (no Brasil, alguns símbolos podem ser frequentemente encontrados em portões e grades de ferro de antigas casas). O ideograma é representado por um pássaro estilizado que volta a cabeça à cauda e, dentre suas variadas traduções, o artista e ativista Abdias Nascimento o situava como o aforismo que conclama a “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Ou, como diz um conhecido oriki de Exu, o orixá “matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Um paralelo ocidental seria o Angelus Novus de Paul Klee, relido por Walter Benjamin, que descreveu que a imagem do artista mirava fixamente para o passado, enquanto a tempestade do progresso buscava arrancá-lo para frente. O ontem está sempre em disputa.
Como retornar ao passado, porém, se o histórico da comunidade negra foi constantemente destruído pela escravidão? Diante da ausência e fragmentação de arquivos, imagens e itinerários, Antonio Obá permite-se fabular e ficcionalizar entre os âmbitos individuais e coletivos, a fim de produzir imagens outras que não reproduzam os rótulos de violência e representação já conhecidos para os corpos negros – sobretudo os forjados pelo olhar branco. Segundo a poeta, ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins, quando temporalidade e ancestralidade se encontram, o tempo se curva para frente e para trás, simultaneamente, “sempre em processo de prospecção e de retrospecção, de rememoração e de devir simultâneos”. Portanto, ao contrário da perspectiva linear, falamos da imagem enquanto campo que possibilita experiências de dilatação e contenção temporal.
Os infantes - irreverência, 2020, óleo sobre tela, 105 x 130 cm. Imagem: Reprodução
Carrossel, 2020, óleo sobre tela, 200 x 228 cm. Imagem: Reprodução
No caso do artista, a dimensão racial também se desdobra a partir de certa exploração das “escritas de si”. Com mais ou menos ênfase, encontramos recursos de autorrepresentação em suas pinturas, bem como menções a memórias e arquivos pessoais. Elementos advindos de álbuns de família convivem com referências de arquivos históricos, filmes, fotografias, músicas, obras literárias e imagens forjadas na própria imaginação. Não se trata, porém, de performar a autoficção para estabelecer uma identidade fixa e unívoca, ao contrário, o gesto se aproxima mais do reconhecimento de um outro – o estrangeiro, o estranho – no seio de si mesmo. Eis a possibilidade de explorar as imagens de si para resistir às capturas produzidas pelo outro, espécie de jogo interminável entre reivindicar uma identidade e não se reduzir a ela.
Um caso que explicita tal complexa conjugação de elementos é Banhistas n.3 – Espreita (2020), obra que aborda um importante episódio na luta pelos direitos dos negros ocorrido em 1964. Naquela altura, semanas depois de Martins Luther King ser impedido de entrar em no restaurante do hotel em que estava hospedado na Flórida devido a cor de sua pele, um grupo de ativistas negros invadiu a piscina do local em protesto. Em reação ao ocorrido, o gerente do estabelecimento despejou ácido clorídrico na água, o que rendeu uma emblemática fotografia de Horace Cort.
Dança dos meninos, 2021, óleo sobre tela, 190 x 209 cm. Imagem: Reprodução
Obá parte de tal episódio para reconfigurar a cena histórica na pintura. Em sua versão, não há ácido clorídrico, mas um crocodilo que confere tensão e ameaça à cena, enquanto os personagens encaram fixamente o espectador. Na parte superior, ao fundo, uma imagem emoldurada faz referência aos cartões postais que retratavam crianças negras usadas como isca para caçar jacarés nos Norte e Centro da Flórida no final do século XIX (não à toa o termo “isca de jacaré” tornou-se um insulto comum nos Estados Unidos da década de 1940, sobretudo para referir-se aos negros da Flórida). Trata-se também de um deslocamento do tema das “Banhistas” na História da Arte, cujo pretexto, em geral, era o de erotizar nus femininos brancos, de Rubens a Renoir. Além disso, o imaginário classista das piscinas, tão explorado por artistas americanos modernos como David Hockney, ganha contornos politizados sem necessariamente abrir mão das investigações plásticas que marcaram tais contribuições.
A tensão produzida em Banhistas n.3 – Espreita também pode ser identificada em outras pinturas. Sesta (2019) centraliza na composição um jovem negro recém acordado de uma soneca sobre um campo de trigo, empunhando uma tesoura enquanto nos observa. Já Os infantes (2020) exibe duas crianças, cuja cor da pele quase se confunde com o entorno escurecido, manipulando uma cobra reluzente e um punhado de bolas de gude, atividade ambígua entre a brincadeira e algum tipo de ritual. Se “infans” são aqueles desprovidos de fala própria (e, consequentemente, falados por outrem), os infantes de Obá estão longe de transmitir ingenuidade. O recurso constante de situar os personagens encarando o espectador reforça a capacidade de agência da pintura – longe de passiva, a imagem nos olha de volta, isto é, nos implica nos elos da representação. E, não raro, os olhares nos soam perturbadores e desconcertantes, como se nos demandassem uma ação para além da contemplação: afluência entre o real e o simbólico.
Fabulação I, 2021, óleo sobre tela, 193 x 200 cm. Imagem: Reprodução
Yauaretê, 2019, óleo sobre tela, 185 x 145 cm. Imagem: Reprodução
Outro exemplo oportuno é Carrossel (2020). Nesta obra, o diálogo com certa tradição da História da Arte se mantém, agora em referência às figuras equestres que tanto simbolizaram a imponência de líderes e “desbravadores” ao longo dos séculos. No centro da cena figura um personagem sincrético que é um misto de Santiago Maior e Ogum (correspondência produzida pelo vodun haitiano – diferente do Brasil, onde Ogum é associado a São Jorge). Em uma das mãos, ele carrega um galho de uma árvore cujo nome pejorativo “orelha-de-negro” é reivindicado para afirmar a escuta como ferramenta de transformação. Noutra, ostenta uma vela acesa e um estandarte preso a uma lança. À direita da imagem, uma criança adornada com um halo dourado (anel de luz que, na iconografia cristã, circunda a cabeça de uma pessoa considerada santa ou sagrada) caminha sobre um chão em chamas atirando pétalas para abrir os caminhos do guerreiro, enquanto à esquerda outra criança simboliza Miguel Otávio Santana da Silva, um menino de 5 anos, filho de uma empregada doméstica que, em junho de 2020, faleceu ao cair do nono andar de um prédio de luxo em Recife após ser deixado aos cuidados da patroa da mãe, gerando comoção nacional. A imagem busca exercer uma espécie de processo curativo que dignifica o menino para libertá-lo da catástrofe e permiti-lo seguir adiante.
***
A presença do repertório religioso marca um ponto de interesse que acompanha toda a trajetória do artista. Tendo sido formado em contexto de forte tradição cristã, Obá desde o início de sua produção abordou as contradições do corpo negro e da escravidão no cerne do catolicismo, bem como as tensões e paralelos entre o cristianismo e as tradições afro-brasileiras, transitando entre sagrado e profano; palavra e carne; desejo e espiritualidade. Na produção mais recente, incluindo Carrossel, a relação mais direta entre dados religiosos e episódios da violência contemporânea, sobretudo racista, faz o passado e o presente se refletirem na imagem como ausências ressurgentes. “Os ecos nos ossos referem-se não apenas à história do esquecimento, mas a estratégias de empoderamento dos vivos por meio da performance da memória”, diria Joseph Roach.
Desdobramentos sobre sankofa, 2021, óleo sobre tela, 80 x 90 cm. Imagem: Reprodução
Decerto que, enquanto público, nem sempre acessamos todas essas camadas de informações que compõem a produção detalhista do artista. Muitas vezes elas estão ali como segredos depositados sobre a superfície, à espera de deciframentos e interpretações operadas pela fala ou pela escrita. Creio que o modo como Obá constrói suas imagens, porém, opera para além das camadas informativas e comunicativas. Seu sentido não se produz a partir de um arco narrativo pleno, antes fareja o que reside de opaco na representação, entre um signo e outro. O artista explora e percorre o vão entre a dimensão simbólica e a dimensão misteriosa – aquilo que se afirma enquanto presença mas resiste aos enunciados totalitários do cânone da palavra e da significação; visibilidade oblíqua. Interessa-lhe explorar a imagem nas suas ritualísticas, sua dimensão atmosférica incapturável que demanda daquele que vê outra postura de assimilação, ao fazer da obra não apenas aparição visual, mas experiência corporal. Noutras palavras, a soma de informações iconográficas fornecidas por essas pinturas não fecha a equação. Sua formulação próxima das fábulas, dos sonhos e das profecias, seus olhares magnéticos que nos fixam sobre a superfície e os afetos ambíguos que suscitam, todos esses furos na representação aproximam a pintura de um desejo de vidência, trançando o cognitivo e o espiritual.
Trata-se de algo próximo dos recursos retóricos das próprias imagens religiosas com as quais Obá conviveu, dedicadas a encantar e acessar outras codificações linguísticas. Mas se as imagens sacras estão a serviço de um sistema propagandístico, aqui, ao contrário, o que se reivindica é uma imagem aberta à polifonia, resistente aos pressupostos classificatórios ou dogmáticos. Eis o ponto no qual o artista faz o debate em torno das complexidades raciais convergir com a própria investigação da linguagem. Reivindicar a imagem como encruzilhada (o que demanda negociar constantemente os sentidos daquilo que se vê) é também lançar luz sobre o modo como determinadas identidades culturais são circunscritas e fixadas. Suas pinturas fazem conviver semelhança e diferença, história e sonho, palavra e corpo sobre uma mesma superfície. Condensadoras de tempos, geografias, intimidades, temperaturas e devaneios, elas forjam deslocamentos simbólicos nos corpos e véus sociais sem abdicar dos delírios do sonho e, mesmo por isso, nos convidam também a ver de olhos fechados.
POLLYANA QUINTELLA, curadora, pesquisadora e crítica cultural. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição.