Há um provérbio africano que diz que enquanto os leões não inventarem suas próprias histórias, serão os caçadores os grandes heróis. Isso me remete à fala da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi sobre o perigo da história única, assim como me leva à frase da revista de arte visuais O Menelick 2º Ato de que a História tem outros lados. Feito esse preâmbulo, como seria contar a história do Brasil através da arte? A arte, com seu caráter elitista, branco e eurocêntrico daria conta deste desafio? Felizmente, apesar do caos político e social vivido no Brasil, há avanços importantes e significativos que devem ser valorizados e visibilizados. Entre eles, a ampliação do fazer artístico para além das mentes e corações eurocêntricos, brancos e de pessoas “bem-nascidas” que sempre fazem a narrativa permanecer em um lado específico da moeda.
A exposição Histórias brasileiras, em cartaz no Masp (Museu de Arte de São Paulo) até 30 de outubro, se dispõe a passar um pente fino no que se constituiu o Brasil através de seus povos, lutas, colonização, resistência, música, identidade. E, com um esmero à altura dessa proposta, consegue realizar um panorama dos mais interessantes sobre as bases de constituição do Brasil. Para isso reuniu uma poderosa equipe com 11 curadores e curadoras que se dividiram em duplas para organizar os oito núcleos que integram a exposição: Bandeiras e mapas; Paisagens e trópicos; Terra e território; Retomadas; Retratos; Rebeliões e revoltas; Mitos e ritos; e Festas. E conta com 400 objetos entre pinturas, desenhos, esculturas, fotografias, vídeos, instalações, jornais, revistas, livros, documentos, bandeiras e mapas.
Pertinente uma narrativa como esta estar presente em um dos maiores museus da América Latina no contexto dos 200 anos da Independência do Brasil e do centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Acontecimentos históricos e marcantes para o país e que trazem em seu âmbito urgentes reflexões sobre essa jornada.
A escolha feita pela curadoria em dividir a exposição em núcleos, ou salas, permite uma imersão nessas histórias brasileiras que vão se aprofundando cada vez mais. Os ideais de uma nação que existem em versões outras da bandeira, símbolo de identidade nacional (leia sobre esse aspecto matéria publicada na edição de setembro, nº 261, da Continente), segue para as miradas contemplativas que diversos horizontes e paisagens podem nos dar (aqui, sem querer dar spoiler, há uma agradável surpresa sonora permeando a visita nas salas do 1º andar). Uma paisagem não apenas de natureza, mas também social, com um horizonte imposto pelo mar em uma alegoria da diáspora nesse legado do ser atlântica, rememorando e evocando aqui a obra de Beatriz Nascimento (1942-1995), historiadora, professora, ativista, umas das maiores intelectuais brasileiras.
Denilson Baniwa, Natureza morta 1, 2016. Imagem: Divulgação
A exposição é uma oportunidade para ver com os olhos e sentir com o coração. As percepções despertadas pelas vivências nas salas e nas obras me atravessaram de forma potente e até um pouco inesperada. Isso porque minha trajetória profissional e acadêmica (e também de vida) foi forjada pela defesa dos direitos humanos e do ativismo em distintas nuances e sempre com uma visão insurgente e insubmissa da história tradicional aprendida na escola.
A proposta de uma narrativa de sobreposições de histórias e de conflitos se mostra nas próprias escolhas da montagem da exposição e na mistura de linguagens em um mesmo núcleo. Com isso, os diálogos saltam aos olhos espiralando o tempo (como nos ensina a professora Leda Maria Martins) que se corre em muitas direções simultâneas em um movimento que retém o passado e o presente, enquanto nos provoca a prospectar possibilidades de futuro. Ao se propor estabelecer essa narrativa, se tece um fio peculiar e, por que não?, filosófico de conversas entre as obras. O jovem Jota, nascido e criado no Complexo do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, com suas pinturas realistas do cotidiano da juventude negra das favelas e subúrbios cariocas, estabelece uma ponte interessante com a obra de Sidney Amaral, artista paulistano, falecido em 2017.
Presença obrigatória em uma proposta como esta, Cândido Portinari, com a crueza da realidade de sua obra Retirantes, cria uma conexão com as telas bordadas pelas mulheres de projeto do MAB (Movimento dos Atingidos pelas Barragens). Elas se utilizam da técnica chilena da arpillera – prática artística de tecelagem desenvolvida durante a resistência aos desmandos da ditadura de Augusto Pinochet – para denunciar os crimes humanitários consequentes da construção de barragens em Belo Monte, em Altamira e em comunidades da região norte do país.
Essa conexão se completa com a imagem da fotoperformance dos artistas Davi de Jesus do Nascimento e de Bicho Carranca, irmãos que – nascidos às margens do Rio Francisco – desenvolvem seu trabalho utilizando a cosmologia das águas, dos peixes, da natureza, enfim, para denunciar e problematizar as violações constantes às quais sua comunidade é submetida.
Há também o diálogo da obra de Gê Viana – em sua Sobreposição da história, fotomontagem realizada em parceria com a quilombola e performer Andréa Dias – com a de Rosana Paulino. Esse deslocamento de técnicas, tempos históricos e suportes contribui para aprofundar o pensamento crítico de toda a nossa história colonial que persiste e se atualiza na fluidez do capitalismo moderno, amparado por discursos cada vez mais conservadores.
O percurso por aquelas salas me remeteu a um sentido de continuidade. Daí também deriva uma parte importante da minha emoção – a presença de muitos artistas negros com suas obras que contribuem imensamente à mudança de percepção dessas histórias tão brasileiras.
Jota, Conteúdo ilícito, 2021. Imagem: Jaime Acioli/Divulgação
Essa mudança se relaciona com a reportagem que escrevi para a edição de outubro de 2017 (#203), Negras Linguagens – Nova geração de artistas afro-brasileiros, em que reunimos potentes obras de arte que tratavam da ampliação do discurso e da mudança de perspectiva que a arte desenvolvida por pessoas negras e toda a sua inovação, inclusive de técnica, trazia não apenas para o contexto artístico, mas também para o combate à miopia social e racial que existe no Brasil. Jaime Lauriano, Sidney Amaral, Rosana Paulino, Paulo Nazareth, Eustáquio Neves e a imensidão de Rubem Valentim e Emanoel Araújo são alguns dos nomes presentes nos dois momentos dessa minha vivência artística/jornalística.
Invade-me um sentimento de esperança, cinco anos depois dessa reportagem, em escrever novamente sobre arte e história, no contexto desta exposição e perceber uma continuidade em suas salas e obras.
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Em Histórias brasileiras há também um avanço precioso em contar com a presença da arte produzida pelos povos indígenas, que marcam seu território de forma pungente com obras elaboradas especificamente para a exposição. Fato que só comprova a riqueza narrativa e técnica dessa produção, que, para além desse momento maspiano, deve ser impulsionada e incentivada, como são as obras de Elisclésio Makuxi e do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku). Junta-se aqui o esforço de resgatar a língua Puri do povo indígena de mesmo nome; apesar de oficialmente ser considerado extinto, ele se reencontra e se reagrupa pela internet para coletivamente retomar sua língua a partir de documentações coloniais.
Se falarmos sobre lutas e levantes, há o reconhecimento histórico da contribuição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), presente na sala Retomadas, que é como os indígenas chamam a ocupação de suas terras ancestrais. A sala conta com documentos, fotos e obras que colocam a luta pela terra e suas nuances como um caminho sem volta.
Meses antes da abertura da exposição este núcleo foi cancelado, o que gerou uma grande polêmica. Na ocasião, a explicação foi de que algumas fotos relacionadas ao MST não atendiam aos prazos estabelecidos e, por isso, ficariam de fora. A decisão causou o desligamento das curadoras do núcleo, Sandra Benites e Clarice Diniz. Argumentando que de maneira nenhuma a decisão era política, o Masp, em nota oficial, afirmava que seu caráter democrático era o que mais importava neste momento. Abriu-se então um diálogo que provocou a revisão do cancelamento do núcleo, adiando por alguns meses a abertura da exposição para que as obras referentes ao MST fossem incluídas e houvesse o consequente retorno das curadoras para a função.
Polêmicas sempre são polêmicas, e podem ser desgastantes, mas todo o debate em torno do assunto foi uma maneira educativa, antes mesmo do acesso às obras, de mostrar o quanto é importante ajustar as lentes pelas quais enxergamos as histórias e os contextos brasileiros. Que sorte do público vivenciar toda essa reflexão. Para mim, especialmente, foi mágico caminhar nesta sala e me ver naquelas fotos, pois iniciei a minha carreira no jornalismo editando o Jornal Sem Terra, desafio imenso para uma jovem de 20 e poucos anos. Lá estava eu e também na foto que marca a chegada da Marcha do MST a Brasília, em 2005. Esse exemplo marca uma sensação constante em percorrer aquelas salas e núcleos: estas histórias brasileiras são também, minhas, ou melhor, nossas.
André Vilaron, Mulher, mãe terra, MST, 1996. Imagem: Divulgação
Ao descer para as salas do subsolo, esse reconhecimento permanece. O corredor permeado de retratos e autorretratos de artistas como YêdaMaria, Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Pegge, Duhigó, Anita Malfatti, Antonio Obá, Yakunã Tuxá e outres mais que, com sua diversidade de técnicas, mostram a cara diversa de uma gente resistente que tem aquela estranha mania de ter fé na vida, como canta Milton Nascimento.
E como não existe Brasil sem ritos, festas e luta, as outras salas nos convidam a percorrer estes imaginários, populares, negros, das rodas de samba outrora registradas por Heitor dos Prazeres e hoje percebidas no diálogo com o carioca Wallace Pato; ou ainda a celebração da vida e o agradecimento à natureza da artista indígena macuxi Carmézia Emiliano.
Ao final da jornada por Histórias brasileiras – indo às lágrimas com a escultura Opa Ofa Iode (Cetro da flecha que vigia o caminho), do magnífico e ancestral Mestre Didi –, fica a reflexão dessa narrativa brasileira que segue sendo construída diariamente por pessoas comuns e artistas dispostes a registrar esses percursos e imaginar outras possibilidades de existência atreladas à vida, à terra, à justiça e à defesa dos direitos em suas mais diversas áreas. E aí me vem mais um ditado, dessa vez iorubano, que afirma: Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só atirou hoje. Que mais histórias como as nossas sejam contadas e ouvidas cada vez mais longe.
Yêdamaria, Autorretrato, proteção Yemanjá, 1978. Imagem: Divulgação
CHRISTIANE GOMES, jornalista, mestra em Comunicação e Cultura pela Universidade de São Paulo. Atua como coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo e também integra a coordenação do Bloco Afro Ilú Obá de Min.