(Lucian Freud, em Algumas reflexões sobre a pintura)
Na mesma tela, duas cenas ainda em underpainting (camada inicial de tinta que se aplica em uma tela), quase idênticas, aparecem justapostas. Reclinada sobre uma cama, em evidente alusão ao estilo de pose tradicional no qual as mulheres foram pintadas ao longo da história, Fefa Lins se coloca nua, com olhos fixos e apenas um cigarro entre os dedos da mão. Nesta imagem que se repete uma diferença salta aos olhos de quem a observa: na primeira, aparece com quatro seios; na segunda, eles são removidos completamente.
“Quis fazer um paralelo entre os processos de pintura com a construção dos corpos. Nossos corpos são campo livre para serem transformados – e transformados para além das expectativas heteronormativas. Da mesma maneira, uma pintura, se continuada, também pode ir para qualquer lugar. Mas em um underpainting, técnica de pintura clássica, é mais esperado que se torne um quadro realista. Mesma coisa com nossos corpos, por que eu nasci com vagina e peitos devo ser uma mulher? Está tudo aberto, como a tela em processo”, nos explica a artista.
Sem título, 2020. Óleo sobre tela, 130 x 105 cm.
Imagem: Fefa Lins/Divulgação
Produzido mais recentemente, durante os últimos meses de isolamento social, esse trabalho em processo, embora já concluído, indica muito sobre o fazer artístico e diário de Fefa Lins. A artista pernambucana parte do lugar de suas obsessões, vontades, desejos e frustrações. Latências pessoais que surgem a partir de uma experiência não heteronormativa de realidade e que, por isso, evocam um embate político dentro e fora das telas. Nelas, estão corpos, afetos, sexualidades e identidades de gênero não normativas, imagens de um território negado historicamente, colocado à parte de uma sociedade patriarcal e misógina. De dentro dessas margens, a artista transformou suas dissidências não somente em potência criativa, mas em um lugar de resistência: “O que me puxou foi a vontade, o desejo, a necessidade de pintar”.
Por perceber o corpo enquanto ponto de partida para compreender o mundo ao nosso redor, Fefa questiona a posição tradicional dos corpos femininos na pintura e sociedade, usando a pele de seu próprio corpo para desvinculá-lo da ideia de uma mulher invariavelmente dócil e passiva, preceitos enraizados por uma cultura hegemônica, ocidental e judaico-cristã. Por isso, não são raros os autorretratos que escancaram de forma natural a vulva, os pelos, o sexo entre mulheres, aspectos que conferem ao trabalho da pintora uma intimidade capaz de gerar empatia por parte do público, majoritariamente feminino, que acompanha sua profissão e se identifica com suas telas.
“Muitas pessoas ficam impressionadas com o aspecto técnico e a composição das minhas telas. Acham o trabalho belíssimo, mas não o teriam em casa. É como se o olhar delas não fosse capaz de acessar. Por isso, as pessoas que se envolvem com meu trabalho têm também alguma dissidência, algum lugar de acesso a ele a partir do corpo delas. É como se nossos corpos em algum momento se encontrassem e, por isso, nossos olhares para o mundo e nossas sensibilidades se conectassem”, comentou.
O despertar para a pintura enquanto necessidade aconteceu em meados de 2014, quando ainda não imaginava que as possibilidades oferecidas pelo mundo digital seriam precursoras de sua carreira artística. No Facebook, aos 23 anos de idade, conheceu um grupo de empoderamento feminino através da ilustração – tratava-se da iniciativa Selfless portraits das minas. Com o tempo, ao desenhar outras artistas e ser por elas desenhada, acabou (re)descobrindo uma paixão que desde infância a acompanhou pelos tantos cadernos rabiscados, mas que, devido aos compromissos com a formação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco, haviam sido temporariamente substituídas pelos desenhos técnicos da profissão. Somado ao envolvimento com o grupo, a artista passava por um momento catártico de inquietações, movimentos que se transformaram em um processo até hoje pulsante em suas telas.
Ostras à trois, 2018. Óleo sobre painel, 40 x 50 cm.
Imagem: Fefa Lins/Divulgação
Atualmente, aos 29 anos, Fefa é artista do casting da galeria recifense Amparo 60, ao lado de artistas como Gil Vicente, Isabela Stampanoni, Lourival Cuquinha e Clara Moreira. Em sua trajetória, conta com participações importantes em exposições coletivas, como Necessidade do amor, realizada na Arte Plural Galeria; Mulheres que frequentam, na Maumau Galeria; e Práticas desviantes, no Museu Murillo La Greca, todas recifenses. Em 2020, participou das mostras coletivas SP Arte e Últimos dias, com organização de Marcelo Amorim, através do espaço independente Hermes Artes Visuais, ambas em São Paulo.
Sua busca pelo objeto da pintura funciona de forma substancialmente intuitiva, e, neste caso, nos últimos anos, o objeto tem sido ela própria. Os frequentes autorretratos são, talvez, a maior assinatura de uma artista que imprime na tela questões pungentes do contemporâneo: “Nenhuma representação, nem mesmo a fotografia, é capaz de mostrar a realidade. Entendo o autorretrato como um espaço de construção da minha imagem e também de projeções e imaginações sobre meu corpo. O que quero mostrar e esconder faz parte de um processo. Todas as interpretações são exercícios de imaginação e reimaginação da realidade”.
Performando o papel simultâneo de artista e “musa”, o processo criativo é também de solitude e de autoestudo. A fotografia é, quase sempre, o recurso inicial na construção das obras da artista: com a câmera digital posicionada no tripé, Fefa experimenta diferentes tipos de iluminação e poses, explorando as possibilidades do próprio corpo. A partir disso, as imagens passam por tratamentos em programas de edição, como num rascunho digital, e só então começam a ganhar formas na tela de tecido cru, preparada com gesso acrílico. Como os cliques são feitos pelo celular, que dispara as fotos através da rede bluetooth, a figura do aparelho costuma fazer parte dos elementos por ela enquadrados.
Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 105 x 105 cm.
Imagem: Fefa Lins/Divulgação
A escolha por retratar o telefone, fazendo referência aos métodos tecnológicos que perpassam a ideia da pintura, estrutura uma linguagem metalinguística, cuja intenção é deixar que a obra manifeste os processos digitais ali presentes. “Hoje em dia, nesse momento em que a gente vive com o celular como se fosse quase uma extensão dos nossos corpos, como ciborgues, acho que faz sentido essa leitura de mundo e me parece natural retratá-la. Se eu uso o celular para fazer esse processo da foto, por que tirá-lo?”, indaga, completando o raciocínio.
Este momento ao qual Fefa se refere está diretamente ligado à “instagramização” das narrativas contemporâneas. Sem dúvidas, a atual facilidade para fotografar e compartilhar imagens altera nossa forma de produzir e pensar o cotidiano. Segundo o filósofo Henri Lefebvre, o campo das imagens, como a fotografia, o cinema e a televisão, são capazes de instaurar novas referências dentro do imaginário coletivo, transformando, inclusive, os espaços sociais ao nosso redor. “Quando a pessoa faz um stories na casa dela, existe uma escolha do que vai aparecer no fundo, do que quer dizer. Bem-parecido com o processo de pintura quando a gente pensa no sentido pictórico”, pontua Fefa.
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Nas suas telas, as cores e texturas escolhidas conferem uma película de profundidade ao universo retratado, uma dimensão psicológica, uma intimidade com o que está ao alcance de nossos olhos. Dentre as técnicas possibilitadas pelo suporte artístico da pintura, Fefa destaca sua preferência pela transparência e opacidade. As tintas a óleo, material mais utilizado pela artista, podem ser opacas, transparentes ou semitransparentes, o que permite variadas combinações, capazes de gerar texturas e efeitos ópticos, de acordo com sua concentração ou diluição.
O momento de enfrentar a tela branca torna-se uma ocasião de alquimia, quando a paleta de cores é testada e está sempre sujeita a mutações repentinas com a sobreposição de camadas diversas que vão se somando. Nos processos da pintora, apesar de não existir um momento de planejamento dos detalhes que estarão expressos ali, ela costuma escolher lugares para maior renderização, com intuito de fisgar o olho do espectador. Também se utiliza de outros espaços para pinceladas maiores, com grandes blocos de tinta que ambientam a visão periférica dos entornos.
Tempos de cascata, 2020. Óleo sobre tela, 50 x 83 cm.
Imagem: Fefa Lins/Divulgação
A presença de elementos oníricos e ficcionais é também um apelo, por vezes, inserido nas composições dos autorretratos de Fefa. Um bom exemplo disso é a configuração do quadro Sem título (2020), que é, para a pintora, uma de suas obras mais profundas, pois está repleta por uma teia de significados. No centro da tela escura, seu rosto é transmutado em um busto de pedra, imerso em águas turvas. Nos olhos erguidos, angústia e lágrimas vermelhas em uma alusão às santas católicas que choram sangue. Na porção inferior, o retrato de sua gata de estimação, Dilma, recém-acidentada, usando um colar elisabetiano para restringir seus movimentos. “Hoje em dia, olho para a pintura e a entendo muito como um lugar de isolamento e, ao mesmo tempo, de proteção e conforto. A água fala muito desse lugar emocional, profundo, inconsciente. Estou ali, como uma estátua, cheia de lodo, parada no tempo. Tem também algo de fracasso na imagem da gata, que está ali protegendo, mas destruída”, revela.
A veladura, técnica de aplicação de múltiplas camadas que serve para criar a sensação de profundidade em um quadro, é outro recurso bastante usado nas inventividades da artista. É assim como uma metáfora para o próprio processo que envolve sua produção: por trás da tela – ou na sua frente – há uma catarse de sentimentos. Os seus quadros revelam, pelo menos, duas facetas que se imiscuem: a prática da pintura e outra, que parece ainda mais laboriosa, o exercício de olhar para dentro de si.
Um olhar que questiona até mesmo as técnicas “clássicas” utilizadas. Afinal de contas, o que essas referências estéticas podem revelar? Para Fefa, sentimentos contraditórios e particulares, mas comuns à América Latina, como a herança eurocentrista e ocidental – que impôs modelos culturais e um olhar colonizado na produção de subjetividades; o conjunto de explorações e violências simbólicas, físicas e psicológicas produzidas pelo patriarcado; a influência da Igreja Católica; o apagamento histórico de pintoras mulheres; a objetificação sistemática dos corpos femininos e, por vezes, infantis; a imposição de padrões de beleza; a exotização dos corpos de mulheres originárias, negras, entre tantas outras.
Sem título, 2018. Óleo sobre painel, 90 x 60 cm.
Imagem: Fefa Lins/Divulgação
“A pintura clássica, pintura eurocêntrica, faz parte do meu imaginário. Vim de uma família católica que sempre pagou pau para cultura europeia, implementada a partir da visão colonial. Quando comecei a pintar, surgiam essas referências, ao mesmo tempo em que havia essas complexidades: por mais que eu admire muito, no sentido técnico e estético, tenho muitas críticas. Os quadros de Caravaggio, por exemplo, quadros incríveis, mas bíblicos, usados nas missões para catequizar os povos nas terras invadidas”, explica a artista.
Como forma de estabelecer uma comunicação contínua, a maioria da produção de Fefa é publicada em sua página no Instagram, suporte que permite descrições maiores e mais pessoais dos seus trabalhos, rompendo com o formato tradicional ditado pelo establishment dos centros de produção artística legitimados. Nessas descrições, a artista vem atentando à missão de escrever poesias para acompanhar suas telas, pequenas confissões que não objetivam justificar seus trabalhos, mas, sim, confessar seus sentimentos. “Eu tenho tentado falar a partir de um lugar cru de emoção. Obviamente, não é só um sentimento que constrói uma obra de arte, existe também a técnica estudada, as referências acumuladas, as ideias de composição, mas esses poemas falam dessa pequena parcela: a emoção, um lugar reservado, que as pessoas não costumam falar com os artistas”.
Em Tempos de cascata (2020), por exemplo, a artista escreve: enquanto a tela/ ainda seca/ eu permaneço/ aqui molhada/ só pintei/ pra te lembrar/ dos tempos/ de cascata (…) o que a pintura/ de mim leva/ já não quero/ mais de volta”. Em outro, Quebrar da aurora (2020), uma declaração: “tem dias que sinto muita saudade, olho para esse beijo pintado, o nosso último, amargo de tinta e solvente e eu sei que tem coisas que nunca caberão numa tela, mesmo tendo 1,50m de altura, a maior que já pintei. é o começo do fim… ou é o fim”.
Questão existencial que tomamos a liberdade para responder: é apenas o começo da trajetória de uma artista que tem entendido como dominar a técnica, mas, principalmente, como subverter os seus usos. Ao repensar o corpo social a partir de seu próprio corpo, Fefa Lins cria possibilidades para reparar as rachaduras históricas que foram abertas e que precisam, com urgência, de novas imagens.
Quebrar da Aurora, 2020. Óleo sobre tela, 155 x 85 cm.
Imagem: Fefa Lins/Divulgação
ISABELA AGUIAR, jornalista.
THAÍS SCHIO, jornalista.