“O Rio é uma cidade eternamente incompleta que, ao mesmo tempo, se orgulha em ser um monólito de beleza insuperável. Um poema feito de ruas, praias e pedras que nasceu perfeito, mas que cada prefeito tenta aperfeiçoar um pouquinho mais. O Mangue não escapou a esse paradoxo”, escreveu Heringer, num dos muitos trechos que merecem grifos. Ambiente da narrativa de Fraga em Desabrigo, o Mangue, reduto de bares e bordéis, foi formado a partir do aterro/enterro de morros e manguezais.
Se, no Rio de Janeiro, a área abrigou, no começo do século XX, boêmios, sambistas e escritores, como Antônio Fraga, o mangue do Recife inspirou, no final do século passado, o movimento Manguebeat, do qual Otto foi um dos seus remanescentes. Há 20 anos, o ex-percussionista da Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, lançava Samba pra burro, disco que trouxe a eletrônica à MPB e se tornou um marco para a música brasileira pós-Manguebeat.
Prestes a completar 50 anos, o cantor e compositor pernambucano fala, em entrevista à Continente, sobre essas duas décadas de carreira solo e os embates que vem enfrentando no mercado fonográfico. O artista, um dos que mais se posicionam politicamente hoje no país, ressalta também questões urgentes, como a situação urbanística do Recife, o mangue (que continua sendo devastado), o colapso político e social do Brasil e o papel dos artistas nesse contexto. “É muito difícil você viver num país que tem tanta desigualdade. Quando o povo é mais atacado, o artista surge nessa hora, porque o artista é o povo. E tem o dever de estar sempre avant-garde, observando o futuro”.
Com essa entrevista cheia de esperança de Otto, afirmamos que, apesar de tudo, a esperança sobrevive, como afirma Heringer, “porque é teimosa”.