Perfil

Neilton, por conta própria

Pintor, músico e “professor Pardal”, ele monta, em sua casa, instrumentos e amplificadores de som, cria músicas e elabora pinturas em tela

TEXTO E VÍDEO SOFIA LUCCHESI

05 de Abril de 2018

Guitarrista e artista do Devotos, Neilton Carvalho faz de seu ateliê no Alto José do Pinho, no Recife, um laboratório

Guitarrista e artista do Devotos, Neilton Carvalho faz de seu ateliê no Alto José do Pinho, no Recife, um laboratório

Foto Eric Gomes/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 208 | abril 2018]

Quando questionado
por um jornalista se seguia o lema “do it yourself” (em português, faça você mesmo), Neilton não soube o que responder. “Pensei: Que porra é ‘do it yourself’?! Eu não sabia inglês, pô!” Só depois foi entender que o termo era parte do punk, movimento musical e cultural que propagava autonomia e redução do consumo na “gringa” em meados de 1970, década em que nasceu. Hoje, aos 46 anos, o guitarrista da Devotos compreende que sempre foi punk, mesmo antes de ter “conhecimento de causa” ou de empunhar uma guitarra.

Na infância, construía e modificava brinquedos; na adolescência, aprendeu a tocar guitarra sozinho e construiu seu próprio instrumento. A mesma vocação autodidata também o tornou artista plástico – quando criança, com os lápis herdados da irmã, começou a copiar os desenhos animados que assistia na TV. Sem muita “grana”, do jeito punk-do-it-yourself, Neilton se “fez ele mesmo” músico, luthier e artista plástico, tudo ao mesmo tempo.

Em sua casa, no Alto José do Pinho, bairro popular da zona norte do Recife onde nasceu, foi criado e reside, quadros e pincéis dividem espaço com ferramentas e amplificadores da Altovolts, grupo fundado por ele e outros dois amigos músicos, que pesquisa tecnologias de áudio obsoletas. No mesmo espaço em que mora com sua família, fabrica, pinta, atende clientes – da Altovolts e como artista plástico –, compõe e faz gravações num pequeno estúdio, onde atualmente está gravando o sétimo álbum da Devotos, junto com Cannibal (baixo e vocal) e Celo Brown (bateria), com previsão de lançamento para este ano.

Do que era lixo ou ultrapassado, dá vida a instrumentos e amplificadores – a primeira guitarra que construiu foi feita com peças de rádio, fogões e televisores quebrados. O que era criado apenas por “necessidade”, do primeiro impulso adolescente de tocar uma guitarra e não ter dinheiro para comprar bons equipamentos, acabou virando identidade sonora e estética. Tudo é feito à mão, das placas e dos chassis até a costura e o tingimento do couro que cobre os amplificadores – o processo é artesanal, mas o resultado é um produto de sonoridade e design sofisticados.

“Eu não tinha dinheiro pra comprar uma guitarra legal, então era mais barato construir. Acho que toco mal pra cacete, mas, talvez, se eu tivesse dinheiro, poderia ser que minha forma de tocar não me identificasse, eu poderia ser mais um que quisesse tocar igual à forma como um americano toca. Aí é que está a questão.” Justamente por sua identidade, de uma certa “crueza” sonora, foi chamado para compor a banda da carreira solo de Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), participando dos dois álbuns solo do poeta de Arcoverde.

Tanto na música quanto nas artes visuais, Neilton parece sempre buscar a “raiz das coisas”. Sua criação musical está diretamente ligada ao seu entendimento sobre os próprios instrumentos – desmontou e remontou sua primeira guitarra antes mesmo de aprender a tocá-la. “Uma vez, li num livro que o músico é aquele que entende o seu instrumento, aquele que o conhece de cabo a rabo, que sabe montar e desmontar”, diz. “Eu sempre tive uma autocobrança muito grande, mas, ao mesmo tempo, quando eu tinha uma pergunta, uma dúvida, sempre achei que eu mesmo deveria responder, e não que alguém teria que me mostrar a resposta.”


Neilton criou com dois músicos a marca de amplificadores Altovolts.
Foto: Alcione Ferreira/Arquivo

Com a pintura e o desenho, buscou ter domínio do real – em perspectiva, proporção, percepção espacial – para depois desconstruir a técnica. Toda a sua paleta é derivada apenas das três cores primárias – azul, amarelo e vermelho. Há sempre um fio que liga as suas diferentes energias criativas, seja pelo processo ou pelo discurso. Essas energias o conduzem não apenas a ser um “multiartista”, pois, longe de qualquer definição limitadora, Neilton é um artista contemporâneo. Suas linguagens convergem e se complementam.

Como artista plástico, acumula três exposições individuais no currículo. Seu trabalho tem muito das imagens que sempre viu no “Zé do Pinho”, a desigualdade do mundo, um tom de denúncia e agressividade punk que também compõe a mensagem da Devotos. Sua primeira individual, Imagens puras (2004), consiste numa série de pinturas de personagens e cenas que via no entorno de onde mora. São imagens violentas, não por retratarem cenas de sangue, mas, sim, por mostrarem situações de vulnerabilidade, potencializadas pelas pinceladas fortes e dramáticas do artista.

“Eu não consigo pintar os coqueiros do Recife porque não consigo chegar até eles sem ser atingido. Os coqueiros do Recife estão numa parte da cidade a que a gente tem acesso, mas saindo daqui do Alto (José do Pinho), eu vou ver muita coisa no caminho. Não consigo passar imune. Minha pintura não é apenas um veículo de denúncia, mas, sem necessariamente ter essa intenção, por eu ser quem sou e vir de onde venho, ela acaba sendo”, reflete.

Do Alto “Zé” do Pinho, foi conquistando outros territórios. Um deles é o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), em que atualmente prepara a exposição A arte é um manifesto – 30 anos de Devotos. Comemorando as três décadas de resistência da banda, a mostra tem abertura para o dia 9 de maio de 2018. Desde que entrou para o grupo, aos 16 anos, em 1989 – ano seguinte à fundação oficial da Devotos –, tem feito todo o material artístico, como capas, encartes de CDs e cenografia de palco, pois, antes de gostar de música, já desenhava. Hoje, produz em várias técnicas, como tinta a óleo, nanquim, aquarela e bico de pena.

A realização da mostra simboliza não só a importância da Devotos, mas é também um marco da chegada desse artista da periferia recifense a um dos museus de maior relevância em Pernambuco, no qual já foram expostas obras de Rodin e Basquiat. “Eu não achava que meu trabalho ia chegar a lugar nenhum, achava que ia continuar só fazendo as capas da banda. Eu não imaginava que estaria inserido como artista plástico. Tanto é que não tenho falácia acadêmica no meu discurso, para explicar o embasamento das obras. A minha forma de falar é do meu jeito ‘mermo’, de rua, e eu não quero mudar isso”, diz.

***

“Eu digo às pessoas que não cresci. Tudo que eu faço é só um aprimoramento do que eu já fazia quando era criança”, diz Neilton, que, na infância, construía os próprios brinquedos, com peças de rádios quebrados – “Ficava torcendo para que quebrassem e eu pudesse mexer! (risos)”. Copiando os personagens que via na TV, foi justamente nessa fase que começou a dar vazão à sua criatividade. A TV, via na casa dos vizinhos. “Depois, meu pai conseguiu comprar uma TV usada do ex-patrão dele, que era à válvula e em preto e branco. Já era legal ver na casa do vizinho, imagine em casa! Por causa do gasto de energia, minha mãe controlava os horários para a gente assistir, mas, mesmo assim, a gente assistia muita coisa. E, quando meu pai chegou com a TV a cores, aí pronto, foi mais legal ainda”, conta ele, que cita a dupla de cartunistas Hanna-Barbera (autora de Os Flintstones, Tom & Jerry, Scooby-doo) como referência tanto para a concepção de design quanto da pintura.


Bem no início da carreira, tocando a guitarra que ele mesmo construiu.
Imagem: Reprodução

Foi o desenho que, de alguma forma, intensificou sua conexão com a música. “Quando criança, eu não me identificava com algumas coisas que meu pai escutava, mas gostava das capas dos discos que tinham desenhos. Uma das minhas referências até hoje é Elifas Andreato, que fazia as capas de Martinho da Vila. Quando meu pai trazia um disco de Martinho da Vila, eu ficava doido!”, relembra. Somente quando ouviu uma guitarra elétrica distorcida, num disco de Elvis e noutro de Roberto Carlos (Em ritmo de aventura – “tinha uma guitarra muito massa”), foi que realmente começou a gostar de música. O rock o trouxe para a linguagem musical.

De alguma forma, a ligação entre a música e as artes visuais sempre foi presente na vida do artista, de forma até mesmo retroalimentar. “O primeiro disco que eu comprei para mim, porque antes era tudo emprestado ou eram do meu pai, meu primeiro LP foi Somewhere in time, do Iron Maiden, e foi pelo som, lógico, mas também porque tinha uma capa foda, com muitos elementos. A partir daí, me interessei pelas capas, saí comprando uma porrada de discos do Iron Maiden. As capas do Iron sempre são feitas por um desenhista muito bom.” Depois do Iron, foi descobrindo a cena mais underground do metal da época, e vieram capas e discos do Metallica, Slayer e Celtic Frost; esta última o levou a conhecer o trabalho de H. R. Giger, artista plástico de veia surrealista e sombria, notoriamente conhecido por ter criado o universo de Alien, o oitavo passageiro (1979), que cita como uma referência. Daí, também chegou à revista de quadrinhos Heavy Metal, através da qual conheceu Moebius, Simon Bisley e as histórias de RanXerox.

Certo dia, já adolescente, resolveu pular o muro da escola com um amigo para ir ao antigo Hiper Bompreço de Casa Amarela, onde se vendiam instrumentos. Juntou o dinheiro que ganhava vendendo pulseiras de miçangas, feitas por ele, para comprar a primeira guitarra, uma Sonic, da Giannini – a mais barata do supermercado, que nunca era vendida. Na época, 1988, com a inflação oscilando constantemente, percebeu que demoraria muito para conseguir juntar dinheiro. Com ajuda do pai, comprou a Giannini. “No mesmo dia, eu desmontei a guitarra. Na nossa casa, não tinha porta, era tudo cortina. Meu pai abriu a cortina e viu a guitarra toda desmontada, ele virou bicho (risos). ‘Tu quebrou a guitarra?’, ‘Não, eu desmontei!’, ‘Então tu desmontou, tu quebrou a guitarra’, ‘Não, quebrei não!’; e ele num ódio da porra, mas eu remontei e lógico que não funcionou bem (risos). Mas foi aprendizado, porque eu parti daí, dessa primeira guitarra, que era a pior da época, eu montei a segunda.”

Também, durante a adolescência, trabalhou numa loja de eletrônica em Nova Descoberta, na qual resgatava materiais descartados. “A galera dizia: ‘Ó, vai limpar o quintal de não sei o quê, tirar sucata lá’; eu ficava: ‘Ôxe, eu vou agora!’. Quando eu mexia na sucata, ia separando as coisas que eu achava massa, sabe? Foi quando fui montando a guitarra, montei com peças de fogão, de rádio, de televisão”, relembra.

Nas bibliotecas públicas, estudava Eletrônica e Física, ia lendo, trocando e cruzando informações, e aprendendo na prática. Nos sebos do Recife, Neilton encontrava revistas de guitarra, quadrinhos, e livros de arte – foi num sebo que conheceu a obra de Rembrandt, o “mestre das sombras”, e de outros, como Da Vinci. “No meu coração, Hanna-Barbera e Rembrandt, têm a mesma força. Pra mim, um original do Rembrandt custa não sei quantos mil euros, o original dos primeiros anos do Hanna-Barbera também”, diz.

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Em 1989, a convite de Cannibal, que conhecia desde os cinco anos lá do “Zé” do Pinho, entrou para a Devotos – tinha um background mais heavy metal e pouco sabia ainda sobre o punk. De forma independente, colando cartazes em postes e lojas, espalhando panfletos e fanzines, a banda punk do morro fez sua própria cena. Até então, não havia nenhuma gravação, tudo se resumia a shows comunitários. Na década de 1990, a partir do intermédio de Paulo André (produtor do festival Abril pro Rock), a Devotos começou a ser integrada ao Manguebeat. “Antes, a gente não sabia nem o que era uma fita demo (risos). Lá pelo início dos anos 1990, chegou Gastão e Miranda (Gastão Moreira, jornalista musical, e Carlos Eduardo Miranda, produtor musical) dizendo: ‘E aí, vocês têm uma fita demo?’, a gente pensou: ‘Porra, fita demo?’, aí a gente correu, pegou umas coisas que tinha em casa e botou tudo numa fita e deu pro cara”.


Neilton (à esq.), em 1996, com integrantes da Devotos, do Mestre Ambrósio, Chico Science, Paulo André e Arnaldo Antunes. Imagem: Reprodução

“A primeira vez que a gente tocou com Chico Science & Nação Zumbi foi no Rock and Roll Circus, que era um festival da galera de classe média. Saí daqui andando a pé com o instrumento nas costas até o Circo Maluco Beleza, que ficava ali na Rui Barbosa (no Bairro das Graças, Recife). Até hoje não tem ônibus daqui, do Alto José do Pinho, para as Graças. Em várias edições do Abril Pro Rock, que foram ali, a gente nunca teve condução para ir, e ia a pé. Era doido, porque o público saía e via a gente voltando com os instrumentos, falando: ‘Porra, o show foi do caralho!’ (risos)”, lembra Neilton. A ebulição cultural proporcionada pelo mangue trouxe também, à época, uma maior integração entre a movimentação musical e o cenário das artes plásticas, a exemplo de artistas como Oriana Duarte e Paulo Meira, que produziram os cenários de palco da turnê Afrociberdelia, da CSNZ.

“Enquanto, no mundo, havia mais integração, enquanto você via artistas como Andy Warhol trabalhando com grafiteiros que nem Basquiat, descobrindo e colocando um grafiteiro, um ‘pixador’, entre aspas, como Basquiat no circuito oficial das artes plásticas, no Brasil, isso era totalmente estranho. A gente absorvia isso deles, mas não pregava isso aqui, principalmente no Nordeste”, reflete. “O Nordeste tinha um atraso, pelo menos assim eu via, dos anos 1980 pra meados dos anos 1990, dessa integração do punk com a arte. Ou melhor, da arte punk ser integrada como arte plástica, como Paulo Bruscky, como Maurício Silva, Maurício Castro, Flávio Emmanuel, Dantas Suassuna, Grupo Carga e Descarga, que já desenvolviam essa pegada punk, mas não se integravam ao movimento punk. Eu estava tentando transcender e atrelar os dois mundos, querendo ser o elo entre as duas coisas, a música e as artes plásticas, mesmo que de forma inconsciente.”

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Subvertendo o que se espera de um artista periférico, Neilton foi, aos poucos, sendo reconhecido na cena cultural recifense, apesar de até hoje não ter sido inserido num circuito institucional – por isso mesmo, a exposição no Mamam se torna tão representativa. Nesse sentido, ele olha de forma crítica para o elitismo presente no circuito de artes plásticas pernambucano. “Um dia, nos anos 1990, vi uns quadros de João Câmara no Museu do Estado – nos anos 1980 não tinha nem ouvido falar. Fiquei achando que eu estava num universo estranho, porque eu vinha da comunidade do Alto José do Pinho, tocando numa banda punk, e estava visitando a exposição de um artista glamoroso do circuito de artes plásticas. Essa minha exposição no Mamam é uma vitória, em todos os sentidos. É uma banda punk do subúrbio de Recife fazer uma exposição no museu de maior relevância do estado, inclusive um dos mais importantes do país. A gente estar inserido ali é uma vitória, da banda e minha como artista plástico.”

SOFIA LUCCHESI, estudante de Jornalismo, estagiária da Continente e fotógrafa.

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Conheça o laboratório de criação do artista no vídeo a seguir:



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