Ensaio

Antônio Fraga em três atos

TEXTO VICTOR HERINGER
ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS

05 de Abril de 2018

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 208 | abril 2018]

I. O MANGUE

O Mangue é uma zona mítica do Rio de Janeiro. Suas fronteiras não são bem-definidas, tanto por causa da aura lendária que o circunda quanto pela mania carioca de arrancar montanhas da paisagem, aterrar águas, cortar o que é cortável, furar o que é furável, canalizar, desapropriar, demolir e erguer tudo de novo. Foi assim com o bota-abaixo dos cortiços para a abertura de bulevares ao estilo parisiense, que deu origem às primeiras favelas e a pelo menos uma obra-prima da literatura brasileira – O cortiço, de Aluísio Azevedo (1890). O mesmo aconteceu com o desmonte dos morros do Castelo e de Santo Antônio para que se construísse o Aterro do Flamengo, uma das joias da arquitetura nacional. É uma tradição nossa (que, aliás, segue vivíssima, como vimos recentemente no frege urbanístico pré-Jogos Olímpicos).

O Rio é uma cidade eternamente incompleta que, ao mesmo tempo, se orgulha em ser um monólito de beleza insuperável. Um poema feito de ruas, praias e pedras que nasceu perfeito, mas que cada prefeito tenta aperfeiçoar um pouquinho mais. O Mangue não escapou a esse paradoxo.

Em linhas gerais, o Mangue histórico situava-se na área ainda hoje denominada “Cidade Nova”, nome que remonta aos tempos de D. João VI. Atualmente, seu ponto de referência mais reconhecível talvez seja a Avenida Presidente Vargas, cujas pistas margeiam o Canal do Mangue – coroação do projeto bem-sucedido de domar o pântano que dominava a região. O Sambódromo, a Praça Onze, os bairros portuários, tudo por ali um dia foi um gigantesco alagadiço.



Durante o século XIX, governantes e magnatas foram aterrando o local, aterrando, aterrando até que se pudesse traçar ruas, construir praças e um campo para exercícios militares (o Campo de Marte, em homenagem ao deus da guerra). À época, o centro da capital tinha como núcleo a aristocrática e buliçosa Rua do Ouvidor, que qualquer leitor de Machado de Assis conhece e que para nós, do inchado século XXI, fica pertinho da Cidade Nova. Mas, para os cidadãos de 200 ou até 100, 50 anos atrás, a distância geográfica e simbólica era enorme.

Os manguezais enterrados viraram de fato o Mangue na década de 1910, quando as vilas de operários, construídas em meados do século XIX para abrigar trabalhadores a serviço do Barão de Mauá, foram tomadas por bordéis. Uma delas, a Vila Mimosa, tornou-se sinônimo de “zona” – no sentido de “puteiro barato” – e existe até hoje, embora em outro lugar, perto da Praça da Bandeira.

A transplantação de estabelecimentos históricos também é tradição carioca. O bar mais antigo do Rio, o Café Lamas (na definição de Manuel Bandeira, “imortal como a primavera”), ficava originalmente no Largo do Machado, mas teve que mudar de endereço nos anos 1970, para a construção do metrô. Hoje, funciona na Rua Marquês de Abrantes, a uns bons metros de distância. Me pergunto: o Lamas seria “menos Lamas” por ter sido refundado noutro solo? Um nome é capaz, por si só, de carregar o peso da história? Será que a alma penada de Manuel ainda vaga no antigo endereço, pedindo cachaça no lugar errado?

Enfim, o caso é que, a partir dos anos 1910, o Mangue se transformou no reduto do baixo meretrício carioca e passou a atrair toda espécie de vida marginalizada, inclusive artistas, poetas e intelectuais. É dessa confluência de miséria, cosmopolitismo improvisado e exploração sexual que advém sua fama. Nos versos de Bandeira, publicados em Libertinagem (1930):

Houve tempo em que a Cidade Nova era
mais subúrbio do que todas as Meritis
da Baixada Pátria amada idolatrada de
empregadinhos de repartições públicas
Gente que vive porque é teimosa

(…)

Era aqui que choramingavam os primeiros
choros dos carnavais cariocas

(…)

E há partidas para o Mangue
Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco
És mulher
És mulher e mais nada

Vinicius de Moraes, um tanto mais empolado, também cantou o Mangue numa balada de 1946, composta, aprecie-se aqui a crocante ironia, em Oxford:

Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?

(…)

Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval

Não foram poucos os homens da intelligentsia brasileira que frequentaram os cabarés e prostíbulos do Mangue. Havia, naquela mistura terrível de sangue, álcool, fluidos corporais, couro de mulher e de pandeiro, cordas vocais e de violão, uma promessa de carnaval, como se lê nos poemas de Bandeira e Vinicius. Era um espaço quase autônomo, com leis próprias, onde o Estado só aparecia para reprimir, o que acendia também uma fagulha de anarquia possível. Mas, sobretudo, havia na Cidade Nova um Brasil “novo” a ser descoberto.

Lasar Segall fez do Mangue um dos temas fundamentais de sua obra. Durante três décadas, dos anos 1920 aos 1950, produziu gravuras, desenhos, óleos, aquarelas e águas-fortes que retratam o ambiente degradado das casas de tolerância, a solidão e o desgosto de seus habitantes e habitués. Um dos exemplos representativos da experiência de Segall é o álbum de desenhos Mangue (1944).

Oswald de Andrade, no demolidor poema-drama O santeiro do Mangue, escreveu, na voz do personagem Estudante Marxista, que “o que importa a uma sociedade organizada é possuir e manter o seu esgoto sexual. A fim de que permaneça pura a instituição do casamento. Para que não seja necessário o divórcio. E vigorar a monogamia e a herança. A burguesia precisa do Mangue”. Isto é, tratava-se de um espaço marginal, como explica Flávia Cera em Arte-Vida-Corpo-Mundo (2012), que devia mesmo estar incluído na ordenação da cidade, “uma vez que esta só funciona a partir dessa exceção fundante que seria o Mangue”.

Di Cavalcanti também explorou o Mangue, com faro de etnógrafo, como um cronista visual. Porém, se achava diferente dos demais bem-pensantes que o frequentavam, como explicou por carta a Mário de Andrade. Em sua opinião, os artistas geralmente “amam a arte como um mito. E eu amo sobretudo a vida, esta vida que vem como os calores sexuais, de baixo para cima”. De todos os canônicos, Di Cavalcanti talvez tenha sido o que mais se afundou na baixeza do Mangue, de onde logo ressurgiu, tomou ar e comprou uma passagem para a Europa.

Há espinhos evidentes na relação dos poetas e artistas com o Mangue: “Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta”, diria Drummond. Do ternurento Bandeira, passando pelo mergulhador Di Cavalcanti, até o irritado Oswald, nenhum dos que mencionei esteve preso àquele turbilhão de miséria. Foram, apesar das boas intenções e das obras produzidas, turistas no inferno – Dante Alighieri num puteiro sudorento do Rio de Janeiro.

Houve um escritor, contudo, cuja vida esteve entrelaçada de tal maneira ao Mangue, que essa relação foi sua glória e sua ruína.

II. O HOMEM
Antônio Fraga nasceu em 1916, no Rio de Janeiro. Morreu em 1993, no município de Queimados, a mais de 50 quilômetros da capital. Nesse meio tempo, foi garimpeiro, lanterninha de cinema, redator da rádio Vera Cruz, vendedor de siri e de perfume, ajudante de cozinha no chique Hotel Glória e um dos autores mais significativos da literatura brasileira.

Antes de completar 18 anos de idade, saiu da casa da família e buscou abrigo em um bordel do Mangue. Diz-se que, após desavença braba com um delegado de polícia, rumou meio fugido para Minas Gerais e Goiás, sobreviveu da mineração, do garimpo e outros biscates. Lá pelos anos 1930, voltou ao Rio e ao Mangue, onde morou por necessidade, como ele mesmo afirma – não por turismo de artista. Viveu entre putas, pobretões, assassinos, sambistas e sifilíticos até o início da década de 1940, quando se mudou para uma pensão localizada numa parte mais respeitável do centro da cidade. Àquela altura, porém, o velho pântano já tinha encharcado sua pena.



Fraga publicou uma única grande obra em vida, a novela Desabrigo, escrita em 1942 e lançada em 1945, pela extinta editora Macunaíma. Um livro composto na língua do Mangue, com suas gírias e sintaxes particulares, sobre “o espaço urbano-marginal, sem ‘academizar’ o falar e o fluxo de pensamento do malandro”, como afirma Maria Célia Barbosa, biógrafa do autor e a maior especialista em seu trabalho.

A nata das artes brasileiras o conhecia bem. No Bar Vermelhinho da Cinelândia, bebeu, conversou e às vezes brigou com Mário Pedrosa, Djanira, Antônio Olinto e Houaiss. Oswald de Andrade, Drummond, Vinicius de Moraes, João Antônio, entre outros nomenzarrões, reconheceram a originalidade esquisita de Desabrigo assim que a obra veio à luz. Durante uns anos, Antônio Fraga foi sensação.

Chegou a ser chamado de “Joyce do Mangue”, alcunha que o escritor renegou em entrevista a Zuenir Ventura (1985): “Imagina. Eu não sou o James Joyce. (Ele) foi um rapaz educado em igreja católica e nós não temos nada em comum. O fato de eu usar uma linguagem de modo inusitado, uma porrada de caras fizeram”.

A trama de Desabrigo acompanha três personagens principais, cujas iniciais vêm sempre em minúscula: (1) evêmero, escritor e alter ego de Fraga, embora a identidade entre um e outro seja ludicamente embaralhada ao longo da narrativa; (2) cobrinha, sambista lesado em seus direitos autorais e canibal de si mesmo; (3) desabrigo, que dá nome ao livro e se embebeda metaliterariamente com evêmero, seu autor. Diversas figuras os rodeiam, prostitutas e literatos, cafetinas e malandros, batedores de carteira e postes de iluminação pública.

O cenário é o Rio de Janeiro dos anos 1930 e 1940. No entanto, como diz Andrea Hossne (no ensaio À margem: notas sobre Desabrigo, de Antônio Fraga): “Não é a cidade como um todo que aparece na narrativa, mas uma certa parte dela: o mangue, a prostituta, o sujeito que vive de expedientes, não raro interpelados pela instância do poder público que os alcança – a polícia”. Ou seja, as margens.

A novela é estruturada em capítulos curtos e rascantes, parentes da prosa de Oswald ou do segundo Machado, entremeados por seções intituladas Ponto de vista, nas quais se põe em questão a forma da própria obra – considerações sobre o uso de gírias, sobre coloquialidade, autenticidade e beletrismo, com citações de Campos de Carvalho, Pirandello, Henri Bauche (nas línguas originais) etc.

Ao final, há um glossário da obscura língua do Mangue. Hoje, ele simplesmente nos ajuda a entender o dialeto malandro do século passado, no qual a novela foi escrita. Mas, à época, foi uma navalhada bem-calculada, mas não fatal, no público leitor (em geral, mais abastado e distante da zona do baixo meretrício), sobretudo naqueles que papagueavam o credo modernista de que o povo “é que fala gostoso o português do Brasil”. Fraga parecia dizer: cantem o quanto quiserem a “língua errada, língua certa” do povo, essa entidade amorfa inventada por intelectuais, mas o povo mesmo é incompreensível para vocês sem um dicionário.

Trata-se, portanto, de uma obra filha da tradição, sobretudo do “modernismo heroico” de 1922 e do Oitocentos carioca (não só o já mencionado Machado como Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto), mas também à frente de seu tempo, prefigurando diversas estratégias que as literaturas pós-modernas explorariam ao ponto da exaustão: o apelo feroz à metalinguagem, o perspectivismo, o desrespeito às fronteiras de gêneros, entre outras.

Mesmo o fato de ser ambientada, narrativa e linguisticamente, no Mangue a coloca em sintonia com a preocupação contemporânea em escutar a voz dos marginalizados. No caso de Desabrigo, é todo um espaço urbano que ganha corpo. A cidade das putas, dos biscateiros e da opressão policial foi ignorada pela cultura maiúscula. Quando os artistas escafandristas que a frequentavam voltaram olhos para ela, romantizaram, falsearam ou utilizaram-na para avançar suas teses políticas e estéticas. Por mais geniais que sejam as obras advindas desse contato, Bandeira, Oswald, Segall e companhia dão voz ao Mangue – isto é, o Mangue fala através de sua arte, que acaba assumindo a posição de mediadora. Desabrigo, por outro lado, não dá voz: quer ser a voz. Há um abismo entre os dois.

Esse é o projeto mais radical e a ambição máxima de todo ficcionista: ser. Ser, por meio da escrita, a voz de algo, o corpo, a vida de algo. Desabrigo é obra-prima porque responde justamente a essa ambição. Ainda nas palavras de Andrea Hossne: “Se a linguagem é foco importante de sua obra, só o é na medida em que implica ser a voz do brasileiro que, em outros textos, fazia apenas figuração”.

Um trecho da novela:

Vocês beletristas são gozadíssimos! Olham tudo na vida como motivo pra um conto Não suportam o ambiente – como é que é mesmo o palavrão? – antinatural em que vivem essas criaturas e querem encarcerá-los num mundo de papel

A tragédia e o alento do ficcionista, contudo, residem na impossibilidade de ser completamente por meio da escrita. O cárcere do papel é a sina de todos e também o motivo pelo qual seguimos escrevendo. O chamado a querer ser é irresistível, mas a empreitada, óbvio, está sempre fadada ao fracasso. Reconhecemos a obra-prima, como disse, pelo modo de responder a esse chamado. Da mesma maneira, sabemos estar diante de um texto descartável, quando percebemos que seu autor sequer o escutou. Aqui, a máxima de Beckett resume toda uma teoria da narrativa: “Falhe, falhe de novo, falhe melhor”. Antônio Fraga falhou como poucos.

Fraga, pessoa física, poderia ser visto como representante do Mangue (papel que, imagino, ele negaria com indignação), Desabrigo não. Sua novela quer ser o Mangue, e a ela é permitido, mesmo que seu autor tivesse nascido e passado a vida inteira no Cairo, pois é literatura e não homem. Da mesma maneira, um prosador que nasceu e morreu no Cairo poderia muito bem nunca se sair com um romance que aspirasse a ser o Cairo, por mais que jurasse de pés juntos ser um cairota da gema. Os nós entre a obra e seu autor não são tão simples de destrinchar.

A ficção (se vale a pena e o ridículo) é feita do desejo de ser, de ir além da mera representação, transgredir e transcender a realidade, mesmo quando busca o mais estrito “realismo”. O delicioso problema é que só dispomos de ferramentas brutas – o português brasileiro, o dialeto do Mangue, o romance, o enjambement, o travessão de diálogo etc. – para burilar vapores.

As obras que se contentam com a representação permanecem, se tiverem sorte (em especial se o autor foi rico, político importante ou teve amigos influentes), como mera curiosidade histórica e alimento para acadêmicos sonolentos e desnutridos. A maioria é triturada no moinho do calendário.

Porém, é preciso esclarecer que o clichê da “obra atemporal” não implica o apagamento da história. É inegável que o querer-ser da novela de Fraga está ligado ao século XX, ao Mangue, ao Brasil, ao comércio de ideias e à vida marginal de sua época. Reduzir a vontade de transcendência ficcional a um punhado de noções mal-ajambradas sobre a essência da alma humana (o amor, a busca pelo poder, a empatia etc.) depaupera o próprio conceito de ficção. Mas é igualmente carola tratá-la como documento de identidade de seu autor, comprovante de residência e certidão de nada-consta, fruto puro e suculento de um corpo humano respondendo às circunstâncias políticas, sociais, éticas e estéticas de seu tempo. Ficção é outra coisa. Aliás, a ficção tem essa mania teimosa de sempre querer ser outra coisa.

III. O ESQUECIMENTO
Antônio Fraga morreu em 1993, na cidade de Queimados, para onde se mudara havia muitos anos. O Mangue como o conhecera tinha desaparecido há tempos – e o prestígio de sua obra com ele, ao que tudo indicava.

Até mesmo o nome do município que escolheu para viver seus últimos dias parecia condizente: “Queimados”, reza a lenda, foi assim batizada porque lá havia um leprosário onde o costume era empilhar pacientes mortos e incinerá-los de uma só vez, para economizar fogo. Outra versão afirma que o nome se refere a escravos fugidos das fazendas da região, que eram assassinados e queimados por seus senhores. Ou seja, em qualquer das hipóteses, trata-se de um batismo que evoca a queima de arquivo, a vontade bruta de apagar totalmente o elemento marginal.

Como tudo que envolve a vida e a obra de Fraga, porém, seu esquecimento não é tão fácil de definir. Para começo de conversa, o autor não foi “se esconder” longe da capital. Jamais quis virar lenda reclusa. Durante sua estada em Queimados, publicou em jornais locais, incentivou autores iniciantes, criou grupos de leitura, participou da vida cultural da cidade a ponto de atualmente dar nome a um espaço cultural da Prefeitura, que inclusive comemorou seu centenário, em 2016.

Também fez pouco-caso da pecha de “autor maldito”, hoje tão cobiçada por alguns (mesmo que vivam de renda) como medalhinha de honra. Na entrevista de 1985 a Zuenir Ventura, disse: “Eles é que dizem que sou. (…) Tomara que continuem a me considerar. Eu não sou de patota, não sou de quadrilha”. Resposta, diriam alguns, que só um verdadeiro maldito poderia dar.

Convenhamos: a categoria “autor maldito” é um desastre. Quando o próprio escritor se define assim, mal consegue esconder que engoliu de virada um coquetel de autocomiseração e orgulho adolescente. Se um jornalista ou acadêmico tenta encaixar o artista nessa prateleira, a única resposta decente é a de Fraga – ou uma versão dela. Quando é uma casa editorial a responsável por agrupar autores sob esse guarda-chuva, certamente está mirando no oposto da maldição: quer vender.



A explicação não é complicada. Voltamos a Andrea Hossne: “a equação Exclusão e Mercado se conjuga não apenas como exclusão do mercado, mas também como mercado da exclusão, ou seja, quando a literatura marginal é absorvida pela indústria cultural e se torna nicho de marketing”. Em um mercado que se adapta a qualquer coisa para lucrar, o maldito também pode ser oferecido como objeto de desejo. Seu intento não é abolir as fronteiras, mas reforçá-las de modo a apresentar o marginal como, segundo o dialeto consumista, “algo diferenciado”.

A análise é impecável, mas dá conta somente em parte do caso de Fraga. Hoje, Desabrigo pode ser vendida como “literatura marginal”, mas o rótulo também poderia ser aplicado a Grande sertão: veredas. A diferença, claro, é que Guimarães Rosa foi diplomata e Fraga, vendedor de siri. Mas nem essa distinção é o suficiente para dar o caso por encerrado. Nada é simples com Fraga.

Desabrigo foi reeditado diversas vezes: em 1978, 1990, 1999 e mais recentemente em 2008, quando Maria Célia Barbosa também publicou sua biografia (Antônio Fraga, personagem de si mesmo). Nos anos 1970, já se bradava nos jornais que o autor sofreu décadas de ingratidão. Em 1985, uma matéria de Mauricio Stycer no Jornal do Brasil, intitulada A solidão de um grande escritor, levou o então presidente Sarney a oferecer um emprego a Fraga. Foi a primeira vez que assinaram sua carteira de trabalho, aos 69 anos de idade.

Stycer não foi o único. Ao longo das décadas, vários jornalistas peregrinaram a Queimados para entrevistá-lo, quase sempre reforçando o esquecimento em que caíra. Esquecimento curioso, no mínimo.

De tempos em tempos, vemos a obra de Antônio Fraga ressurgir impávida, pela mão de indivíduos encantados – Maria Célia Barbosa, Mauricio Stycer, Maria Amélia Mello, Zuenir Ventura, os pesquisadores que vasculham o arquivo do escritor, guardado na Casa de Rui Barbosa, no Rio… Sem eles, este ensaio não existiria. Mas, por conhecer seus mecanismos, não deixo de achar o fenômeno impressionante.

Por que, como tantos, Fraga não sucumbiu ao breu da memória? O esquecimento é, de todas as coisas, a mais virulenta e poderosa. Como Desabrigo é capaz de enfrentá-lo, às gargalhadas e xingamentos? Seria fácil e apropriado qualificar a obra como lendária: lenda é aquilo que, no embate com o tempo, sai ganhando. Mas prefiro uma explicação mais terrena. Por mais que o tempo tente, a obra é boa o suficiente para lhe fazer frente. Como os personagens a que dá vida, tem o mundo contra si, mas permanece. Sobrevive porque é teimosa.

VICTOR HERINGER, escritor, poeta, ensaísta falecido em março deste ano.
LUÍSA VASCONCELOS, estudante de Design e ilustradora. 

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EXTRA:
Leia o primeiro capítulo da novela Desabrigo, pela editora José Olympio.

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