Edição #176

Agosto 15

Nesta edição

Calabar

Tu quoque, Brute, fi li mi! Dizem que a frase atribuída a Júlio César nos idos de março de 44 a.C. teria sido, na verdade, inventada por William Shakespeare. Atacado a punhaladas desferidas por dezenas de senadores na república de Roma, que ele ajudou a fundar, César teria exclamado, não em latim e sim em grego, “até tu, meu menino?” ao constatar que entre os agressores estava seu protegido e fi lho adotivo. Sua morte é, até hoje, marco na história da traição política; ele virou um mártir e Brutus, por sua vez, foi eternizado como o vil traidor.

É desse complexo jogo entre heróis e desleais que se constrói a reportagem de capa desta Continente. A misteriosa fi gura de Domingos Fernandes Calabar surge como mote na abordagem do tema. No século 17, quando da invasão holandesa, o mestiço Calabar lutou ao lado do governador da capitania de Pernambuco, Matias de Albuquerque, tendo sido ferido em 1632 ao lado dos portugueses em confronto contra os inimigos dos Países Baixos. Meses depois, ressurgiu combatendo para os fl amengos. A defecção surpreendeu os lusos e deixou os neerlandeses em vantagem, pois ele era um exímio conhecedor do litoral e do interior pernambucanos. Em 1635, apanhado por tropas lusas na sua cidade natal – Porto Calvo (foto acima) – foi garroteado e esquartejado; sua cabeça fi cou exposta em uma treliça por três dias.

Muitos outros praticavam o escambo de informações e, pior, o tráfi co de infl uência, mantendo relações econômicas e comerciais com os neerlandeses, a exemplo de João Fernandes Vieira. Este, no entanto, é lembrado apenas como um dos heróis da Guerra da Restauração, que expulsou o inimigo batavo em 1654, e não como um dos maiores fornecedores de alimento para as tropas da Companhia das Índias Ocidentais. Ganhou dois livros que mais se assemelham a hagiografi as, dados os encômios e feitos a ele atribuídos. Já Calabar vaga, até hoje, como o “patriarca dos traidores”, como defi ne o historiador Ronaldo Vainfas, um dos entrevistados desta edição.

Na atualidade, não é diferente e seguem surgindo nomes como o australiano Julian Assange e do norte-americano Edward Snowden sob os quais também recai o manto da traição. Ambos simbolizam, hoje, a dicotomia entre o heroísmo dos seus feitos e a fama de traidores. Para a doutora em Filosofi a Katarina Peixoto, no século 21, as rupturas no campo político devem ser reconhecidas como legítimas e não devem ser vistas como traição, mas sim como atos de dissidência. Algo essencial para a instauração de novos tempos.

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