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Os meses

TEXTO José Cláudio

01 de Agosto de 2015

'Noite de São João', óleo sobre tela. 34 x 44 cm, 1946

'Noite de São João', óleo sobre tela. 34 x 44 cm, 1946

Imagem Reprodução

Outubro é o outubro de 1917, da Revolução Russa. Quando eu estava na Bélgica, por ocasião da Expo Bruxelas 1958, aquela do átomo gigante que ficou sendo o símbolo da cidade, o general Voroshílov perguntou em russo a uma máquina que entendia, ouvindo, não sei quantas línguas, qual o maior acontecimento mundial do ano de 1917, a máquina respondeu em cima da bucha: a Revolução Russa. Tem também a controvertida descoberta da América em 1492, havendo quem diga que Colombo já vinha com o mapa na mão, inclusive sabendo da existência desta terra mais ao sul hoje chamada Brasil à qual chegaria Cabral no dia 22 de abril de 1500, novas controvérsias, muitos considerando nosso descobridor o espanhol Vicente Pinzón algum tempo antes, tocando primeiro aqui neste lugar futuro Pernambuco, no Cabo Santo Agostinho, de onde meu pai, Amaro Joaquim da Silva, era natural, nascido no Engenho Taveira, no último ano do século 19, 1899. 21 de abril tem aqui em casa duas comemorações: o motivo do feriado, Dia de Tiradentes, e principalmente a data do nascimento em 1961 do nosso primeiro filho Cláudio Manuel, por coincidência nome do poeta inconfidente: minha mulher queria botar meu nome e eu queria botar o nome de um tio meu por quem tinha grande admiração, Manoel de Albuquerque Pinto, irmão de minha mãe, Maria Ramos da Silva, em solteira Maria Ramos, por ter nascido Domingo de Ramos, de Albuquerque Pinto, Ramira, como era conhecida; aliás meu nome devia ser José Cláudio de Albuquerque Teixeira Pinto da Silva, porque meu avô materno era Cândido Miguel Teixeira Pinto, casado com Joana Graciana de Albuquerque Pinto, Mãe Joquinha; papai resolveu acabar com todas essas nobrezas e cravar “da Silva”. Eu ainda tenho mais uma comemoração, minha, particular, no 21 de abril: data da fundação de Roma, cidade com que tive alguma intimidade, não sei, alguma afinidade, um dos meus princípios de mundo, como a Bahia é outro, e São Paulo, além de Ipojuca e Recife. Foi o pintor Giuseppe Baccaro quem me informou ser essa a data da fundação de Roma quando lhe contei que quebrei um dente comendo cereja, que não sabia ter caroço tão duro, justamente na Via Ventuno Aprile: com 25 anos nunca tinha visto uma cereja in natura.

Maio, mês de Maria, Nossa Senhora, aqui em casa se comemora o nascimento de outra Maria, nossa filha Maria Júlia, em 22 de maio, dois anos, um mês e um dia depois do de Cláudio Manuel, Mané Tatu como adotou nos quadros: Maria em homenagem a minha mãe, Maria Ramos, e Júlia à mãe de Leonice minha mulher, Júlia Leopoldina Morais, vai a informação para futuros estudos sociológicos. Em Ipojuca cada dia de maio era patrocinado por um comerciante, ou outras pessoas gradas, no Convento, havendo uma certa disputa para ver quem fazia a noite mais bonita enfeitando o altar de Nossa Senhora, e soltando mais fogos. A noite de meu pai era uma delas. Tinha a noite de Seu Silva, a noite de Seu Barreto, a noite de Seu Otávio, a noite de Seu Zé Ramos. Há quanto tempo, Deda, há quanto tempo, hein Breno? Seu Silva, Cristóvão José da Silva, era dono dos engenhos Jitaí e Montevidéu; meu pai era Amaro Silva, comerciante, embora Seu Silva também fosse: parece que era comum senhores-de-engenho, com a chegada das usinas e decadência dos engenhos, tornarem-se comerciantes na “rua”.

Junho é São João. No vocabulário de minha avó Mãe Joquinha não existiam as palavras junho nem julho, eram São João e Sant’Ana. São João começava na loja com a chegada dos fogos trazidos do distrito Nossa Senhora do Ó por um João cujo segundo nome não consigo lembrar, que tinha as mãos aleijadas, ou uma das mãos aleijada, pela explosão de uma bomba, alguns dedos não dobravam e, a última falange, onde tem a unha, fazendo ângulo reto com o resto do dedo. O outro João fogueteiro era João de Ana, de Caruaru, ou, quem sabe, este era o do Ó. De Caruaru vinham os foguetes e bombas-reais, cujas aspas eu usava para fazer arapuca para pegar lambu dentro das canas: nunca peguei um. Do Ó vinha peido-de-velha e bomba de soltar no chão, diabinho, mosquitinho e outros, talvez busca-pé, não sei se estrelinha e traque-de-massa ou de-sala. Muita coisa papai vinha buscar no Recife, vulcão, umas bengalas, bichas-de-rodeio. Os matutos procuravam bomba-estravaliana, já proibida naquela época, que estourava jogando na parede. Era de 1930. Fogueiras e comidas, as mesmas de hoje. As fogueiras, maiores e mais bem feitas, cada um que fizesse maior. No Engenho São Paulo, perto de Camela, onde eu e minha irmã mais velha Nena íamos passar férias de São João, em casa de Seu José Dias, casado com minha tia Edith, irmã de minha mãe, ele, fiscal do engenho, mandava fincar trilhos em vez dos quatro paus verticais, com bem quatro ou cinco metros de altura e lenha até o topo, construção imensa a nossos olhos infantis, e logo os dois troncos bem grossos de madeira dura servindo de travesseiros, ou travesseiras ou travessas, nem me lembro mais. Uma vez vieram bacamarteiros de Camela, dando grandes tiros para apagá-la. Dizia-se “tomar a fogueira”. Nessa época eram três festas, pois Santo Antônio e São Pedro não ficavam atrás. Havia quem andasse descalço por cima das brasas: ver mesmo nunca vi. Acho que chamavam “saltar fogueira”. Como as cidades não tinham calçamento, isso facilitava a construção das fogueiras: no calçamento não dá para fincar os paus, e as fogueiras logo desmoronam. Na minha mais remota infância não lembro de som. Acho que só tinha mesmo a voz humana e dos animais, os tiros dos fogos e o som dos sinos do Convento. Motor de carro era raro. Rádio veio depois. Hoje parece incrível um mundo sem ameaça de “som”. Talvez tenha ficado algum pedaço dele dentro de mim.

Depois falo dos outros meses. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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