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Grafite: O que dizem os muros de Lisboa

Feita por artistas renomados ou desconhecidos, incentivadas ou não pelo poder público, a arte urbana da capital portuguesa, que iniciou com a Revolução dos Cravos, retrata o espírito da cidade

TEXTO RICARDO VIEL
FOTOS TÉO PITELLA

01 de Agosto de 2015

A GAU trouxe estrangeiros como o espanhol Okuda, que recobriu um muro em Marvila

A GAU trouxe estrangeiros como o espanhol Okuda, que recobriu um muro em Marvila

Foto Téo Pitella

Houve um tempo, não muito distante, em que escrever ou desenhar num muro em Lisboa podia custar a vida, ou, pelo menos, uma sessão de tortura. Hoje, enormes paredes são pintadas na capital portuguesa com a ajuda do poder público, que fecha o trânsito, cede ou consegue o espaço, empresta escadas e gruas, além de fotografar e filmar o resultado do trabalho.

Atualmente, Lisboa é apontada como um dos principais centros de arte urbana do mundo, e há vários fatores que explicam isso. Um deles é a existência de um órgão da Câmara Municipal que tem como objetivo conciliar a preservação do patrimônio comum com o incentivo ao grafite e a outras expressões artísticas urbanas. A criação da GAU (Galeria de Arte Urbana) em 2008 significou uma mudança de política da administração pública em relação à street art. Ao mesmo tempo em que se apertou o cerco ao que a prefeitura considera vandalismo, criou-se um órgão, dentro do Departamento de Patrimônio Cultural, para fomentar as pinturas na rua. O Bairro Alto, conhecido por seus bares e discotecas, foi a primeira área da cidade a ser “limpa” e, simultaneamente, ter muros destinados às pinturas, numa tentativa de dar alguma ordem ao caos – muros, portas de casas e estabelecimentos, monumentos, paredes de azulejo, nada ficava imune ao spray. “O pessoal da manutenção não dava conta de limpar a cidade. Pintavam uma fonte e, uma semana depois, tinham que pintar depois. Hoje, quase todo esse dinheiro que era gasto foi revertido para pagar cachê aos artistas e divulgar os trabalhos”, conta a antropóloga Inês Machado, 36, funcionária da GAU desde que o órgão foi criado.

O começo não foi fácil. Tiveram que contornar a desconfiança dos grafiteiros, dos moradores e dos funcionários mais antigos da prefeitura. “Alguns aqui nos diziam: então agora a Câmara apoia os rabiscos?”, recorda. “Não seguimos nenhum modelo, até porque penso que não havia nenhum modelo a ser seguido. E a cada momento paramos e fazemos uma avaliação se vamos bem ou não. Fomos afinando a estratégia com os artistas”, explica a antropóloga. Criada num dos bairros da Grande Lisboa, onde o grafite surgiu com força no começo dos anos 1990, Inês tirou proveito dessa proximidade com artistas que conhece desde a adolescência para tentar convencê-los de que o poder estatal já não os via como uma ameaça. “A nossa premissa é, por um lado, preservar o patrimônio e, do outro, aceitar a arte urbana como uma expressão cultural que está no mesmo patamar, por exemplo, do azulejo português.”


O bairro de Santa Apolónia recebeu um mural pintado pelo coletivo Pampero

Passados sete anos da sua criação, a Galeria de Arte Urbana é tida com referência dentro e fora de Portugal. É matéria de estudo em centros universitários e constantemente convidada para expor sua experiência em outros países – recentemente, uma representante do órgão esteve em Fortaleza num encontro patrocinado pelo governo e prefeitura locais. No início do projeto, 80% das obras eram feitas com dinheiro público. Hoje, a conta se inverteu: de cada cinco muros pintados, quatro são patrocinados por empresas e instituições públicas e privadas que procuram a GAU porque querem valorizar seu patrimônio com pinturas. Antes, era o órgão que ia em busca de paredes. Agora, elas são muitas vezes oferecidas.

Há basicamente dois modelos que a instituição adota. O primeiro é a abertura de espaços na cidade para a expressão artística, que podem ser muros, caminhões da limpeza, containers de lixo, pilares das pontes etc. Qualquer artista pode participar, desde que respeite com a sua arte premissas básicas como os direitos humanos e não use o espaço para fazer publicidade de produtos. Às vezes, há um tema comum a ser desenvolvido; noutras, a temática é livre. Os artistas recebem um cachê que, embora não seja alto, é suficiente para cobrir gastos com material e sobrar algo.

O outro braço de ação são os projetos maiores, que envolvem nomes internacionais. Muitas vezes essas iniciativas são possíveis com a ajuda de parceiros, como empresas, fundações ou galerias. A Underdogs, plataforma criada há dois anos pelo renomado artista português Alexandre Farto (Vhils) e pela galerista francesa Pauline Foessel, é uma das principais parceiras da GAU. Desde 2013, eles já trouxeram 18 artistas para intervirem em muros em Lisboa. Os gastos correm a cargo da galeria, mas a ajuda da Câmara é essencial, diz Pauline. “Aqui, é tudo muito menos burocrático que nos outros lugares que conheço. Em Paris, demora em média seis meses para conseguir uma parede para pintar; em Lisboa é muito mais rápido.” O processo costuma ser rápido: a galeria entra em contato, diz as dimensões da parede de que precisa, a zona da cidade e, passados alguns dias, recebe algumas propostas. “Nunca houve nenhum tipo de censura no nosso trabalho. Eles nunca pediram para saber quem ia pintar ou que tipo de trabalho iria ser feito”, explica a francesa que, antes de Lisboa, passou uma temporada em Xangai. A galeria recebe algum apoio financeiro da GAU, mas a maior receita que tem é com a venda de peças dos artistas que agencia e também nos serviços que fazem para empresas. Cada vez é mais comum que marcas queiram associar o seu nome à arte urbana. “Nós escutamos todas as propostas e logo avaliamos se é interessante ou não”, resume.

Se os primeiros meses de existência da GAU foram para afinar estratégias, apresentar a artistas e população a plataforma criada, e conseguir apoios privados, a partir de 2010 a política incluiu a internacionalização através do projeto Cronos – uma proposta que partiu de Alexandre Farto (Vhils). O primeiro passo além das fronteiras foi dado com a ajuda dos brasileiros OSGEMEOS, que, em conjunto com o italiano BLU, pintaram a enorme fachada de um edifício de quatro andares numa das avenidas mais importantes da cidade – a peça, que ainda pode ser vista, foi considerada por publicações do ramo uma das mais importantes de arte urbana no mundo, feitas em 2010. “Foi a primeira vez que artistas de renome internacional vieram pintar em Lisboa, financiados pela prefeitura. É o primeiro projeto grande que colocamos em funcionamento e é muito chamativo porque está numa área muito vista”, explica Inês Machado.


Parade pintada pelos brasileiros OSGEMEOS e pelo italiano BLU na Avenida Fontes Pereira de Meio

Aqueles dias foram decisivos para impulsionar a street art na capital. OSGEMEOS estavam na cidade para inaugurar uma exposição num museu de arte moderna, a primeira que um museu público português dedicava a artistas urbanos. E, de repente, a cidade acorda com um mural gigante pintado por eles e por BLU. As portas haviam sido abertas e o que viria nos meses seguintes era um furacão. Naquele ano, 12 artistas de várias partes do mundo deixaram suas marcas na cidade. E o fluxo nunca mais parou. Hoje, é difícil encontrar um artista urbano de ponta que não tenha pintado pelo menos uma parede na capital de Portugal. Todos os trabalhos, sejam de artistas anônimos ou renomados, são fotografados (e muitas vezes a produção da peça é filmada) e arquivados no órgão da Câmara, que edita uma publicação periódica que divulga as novas obras espalhadas pela cidade – algumas pinturas não autorizadas também são catalogadas.

É verdade que nem todos os grafiteiros estão de acordo com a política oficial aplicada, mas há um respeito em relação às obras “patrocinadas” pelo órgão. Uma das explicações para isso é que muitos dos que aderiram ao projeto são artistas respeitados no universo português. Além disso, existem aqueles que continuam fazendo suas pinturas em muros não autorizados e, ao mesmo tempo, participam dos projetos da Câmara. “A arte urbana encerra, em si, várias contradições, e a política da GAU não é de domesticar ninguém, o grafite sempre foi indesejável”, diz Inês Machado.

BOOM LISBOETA
Lisboa está na moda. Essa frase é escutada com muita frequência por estes lados, a cada vez que um jornal/revista internacional dá destaque à capital. Os números comprovam. Nenhuma cidade europeia teve maior aumento de visitantes nos últimos anos. Em 2015, são esperados mais de 3,5 milhões de visitantes na cidade – quase cinco vezes a sua população. O turismo representa 5,8% do PIB de Portugal, o dobro da média mundial e bastante acima da média europeia, que é de 3,1%. As empresas já identificaram que há um público disposto a pagar para conhecer o museu ao ar livre que é Lisboa, e têm investido em promover essa atração. Há pouco mais de um ano, Filomena e Pedro Farinha criaram uma agência para oferecer visitas guiadas. Meses depois de começarem as atividades, foram contratados para fazer o translado de um grupo que vinha a Lisboa para participar de um congresso universitário sobre arte urbana. Ali encontraram uma oportunidade: e se criassem um tour pela cidade para mostrar as paredes? O que começou como algo provisório tornou-se permanente.

Como guia, escolheram Vasco Rodrigues que, embora nunca tenha pintado um muro, praticamente assistiu ao nascimento do grafite em Lisboa. “Desde a primeira vez que vi um grafite, eu fiquei fascinado. Voltei lá e fiz uma foto. E depois comecei a fotografar todas as paredes com peças”. Ainda adolescente, um dia criou coragem e foi conversar com os que pintavam. Tornou-se uma espécie de assessor de imprensa informal dos artistas de rua. Trabalha hoje como agente cultural para algumas prefeituras, promove encontros e exposições, e também faz o passeio temático. “Eu conheço todos os artistas. Só de ver uma pintura, eu sei dizer, com bastante grau de certeza, de quem é”, diz o guia. O tour pela cidade varia conforme o público: o que conhece, o que quer ver e o tempo que tem. A maioria é de estrangeiros. “Muitos são fotógrafos, ou estudiosos, ou artistas. Os brasileiros ainda são raridades”, conta Filomena. “Quando ofereço esse passeio, noto uma resistência. Ainda não convenci os brasileiros a verem arte urbana”, lamenta a empresária nascida em Angola – quando ainda era colônia portuguesa – e radicada no Brasil.


Pintura do português Nada, na Quinta do Mocho, região que abriga
imigrantes, antes só conhecida pelos casos de violência

Além da questão estética, uma das boas surpresas do tour – que, em geral, dura cerca de 4 horas e custa 35 euros por pessoa – é a possibilidade de se conhecer uma outra Lisboa, a que não está no raio turístico. Um desses lugares que dificilmente um visitante conheceria é a Quinta do Mocho, um bairro afastado do centro que só aparecia nos jornais quando havia um morto. A maioria dos moradores é de imigrantes de ex-colônias africanas. Ali, não há opções de lazer. Em 2013, a administração local colocou em marcha um projeto (aprovado em assembleia pelos moradores) para que artistas portugueses pintassem os muros dos edifícios de moradias populares – todos de três andares e igualmente sem vida. Já são dezenas de pinturas que enfeitam o lugar. “Acho que é um espelho para o bairro. Agora vêm pessoas, até estrangeiros, para fotografar. Dá uma nova visão ao que é isso. Havia um estigma e muita gente não entrava aqui, pensavam que era perigoso”, conta o cabo-verdiano Adelino Conceição, 52, morador da Quinta do Mocho desde que era uma ocupação irregular. “Essas pessoas sentem mais orgulho de onde vivem porque agora são visitadas. Por outro lado, há uma maior preocupação das autoridades em cuidar do espaço”, diz o guia Vasco Rodrigues. Alguns dos moradores participam de programas para serem guias ocasionais de visitantes. Aprendem sobre os artistas, que também aprenderam com eles – durante os quatro ou cinco dias que precisam para pintar as paredes, residem no bairro e convivem com os moradores.

MUROS DE ONTEM
Em abril de 1974, após a Revolução dos Cravos que derrubou uma ditadura de quase 50 anos, pela cidade se espalharam escritos de esperança e de desabafo. Estava ali o germe, ou a pré-história da arte urbana de Lisboa. Depois, no final dos anos 1980, apareceu o grafite. Influenciados pela “moda MTV”, jovens dos subúrbios que escutavam hip-hop e andavam de skate encontraram nas marcas das paredes uma maneira de fazer-se ver. Muros que um dia trouxeram escritos lemas como “Rumo à Liberdade”, “Educação”, “Reforma Agrária”, “Fascismo Nunca Mais” e agora estão pintados por consagrados artistas, portugueses e estrangeiros.

“Há um histórico em Lisboa de pinturas em muros que vem da Revolução dos Cravos, era outro contexto, eram sobretudo mensagens políticas, mas eu penso que aqui há uma cultura de usar as paredes para exprimir uma ideia”, diz a galerista da Underdogs. Para a francesa, essa abertura dos portugueses para esse tipo de expressão artística, somadas à criação da GAU e ao fato de a cidade estar na moda, explicam o boom da arte urbana lisboeta. “Está na moda, mas nós não nos preocupamos com isso, estamos aqui para fazer algo mais. Acreditamos que a arte tem que falar para todos e que o artista tem um poder grande nas mãos.”

Incentivada pelo poder público ou não. Feita por artistas renomados ou desconhecidos. Na periferia, longe do olhar dos turistas, ou nas principais avenidas da cidade, a arte urbana cada vez mais dá colorido a Lisboa, e atrai olhares. Ao contrário dos grandes monumentos, como o Castelo de São Jorge, a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos, que embelezam a urbe há séculos, essas novas pinturas surgem e desaparecem rapidamente. Não deixa de ser o retrato de uma época: acelerada, globalizada e fragmentada. Se quer conhecer o passado de Lisboa, visite os museus. Se quer conhecer o presente e imaginar o futuro, ande pelas ruas, sempre atento aos muros. 

RICARDO VIEL, jornalista, radicado em Portugal, colabora com diversas publicações brasileiras.

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