“Quando, aos onze anos, conheci a música dos Beatles, vi que era aquilo o que faltava na minha vida”, diz Marco Antonio, sentado num pufe, no meio da sala de seu apartamento, num condomínio de classe média no bairro de Santana, zona norte de São Paulo, ao rememorar o compacto com She loves you, recebido de presente de um amigo do pai que havia viajado à Inglaterra. Seu apartamento é todo decorado com motivos relacionados aos Beatles. Na sala, um quadro na parede lembra o submarino amarelo da famosa canção. Dos três quartos, dois estão abarrotados com a coleção. O quarto de empregada e um dos banheiros também. Ao mostrar o acervo, desculpa-se pela “bagunça” e pede para não fotografar as pilhas de LPs, CDs e livros, muitos colocados no chão.
Guarda com carinho as réplicas de instrumentos usados pelos Beatles, como dois baixos da marca Höfner – o modelo “violino” sempre associado à imagem de Paul McCartney, um deles autografado pelo próprio; duas guitarras de edição limitada, iguais às que George Harrison usava na banda Traveling Wilburys; dois violões Epiphone lançados com a assinatura de John Lennon; e baquetas de bateria personalizadas, especialmente para o uso de Ringo Starr.
A sua coleção é impressionante, mas nem ele sabe exatamente o que tem. Os números a seguir são apenas estimativas do colecionador, que incluem também os lançamentos solo dos quatro músicos pós-1970, quando a banda se desfez: 5 mil LPs (continua comprando muitos vinis todos os anos), 2 mil compactos, 3.500 CDs, fitas-cassete (duas mil horas de som), 4 mil revistas, jornais (uma pilha de mais de quatro metros), centenas de livros. Além de imagens em movimento em diversos formatos: películas em super-8, fitas VHS, laser discs e DVDs.
O fã conheceu John Lennon em 10 de outubro de 1980, dois meses antes deste ser assassinado. Fotos: Reprodução
Na pré-adolescência, quando conheceu a banda, Marco Antonio não tinha dinheiro para comprar revistas nem discos. Aproveitava as idas ao consultório do dentista para, discretamente, destacar e levar consigo as páginas das publicações que traziam fotos da banda. A coleção começou quando, a partir de uma lista de endereços publicada pela revista inglesa The Beatles book, passou a se corresponder com fãs de outros países e a receber, pelo correio, pequenos itens como revistas e recortes, que guarda até hoje. Lia as cartas dos amigos estrangeiros com ajuda de um dicionário e dos professores de inglês. Com a economia do dinheiro que lhe era dado pela mãe para comprar doces no recreio da escola, fez sua primeira aquisição: o compacto contendo as canções A hard day’s night e I should have known better. Em 1965, esperou três noites na rua, numa fila na frente do Cinema Windsor, no centro de São Paulo, para ver a estreia de Help!. Na época, assistiu ao filme 64 vezes.
COM LENNON
A fama de Mallagoli começou mesmo a se espalhar em 1980, quando o assassinato de John Lennon chocou o mundo. Desde o ano anterior, ele já era dono da Revolution, uma lojinha na Avenida Faria Lima, em São Paulo. Era um misto de fã-clube, loja de discos e bar. Vendia discos da banda, alguns raros no Brasil, camisetas e lembranças em geral. Havia estado com Lennon em Nova York no dia 10 de outubro de 1980 (um dia depois do músico completar 40 anos). As fotos comprovam e a circunstância arrepia os fãs: Marco Antonio, barba fechada, conversa com Lennon na calçada em frente ao Edifício Dakota, ao lado do Central Park, exatamente no mesmo lugar onde o músico seria assassinado por Mark Chapman, dois meses depois.
Mallagoli não se cansa de contar a história. Lennon já tinha uma ideia de quem ele era porque recebia em casa os fanzines do fã-clube há mais de um ano. Dias antes de falar com o ídolo, o brasileiro havia deixado na portaria do Dakota uma cópia do disco A hard day’s night, que no Brasil saiu com a capa vermelha (em vez de azul como na Inglaterra) e com o título em português – Os reis do iê-iê-iê. No encontro, o ex-beatle lembrou-se do presente, achou interessante a diferença e quis saber o significado do título escrito em português. “John então me perguntou de que música eu mais gostava. Respondi que todas. Ele insistiu para que eu dissesse uma. Escolhi She loves you porque foi a primeira que ouvi.” Semanas depois, Lennon lhe enviava pelo correio um presente: um disco de ouro recebido pelo grupo na Dinamarca em reconhecimento pelas vendas do compacto de She loves you naquele país.
O assassinato de Lennon fez disparar o interesse pela banda novamente. Em 1981, Mallagoli lançou nacionalmente, pela Editora Três, duas revistas especiais – intituladas John Lennon documento e Beatles documento – com qualidade jornalística profissional, muito superior aos fanzines. Durante uns seis anos, assinou uma coluna sobre o grupo na revista mensal Som três. De 1980 a 1993, manteve um programa semanal de rádio, em que só tocava Beatles, inicialmente na FM Brasil 2000 e, depois na Rádio 97, de São Paulo. A lojinha Revolution mudou-se para um sobrado na sofisticada Alameda Franca, no bairro dos Jardins, em 1982, onde ficou até 1986. Mas acabou fechando por dois motivos: o ponto foi vendido para dar lugar a um edifício e as viagens constantes para exposições não permitiam que a loja ficasse aberta o tempo todo.
TURNÊS
Até o final dos anos 1980, Mallagoli nunca havia visto um show de um beatle, até porque as turnês dos músicos ingleses se tornaram muito raras a partir de 1976, quando ele, já adulto, tinha condições de viajar ao exterior. George Harrison, o mais recluso dos quatro, ele havia encontrado em São Paulo, em 1979, na portaria do Hotel Hilton, quando o autor de Something veio assistir ao Grande Prêmio de Fórmula 1 do Brasil. A lembrança mais significativa, porém, foi a tarde passada com o ex-beatle numa casa cheia de guitarras em Los Angeles, quando Harrison estava lançando o disco Cloud nine, em 1987. Mallagoli convenceu um executivo da gravadora Warner no Brasil a lhe dar o prêmio numa competição entre fãs para ir à California, com tudo pago, especialmente para encontrar Harrison. “Nunca vi um show dele, mas não importa. Ele tocou e cantou para mim naquela tarde”, relembra o fã brasileiro.
O segundo encontro com George Harrison aconteceu em 1987, em Los Angeles.
Foto: Reprodução
Em 1989, percorreu os Estados Unidos num furgão, seguindo Ringo Starr, que fazia a primeira turnê com a sua All Starr Band. Foram oito cidades, de Los Angeles, na costa oeste, até Cleveland, em Ohio, acompanhando um grupo de senhoras. “Pela idade, elas deviam ter visto os Beatles no Shea Stadium, em 1964”, diverte-se ao lembrar da aventura. Em Saratoga Springs, no estado de Nova York, em mais um show, conseguiu entrar no camarim e ser fotografado ao lado de Ringo, mas a foto nunca lhe foi enviada. Pelas normas do megaestrelato do rock, os fãs que chegam perto de McCartney e Ringo têm suas fotos tiradas por um fotógrafo da banda e nunca com suas próprias câmeras, por questão de rapidez e segurança. Ringo ficou sendo, então, o único beatle com o qual não tinha uma foto, mesmo já tendo assistido a uma média de 30 apresentações do baterista. A lacuna foi preenchida em fevereiro de 2015, quando conseguiu uma foto ao lado dele, depois de um show feito no Rio de Janeiro.
Também em 1989, Mallagoli foi a Nova York para ver dois dos primeiros shows da Paul McCartney World Tour, no Madison Square Garden. Quando a turnê chegou ao Rio de Janeiro, em abril de 1990, ele estava entre os poucos que conseguiram entrar no camarim do Maracanã e falar com o ídolo na primeira noite. Contou sobre a homenagem prestada aos Beatles através do nome do filho pequeno. Impressionado, McCartney convidou-o a vir na noite seguinte com a família. As fotos não deixam dúvida. No camarim, depois do segundo show, lá estão Marco Antonio Mallagoli, sua mulher Edméa, e os filhos João Paulo, com dois anos, e Janaína, com quatro anos, juntos com Paul e sua mulher, Linda. O colecionador calcula que já assistiu a umas 60 apresentações do ex-beatle na Europa, Estados Unidos e por todo o Brasil. “É o maior show do universo. Quem falar mal é despeitado ignorante.”
COMPETIÇÃO
Ele demonstra desprezo por uma certa infantilidade presente entre alguns fãs e colecionadores. “Certa vez, numa exposição, apareceu um sujeito com um calhamaço, em que havia uma lista de itens de todo o seu acervo. Pediu para eu assinar uma declaração reconhecendo que a coleção dele era maior do que a minha e me convidando a ir à sua casa verificar. Eu assinei o papel sem ver a coleção. Se isso ia deixá-lo feliz.... Me livrei do cara”, conta sorrindo.
Mallagoli afirma não querer o título de maior colecionador. “Não faço questão de ser o melhor nem o maior. Não tem como se medir o amor pela banda.” Até mesmo por conhecer profundamente essa história toda, sabe que seria uma luta vã tentar ser o maior numa coisa tão global como a admiração pelos Beatles, um fenômeno que conquistou o mundo há cinco décadas e se mantém sempre renovado.
Ele conta que conheceu fãs da Europa que estavam por perto, quando o grupo estourou e puderam acompanhar tudo. “Encontrei, em 1981, um francês que viu todos os 20 shows da temporada da banda no Olympia de Paris, em 1964. Na casa dele, até as ombreiras e a roupa de cama tinham fotos dos quatro beatles.” Há duas décadas, Mallagoli passou uma semana na casa de um amigo e fã holandês, assistindo às imagens não editadas, que geraram o documentário Let it be. São, pelo menos, 140 horas de imagens que, de alguma forma, o holandês conseguiu obter em película e em VHS. O filme lançado mundialmente, em 1970, tinha a duração de apenas 101 minutos. “O holandês saía para trabalhar de manhã e me deixava com algumas fitas para assistir durante o dia. Implorei muito, mas ele não me deixou copiar nada. Mas pude passar uma semana vendo tudo do Let it be. Não tem como competir com esses caras”, diz o brasileiro.
Ele acompanha os encontros anuais que reúnem fãs e colecionadores como a BeatleFest, em Nova York, e a International Beatleweek, em Liverpool. Nesses eventos, tem tido oportunidade de conhecer e tietar pessoas que tiveram algo a ver com os quatro músicos. Foi o caso das ex-esposas Cynthia Powell (ex-Lennon), Nancy Lee Andrews (ex-Ringo) e Pattie Boyd (ex-Harrison). Da banda Wings (formada por McCartney nos anos 1970), esteve com quase todos os músicos. Nas viagens, já conseguiu entrar com seu grupo de acompanhantes até no mitológico estúdio da EMI, em Londres, o famoso Abbey Road, em que a banda gravou os seus discos.
Foto com Paul McCartney foi feita na primeira apresentação do cantor no Brasil, em abril de 1980. Foto: Reprodução
O que não tem ainda e gostaria de ter? Mallagoli lembra o disco Yesterday and today, uma edição norte-americana de 1965 que foi temporariamente retirada do mercado pela reação negativa devido à chamada “capa do açougue”. Ele tem o disco da época, mas já com uma embalagem diferente, a chamada “capa da mala”. A edição com a primeira capa chega a valer no mercado negro até US$ 30 mil. “Nunca vou pagar isso, só para dizer que tenho o original. Não tenho essa ambição.”
ROQUEIROS NO RECIFE
As exposições em shopping centers começaram em 1984, quando foi convidado, em Ribeirão Preto, a ocupar um espaço ocioso de uma loja vazia. Hoje, viaja o país com uma amostra do seu acervo. Fica 15 dias em cada cidade, ajudando a manter aceso o mito em torno da banda. As viagens ajudaram a desmistificar preconceitos, como o de achar, por exemplo, que no interior de São Paulo só se ouve sertanejo ou no Nordeste somente forró. “Percebi que o Recife é a cidade mais roqueira do Brasil, de longe”, diz Mallagoli, baseado na receptividade dos shows de Paul na cidade e seus contatos com os fãs.
Durante as exposições, vende objetos como camisetas, CDs e DVDs, e, no final de cada noite, faz um show acústico em que canta e toca violão, dividindo um pequeno palco com músicos locais que compartilham sua paixão pela banda. Conversa com outros colecionadores e atende pacientemente a curiosos eventuais que pouco ou nada sabem sobre o assunto. “O que me irrita é só quando um cara despreza um DVD de boa qualidade que estamos vendendo com o argumento de que pode ver a mesma coisa de graça no YouTube. Não se compara.”
Mallagoli não é sectário. Gosta muito de outros grupos dos anos 1960 e 70. Entre os seus favoritos estrangeiros, cita Rolling Stones, Deep Purple, Herman’s Hermits, Procol Harum e todos os nomes da chamada invasão britânica do período. Na música brasileira, gosta da turma da Jovem Guarda, mas acha que todos ficaram datados, com a exceção de Leno (da dupla com Lilian). Gosta também de Pixinguinha, Noel Rosa, Paulinho da Viola e Inezita Barroso. Adora Mutantes, Raul Seixas e MPB4. A última banda brasileira de rock que chamou a sua atenção foi Ultraje a Rigor.
Trinta anos atrás, líderes de fã-clubes como Mallagoli eram fundamentais na ligação das bandas de rock com seu público fiel. Hoje, ele mantém a relevância através do seu site e suas publicações. Pretende relançar a revista Revolution, que circulou nos anos 1990. Entre viagens, shows e exposições, a curtição continua. Após a última apresentação da turnê brasileira de McCartney, em 2014, uma maratona de três shows em quatro dias, o repórter perguntou brincando se no dia seguinte teria mais. “O sonho acabou”, disse Mallagoli, sisudo, mas bem-humorado, repetindo a famosa declaração de Lennon. Mas, com os Beatles encantando e conquistando novas gerações, o sonho parece nunca acabar.
MARCELO ABREU, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder! - Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.