Durante os dois anos do curso, Byland e seus colegas queriam fazer cenas cômicas, mas Lecoq sempre os reprovava. No final do curso, eles estavam muito frustrados. “Para nós, não era permitido ser cômico. O curso terminou e ele nos disse: ‘Vocês querem fazer rir?’. E nós respondemos: ‘Ah, sim’. E ele disse: ‘Então, nós podemos fazer um terceiro ano de curso e trabalhar nisso’.”
O terceiro ano começou e o primeiro exercício era, justamente, fazer rir. Um ator inglês, o mais frustrado da turma, se ofereceu para ser o primeiro. Sua improvisação foi péssima, jamais tinham visto nada pior. Ninguém deu nenhuma risada. Terminou a cena, tirou o nariz vermelho e sentou no chão. “Então, começamos a dar risada. Rolamos no chão de tanto rir por 25 minutos. Ele estava paralisado, sem ação, não entendia o que estava acontecendo. Lecoq compreendeu, nesse instante, que o durante não desperta interesse. O interesse estava nesse fiasco, esse homem frustrado por dois anos seguidos liberando seu sentimento de querer fazer rir e ninguém ri dele. Nascia, então, a Pedagogia do Fiasco.”
Lecoq era científico, acima de tudo, e disse: “Temos que trabalhar nisso, nesse momento do fiasco”. Eles nunca mencionaram o antigo palhaço de circo. “Estava claro que nós tínhamos que encontrar a nossa estupidez e a nossa maneira trágica diante da vida. Eu percebi, simbolicamente, que o simples fato de vestir o nariz vermelho queria dizer que nós somos estúpidos, ingênuos, não entendemos nada. Eu peguei isso para mim e Lecoq concordou comigo, dizendo que o nariz vermelho simbolizava a estupidez humana.” Eles foram os primeiros alunos, a primeira classe que compreendeu o Novo Clown, não mais o palhaço de circo vinculado a uma tradição familiar de uma linhagem de palhaços que era obrigada a seguir o ofício dos pais. Então, esse foi o início de um novo movimento, do Novo Clown. “Nós estávamos lá, no dia 6 de outubro de 1962, às 10 da manhã. E foi um tremendo privilégio presenciar e sentir o momento trágico desse pobre rapaz.”
“Trabalhei com Beckett em Paris. Ele ficou uma temporada por lá com várias performances. Tinha terminado o curso de Lecoq e era, para mim, um recomeço no teatro. Minha primeira performance nesse recomeço foi com Roger Blanc, um grande diretor que era amigo de Beckett. Roger Blanc foi o primeiro a encenar Esperando Godot e muitas outras peças de Beckett.” Roger Blanc indicou Pierre Byland para atuar na encenação de Act without words, dirigida pelo próprio autor. Quando Beckett escreveu esse espetáculo, pensou que ninguém jamais a encenaria, porque achava que ninguém estava interessado em nada que escrevia.
Era uma peça com movimentos coreografados e Byland um ator acostumado com improvisação. Ele entrava e saía de cena, mas se sentia perdido. “Era a história de Deus, um chamado divino, mas eu não podia compreender o que era Deus. Então, estava tendo problemas para desempenhar meu papel. Beckett estava lá e contei-lhe minha situação.” Ele respondeu que sua peça era um exercício para o ator, uma proposição com o intuito de elaborar motivos para a ação cênica. “Conseguimos resolver isso quando ele me deu um exemplo concreto, usou a figura de uma mariposa para representar Deus.”
Em Confusion, Pierre está em cena junto à sua mulher Mareike Schnitiker. Foto: Divulgação
LINGUAGEM CORPORAL
Confusion é um estudo sobre a linguagem corporal que as pessoas desempenham nas situações cotidianas. O modo atrapalhado, ingênuo e estúpido com que nos comportamos na fila do cinema, na casa de amigos ou parentes, no restaurante etc. Situações repetitivas e engraçadas com uma dinâmica que o próprio Samuel Beckett retratou em seu Teatro do Absurdo. “Se observarmos as pessoas, e nós podemos observá-las 24 horas por dia, entenderemos como elas são. Nós descobrimos que o corpo e a voz nos dão uma imagem interior dessas pessoas, como elas se sentem. Começamos a compreendê-las melhor e, como consequência disso, entendemos melhor a nós mesmos. Como Bertold Brecht dizia, ‘tentar compreender o teatro pode ser uma forma de entender melhor a arte mais difícil que existe, a arte da vida’”, explica.
Byland se surpreende quando a linguagem corporal de uma pessoa comunica o oposto do que ela realmente é. “Um conhecido meu tem um rosto angelical. É muito bonito, mas um homem horrível, cruel. Ele está preso, devido a uma de suas crueldades. Então, ele tem duas caras. Em seu interior, é completamente diferente do que aparenta ser. Esse é um exemplo do conceito de contramáscara, uma pessoa que aparenta uma coisa, mas, na verdade, é outra e, de tempos em tempos, esse segundo plano vem à tona e deixa todos surpresos.” Além de exemplificarem a contramáscara em cena, Pierre e Mareike mostram o trabalho das máscaras da escola de Lecoq, raro de se ver aqui no Brasil, que no contexto da peça acentuam também a estupidez humana.
REFERÊNCIAS
Pierre se inspira nos filmes de Buster Keaton. Karl Valentin, o grande palhaço de Munique, também é uma referência para ele. Em sua escola de clowns, o Burlesk Center, na Suíça Italiana, faz homenagens a ele, tirando exemplos para os alunos praticarem como exercícios. “São aspectos de uma ingenuidade e de uma idiotice extremas. Para se chegar a uma idiotice extrema, é preciso ser muito inteligente.” Ele considera o humor atual, principalmente o televisivo, um tanto quanto perverso. “Eles obrigam o público a rir. Os animadores riem para estimular a plateia comprada a rir. A pobre audiência pensa num primeiro momento que aquilo é um lixo, mas, ao mesmo tempo, começam a achar interessante, porque veem todo mundo rindo e passam a se achar estúpidos por não estarem rindo. É uma tragédia! Eles riem apenas porque todo mundo está rindo.”
O clown, para ele, é uma maneira de dizer que o sistema está errado, que ele está fora desse modelo social hipócrita e falido, que também engloba a educação, o ensino. No Burlesk Center, ele tenta desconstruir o modelo de ensino atual. “A gente não tem mais o direito de não conhecer. Na escola, temos que saber tudo e é uma catástrofe ter de saber tudo. Se eu disser que não sei, todo mundo vai dar risada de mim. Então, não tenho o direito de não saber. Temos que, laboriosamente, reaprender a não saber, fazer uma antieducação, e isso é difícil, principalmente com as pessoas inteligentes”.
GUILHERME NOVELLI, jornalista.