FOTOS LEO CALDAS
01 de Agosto de 2015
Foto Leo Caldas
Para quem se inicia na cozinha, uma das maiores dificuldades reside numa hermética expressão: sal a gosto. Além do conhecimento sobre a sensação preferida ao paladar próprio e alheio, resta a dúvida sobre qual é a exata quantidade do ingrediente que vai proporcioná-la. O livro de receitas da mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Dona Canô – compilado por outra irmã dos cantores, Mabel Velloso –, leva o título de O sal é um dom. Essa foi a resposta da matriarca às tentativas de Mabel de precisar a medida certa de cloreto de sódio das preparações.
O dom de Dona Canô tem o sentido de aptidão inata ou talento, mas é possível ampliar para outro sentido da palavra: dádiva concedida pelos deuses. Em Comida & cozinha: ciência e cultura da culinária, Harold McGee afirma que o sal é “o tempero primordial, preparado pela terra bilhões de anos antes de os primeiros seres humanos aprenderem a temperar com ele seus alimentos”. É coletado desde a pré-história tanto no litoral quanto em minas em terra – estima-se que a produção mundial atual seja metade realizada de uma forma, metade de outra.
“Antes que aprendessem a cozinhar em panelas, os seres humanos nunca precisaram se preocupar em pôr sal na comida. A carne animal já contém todo o sal de que nossos corpos necessitam, e assá-la preserva a maior parte dele. Foi só com o advento da agricultura, quando as pessoas começaram a se apoiar numa dieta de grãos e outras plantas e a ferver grande parte da sua comida (e, no processo, percolando o sal que havia ali), que as deficiências de sódio se tornaram um problema”, explica o jornalista Michael Pollan em Cozinhar: uma história natural da transformação.
À importância prática do ingrediente na cozinha e na saúde, soma-se sua relevância simbólica e econômica. “Não admira que seu nome esteja presente em numerosas palavras e expressões de uso cotidiano (‘salário’, da prática romana de pagar os soldados com sal; ‘sem sal’; ‘sal da terra’) e que ele tenha sido objeto de monopólios governamentais, de tributos lançados pelo Estado e de revoltas populares contra eles, desde a França revolucionária até a lendária caminhada de Gandhi rumo ao povoado litorâneo de Dandi, em 1930”, diz McGee.
O historiador Felipe Fernández-Armesto ressalta o papel dos impostos de sal na Revolução Francesa, mas destaca, no livro Comida: uma história, que houve dois momentos em que o cloreto de sódio mudou o rumo da história mundial. O primeiro foi quando o mercado da África Ocidental no fim da Idade Média sustentou o comércio medieval de ouro. O segundo se deu quando a indústria de salga de alimentos no norte da Europa, principalmente nos Países Baixos, no século 17, foi essencial para o pontapé inicial do imperialismo marítimo de longa distância. Tudo isso porque faltava sal nos dois locais.
Para o chef Claudemir Barros, cozinhar sem sal é tão impensável como cozinhar sem água
A valorização do tempero também pode ser percebida pelas maneiras à mesa. Pequeno dicionário de gastronomia, de Maria Lucia Gomensoro, indica que, na Europa medieval, o pote de sal era uma verdadeira obra de arte. Além disso, sua posição à mesa marcava a hierarquia dos convidados – o mais importante ficava mais perto do saleiro. No clássico História da alimentação no Brasil, Luís da Câmara Cascudo frisa outro simbolismo: “Derramar o saleiro era triste agouro, como permanece nos nossos dias. No quadro da Ceia, Leonardo da Vinci pinta o saleiro entornado diante de Judas Iscariotes”.
No Brasil do século 16, “o sal não era desconhecido nem querido. Nenhuma novidade no seu emprego mas também nenhuma preferência em sua função. Bem ao contrário”, lembra o autor. Os índios acreditavam que alimentos salgados resultavam em diminuição da vitalidade. A salmoura não era usada como método de conservação, mas sim a secagem no moquém, espécie de grelha feita com varas e usada para desidratar levemente carnes e peixes sobre o fogo. “Essa inevitabilidade do sal o português trouxe para o Brasil e fez usual a comida salgada, de nenhuma predileção para o indígena, que demorou a adaptar-se.”
EQUILÍBRIO
Apesar de vilanizado pelos problemas ocasionados pelo seu uso em excesso, o ingrediente é indispensável para o organismo. “O sal não tem semelhantes entre nossos demais alimentos. O cloreto de sódio é um mineral simples, inorgânico: não vem de vegetais, nem de animais, nem de microrganismos, mas do mar e, em última análise, das rochas que, erodidas, alimentaram-no com suas partículas. Trata-se de um nutriente essencial, de uma substância química sem a qual nosso corpo não vive”, afirma McGee. Se consumido em grandes quantidades, porém, pode causar doenças.
Precisamos de cerca de um grama de sal por dia para manter o equilíbrio químico do corpo, mas a quantidade pode variar se o indivíduo faz muita atividade física – e perde sal no suor. Nos Estados Unidos, por conta do alto consumo de alimentos processados, o consumo chega a dez gramas, conta o autor. A nutricionista e professora Fábia Moura esclarece que o cloreto de sódio é um mineral essencial ao funcionamento celular, juntamente com o potássio. “Ambos estão sempre se equilibrando dentro do organismo. Esses minerais são importantes na transmissão do impulso nervoso, entre outras funções”, diz.
Há oito anos, a pernambucana Kook produz sal com sabor de alho, limão, pimenta, entre outros
A nutricionista explica que os alimentos naturais já contêm sódio em sua composição e que o sal de cozinha é considerado sal de adição e deve ser consumido de forma moderada. “O excesso de sódio pode elevar a pressão arterial e contribuir com aparecimento de doenças cardiovasculares. De modo geral, o brasileiro consome-o em excesso”, diz. Não adianta trocar pelo chamado sal light, no qual parte do sódio é substituído por potássio. “Esse composto foi criado na intenção de atender ao público hipertenso, mas merece cautela. Salga menos e isso pode levar ao uso de uma quantidade exagerada”, alerta.
Nem só para salgar serve o produto. McGee lembra que termos culinários como “sauce” (“molho” em inglês), “sausage” (“embutido” em inglês) e “salada” vêm da palavra “sal”, ingrediente indispensável em todos eles, com funções que vão da retirada do amargor nas saladas à conservação nos embutidos. Ao mesmo tempo em que impede a proliferação de microrganismos que deterioram os alimentos, também possibilita o crescimento de bactérias “do bem” que ajudam a produzir sabores. “O sal, portanto, preserva o alimento e ao mesmo tempo o aperfeiçoa”, explica.
SABOR BÁSICO
Ao falar sobre os cinco sabores (doce, salgado, amargo, azedo e umami), Pollan lembra que o apreço dos seres humanos por cada um deles tem função biológica. Se o gosto amargo costuma indicar a presença de toxinas, o contrário acontece com o salgado: “O sal é um nutriente essencial do qual fomos programados para gostar”. Apesar disso, a intensidade da preferência é variável. McGee explica que a sensibilidade individual ao sal acontece por fatores tão diversos quanto “diferenças hereditárias no número e na eficácia das papilas gustativas, a saúde em geral, a idade e o costume”.
“É a única fonte natural de um dos cinco sabores básicos e, por isso, o acrescentamos à maioria dos alimentos para complementar o sabor destes. Além disso, o sal intensifica ou modera os sabores: reforça a impressão dos aromas que o acompanham e suprime a sensação de amargor”, afirma McGee. Para o chef Claudemir Barros, do Wiella Bistrô, cozinhar sem ele é algo tão impensável quanto cozinhar sem água. “Cozinhar sem sal é não produzir sabor e, posso ir mais adiante, prazer”, afirma o chef, que usa sais aromatizados quando deseja dar efeitos diferentes às preparações.
São vários os tipos de sal, como qualquer consumidor atento pode perceber hoje. McGee descreve um por um em seu livro. O sal de mesa granulado tem forma de pequenos cristais regulares. O sal iodado leva iodeto de potássio para evitar doenças causadas pela deficiência de iodo, que acarreta problemas no desenvolvimento físico e mental. O sal em flocos tem forma de partículas achatadas e finas. Um exemplo é o sal marinho de Maldon, no sul da Inglaterra. “Polvilhado sobre o alimento logo antes de servir, o sal em flocos proporciona uma textura crocante e uma explosão de sabor.”
O sal kosher é usado para tornar um alimento apropriado aos preceitos do judaísmo – por exemplo, para retirar restos de sangue da carne de um animal. O sal marinho não refinado tem processamento mínimo e seu preparo pode levar até cinco anos. A flor de sal, cuja coleta foi desenvolvida em salinas marinhas do sudoeste da França, é a parte mais delicada do sal. Os cristais são separados da superfície antes de se misturar ao sal marinho comum. Por fim, há os sais aromatizados e coloridos. “Na confecção dos sais havaianos preto e vermelho, o sal marinho comum é misturado com lava, argila ou coral finamente moídos.”
SEM REGRAS
Pernambuco já conta com produção de sais saborizados. A Kook existe há oito anos, vende seus temperos e sais para mais de 400 cidades brasileiras e se prepara para começar a exportá-los para a Alemanha. Depois de trabalhar em cozinhas, o sócio Gustavo Accioly teve a ideia de montar a empresa quando morou na Holanda e percebeu um outro cuidado com o sal. Segundo ele, cerca de 85% do sal produzido mundialmente é usado na indústria e apenas 15% na alimentação. Então, as salinas não se preocupam muito em desenvolver produtos diferenciados.
A empresa importa sal mineral do Himalaia, de grão mais poroso e composto por 50% de cloreto de sódio e 50% de outros 84 minerais que lhe conferem um tom levemente rosado. Já o sal marinho é colhido em uma salina em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Dele são feitos também os sais saborizados: defumado ou com limão, alho ou pimenta. Accioly conta que eles levaram cinco anos para desenvolver o processo de saborização, em que o sumo natural do alho, do limão ou da pimenta in natura é retirado e aplicado no sal, criando uma película de sabor. Ou seja, o sabor é “colado” no sal, que ganha diferentes cores.
A granulometria também provoca efeitos variados no sal. O granulado fino, usado na linha de potes para cozinha, permite maior precisão na pitada. Cada grão tem até um milímetro de diâmetro, tamanho equivalente ao do açúcar cristal. O granulado médio é específico para churrasco, pois tem um grão mais achatado que permite maior aderência ao assado e menos desperdício. Accioly ressalta que, quando se usa o sal comum nessa preparação, metade termina caindo no carvão em vez de grudar na carne, porque esse sal tem granulometria variada e não homogênea.
Por fim, o granulado grosso tem moedor acoplado e é usado para finalização dos pratos. A textura provoca alterações de sabor: quanto mais fino, maior é a superfície de contato com a língua; quanto mais grosso, menor é essa área. A diferença é sentida na degustação. Accioly acredita que todos os sais podem ser usados em qualquer tipo de comida, de acordo com o gosto do consumidor e com o efeito desejado. Não há regras – e combinações aparentemente inusitadas podem funcionar. “O defumado é bom com carne, mas pode fazer um ovo frito se tornar uma iguaria”, sugere.
RENATA DO AMARAL, jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural.