Amigos desde a época de colégio – Escola Parque, no Rio de Janeiro –, os quatro já compartilhavam afinidades e o interesse pela música, o que levou cada um/a a trilhar esse caminho. Lucas e Zé são companheiros na banda Dônica – além disso, Lucas produziu o álbum Meu coco, de Caetano Veloso, e vem em turnê com o baiano; e Zé vem excursionando com Milton Nascimento, em A última sessão de música –, enquanto Júlia havia lançado seu primeiro solo, Geminis (2019), e Dora, além de fazer parte do grupo vocal Zanzibar, lançou alguns singles e o EP Vento de beirada (2021). Esse “acontecimento-encontro” entre eles se deu quando, em meio à pandemia, resolveram morar juntos, numa forma de se fortalecerem naquele período tão adverso. Naturalmente, a sintonia artística entre eles foi dando o ensejo para que algo maior se desvelasse.
Esse “algo maior” já era uma pedra cantada por Júlia, que percebia um potencial na união dos quatro. Mas a “virada de chave” veio após algumas aparições nas lives que a cantora Teresa Cristina promoveu no seu Instagram, durante o período mais agudo da pandemia no Brasil. "Ela é uma grande amiga nossa. Inclusive, a gente até diz que ela é nossa madrinha, porque foi ela quem abriu as portas para uma certa visibilidade nossa. Ela fazia aquelas lives 'salva vidas', lives que eram um momento de alegria e respiro diante do que estava acontecendo", relembra Lucas. “Foi lá que a gente virou um só”, continua Zé. “Foi lá que a gente foi reconhecido muito antes de a gente se reconhecer. A única de nós que já reconhecia isso era a Júlia, que já tinha uma visão com relação a isso”, completa o músico.
Sonoridade e visual do grupo remetem à geração setentista da música brasileira. Foto: Estêvão Andrade/Divulgação
A partir dessas participações nas lives de Teresa, veio o convite, por Marcus Preto, para reunir os quatro em um show no Coala Festival 2021, o que acabou não acontecendo devido à pandemia. Mas deixou plantada neles a semente dessa possibilidade de fazerem algo juntos. Foi aí que se viram imbuídos da missão de concretizar essa experiência. Nasce, então, o Bala Desejo, e eles resolvem gravar o álbum SIM SIM SIM como registro desse acontecimento. O disco foi inicialmente disponibilizado em duas partes: Lado A e Lado B, assim como nos LPs, para só depois condensar-se em um “disco cheio”, com 14 faixas.
Bala Desejo – assim como o álbum SIM SIM SIM – nos lança automaticamente para uma atmosfera anos 1970. Seja pelo visual deles em palco, seja pela sonoridade do disco, pela natureza das canções, que carregam um DNA de nobre linhagem da música brasileira: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Rita Lee, Itamar Assumpção e alguns outros representantes dessa geração fazem a cabeça deles. Há muito de setentista no som e no jeito da Bala Desejo. No entanto, eles deixam perceptível que são quatro jovens artistas – Júlia, Lucas e Dora com 26 anos e Zé, com 25 –, no tempo presente, falando desse tempo que vivemos. Como pontuou Júlia, em entrevista para a TV Cultura, “É uma lembrança de algo novo”. Afinal, o grupo é gestado em meio à pandemia e desabrocha quando se ensaiavam os primeiros movimentos de liberação das restrições impostas durante o período. Diante desse contexto, Bala Desejo surge como uma necessidade de libertação, uma abertura a novos tempos, um convite a carnavalizar e curtir a vida após dois anos de clausura. É uma festa de celebração à vida.
"Somos quatro artistas, são quatro possibilidades, quatro portfólios, quatro outdoors, algo que, por si só, quando conjugado, dá um alcance maior pra uma banda que não existia antes", comenta Zé Ibarra sobre uma das potências da banda. Depois de botar o disco no mundo, eles caíram na estrada, se apresentando em várias cidades do Brasil.
UMA BANDA BEIJOQUEIRA
Em palco, Bala Desejo coloca em prática todo o ideário que carrega o álbum SIM SIM SIM. É SIM três vezes. É "uma postura afirmativa diante da vida", como diz Júlia. Nos shows, eles transbordam beleza física e imagética, e também algumas “intenções”. O comportamento libertário, vivo... cantos, danças e performances que despertam um literal DESEJO – por eles – de quem está na plateia. Eles se beijam e beijam quem desejarem (se o desejo for recíproco), como o público, por exemplo. Eles dão a deixa na faixa que abre SIM SIM SIM: “Bala Desejo, eu quero um beijo molhado”.
"É como se a gente tomasse uma balinha antes de entrar no palco. Porque é meio que uma bala mesmo, uma onda, uma onda louca”, fala Zé Ibarra. “É muito bonito ver a comunicação que a gente tá conseguindo ter com a galera, em termos musicais e em termos conceituais implícitos, a coisa da libido, do beijo. A gente se beija ali, no palco, porque a gente se beija na vida, mas também existe uma vontade de causar coisas, que não é vã: é causar desejo, tesão mesmo, no público. É um afeto que é político”, diz Zé. “Os shows são uma catarse da felicidade e do tesão. Esse encontro com o público é delicioso”, completa.
Imagens do show no Festival de Inverno de Garanhuns 2022.
Fotos: Elimar Caranguejo/Secult-PE/Fundarpe
Júlia Mestre comentou que essa performance solar, festiva e desinibida do Bala Desejo em palco congrega diferentes linguagens artísticas. É música e poesia exploradas cenicamente. Ela também estuda teatro e fala mais sobre as performances do grupo: “Cada show foi um pouquinho de uma descoberta de quem a gente era no palco, juntos”. E acrescenta: “Trouxemos uma diretora de teatro [Juliana Thiré] pra fazer essa construção do corpo em cena. Também o estudo do cabaré em cena, da troca com o público, e essa mistura de linguagens". Sobre a presença do corpo-vida no palco, ela diz: "Quando a gente traz o beijo em cena é sobre um pouco dessa libertação, e de como a gente se curte”.
QUINTO ELEMENTO
Impossível não fazer uma analogia entre Bala Desejo e os Doces Bárbaros, por exemplo, que reuniu, em 1976 e em 2002, Caetano, Gil, Bethânia e Gal. Especialmente com a coincidência “quatro artistas solo que se juntam e formam um ‘novo elemento’”. Na época dos Doces Bárbaros, Caetano falava que, juntos, eles formavam uma “alma grupo”. A Bala tem um raciocínio parecido no que diz respeito à junção dos quatro. “É o melhor de todos nós”, dispara Lucas, perguntado sobre o que é Bala Desejo.
No que é seguido por Zé: “E tem também o que não é nós de todos nós. O que é que eu não fui até hoje e que eu quero brincar de ser, o que não foi o Lucas até hoje, o que não foi a Júlia até hoje. A ‘alma grupo’ do Bala, para mim, é o que não sou eu e poderia ser”. “A postura que eu adoto no Bala é diferente da postura que eu adoto no meu show solo, por exemplo. E não é algo pensado. É interessante, porque a gente vai ampliando essa persona artística. E você fazer isso não sozinho, mas com o amparo de mais três pessoas amigas”, completa Zé.
SIM SIM SIM
Lançado em janeiro de 2022, SIM SIM SIM é “um disco que fala sobre liberdade, sobre festa, libertação do corpo, sobre dançar, suar”, comenta Júlia. Praticamente, todas as músicas foram compostas durante o período em que os quatro ficaram morando juntos, na casa dela. Das idas ao município de Barbacena (MG), também surgiram canções que entrariam no disco. Todo o processo de encontros, composições, produção e lançamento do álbum durou em torno de 11 meses.
SIM SIM SIM é uma obra feita por uma multidão. Enfurnados no estúdio Carolina, em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, e eventualmente em outros, Zé, Lucas, Dora e Júlia contaram com inúmeras colaborações. A começar por Ana Frango Elétrico, que coproduziu o disco. Nomes como Teresa Cristina e Mosquito (as vozes que conversam na primeira faixa, Embala pra viagem), Caetano Veloso, Rubel, Maria Gadú, Regina Casé, Ney Matogrosso, Tim Bernardes também estão no álbum. Além dos músicos que acompanharam o grupo, como Alberto Continentino (contrabaixo), Thomas Harres (bateria e percussão), Daniel Conceição (percussão), dos naipes de cordas e sopros, e das participações de gente experiente como Marcelo Costa (que foi gravar berimbau em uma música e acabou fazendo a percussão em cinco) e o maestro Jacques Morelenbaum, pai de Dora que arranjou cordas e sopros de quatro faixas. Todo o “superlativo elenco” de SIM SIM SIM – que eles chamam “a sopa do Bala” – pode ser ouvido na última música do disco, Faixa técnica.
Todas as faixas foram gravadas com banda tocando ao vivo, o que deu a organicidade pretendida pelo grupo. E, como já dito anteriormente, a sonoridade de SIM SIM SIM nos remete à música brasileira setentista, o que lhes é natural e, ao mesmo tempo, lhes incumbe da responsabilidade (assumida) e da busca por uma excelência em sua produção, a fim de criar um disco de arranjos, como é Refavela, de Gilberto Gil, por exemplo, importante referência fonográfica para Bala Desejo.
Na faixa de abertura, Embala pra viagem, é anunciada a chegada da kombi do Bala, seguida por Baile de Máscaras (Recarnaval), o que eles chamam de “marcha caetanada”, mas também traz o frevo e sutis referências à Construção, de Chico Buarque. Lambe lambe, uma das mais empolgantes do disco, tem muito de Rita Lee e Lincoln Olivetti. Em Dourado dourado, entra em cena um clima latino. Clama floresta, por sua vez, é um reggae. Uma profusão, uma diversidade de sons que dão a liga perfeita a um disco feito para dançar e se jogar e – por que não? – também contemplar e se deliciar.
SIM SIM SIM é o álbum de estreia da Bala Desejo.
Imagem: Divulgação
NOVELA DAS NOVE E GRAMMY LATINO
SIM SIM SIM teve uma boa recepção por parte do público e da crítica, e já rendeu bons retornos a Bala Desejo. A música Passarinha está na trilha da novela Travessia, que estreou recentemente no horário nobre das 21h, na Rede Globo. A canção é tema da personagem Brisa, protagonista da trama interpretada pela cantora e atriz Lucy Alves. “O lado bom da televisão é que ela chega a muitas pessoas, tem a oportunidade de furar as bolhas que o Bala Desejo ainda não tenha alcançado. Estamos bem felizes com nosso tema com a personagem da Lucy”, diz Júlia Mestre.
Além disso, o álbum SIM SIM SIM está concorrendo no Grammy Latino 2022, na categoria “Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa”. Um feito e tanto para um grupo com tão pouco tempo de surgido. A premiação é no dia 17 de novembro, em Las Vegas (EUA). Como crava Ibarra, “Bala Desejo surgiu com pretensões de ser uma banda pop, em todos os sentidos: visuais, sonoros, comportamentais. Eu sinto que, no Bala Desejo, eu viro divo, a Júlia vira diva, todo mundo vira divo... e como uma brincadeira, uma possibilidade de existência, não como uma piração, nem como um devaneio, uma ilusão. Não! Aqui é a hora de fazer isso, de ir na frente, na passarela, ficar cantando, dançando e rebolando”.
Sobre os projetos individuais de cada um, segue o fio: em 2023, Júlia Mestre deve lançar seu segundo disco. Dora e Zé lançarão, cada um, seus álbuns solo. Lucas, além de seguir na turnê Meu coco, com Caetano Veloso, vem produzindo álbuns de outros artistas e, junto com Zé, deve lançar o novo álbum da Banda Dônica. Ibarra também segue acompanhando Milton Nascimento, finalizando a sua turnê de despedida A última sessão de música.
Quando se encontram, surge a Bala Desejo, que segue se afirmando diante da vida e do que ela pode oferecer nesse trajeto, empenhando, com amor, alegria e liberdade, o seu SIM SIM SIM, como diz Caetano Veloso, em Embala pra Viagem: “Eu quero dizer SIM. Dentro da kombi, dizer SIM. Dentro do mundo, dizer SIM. Dentro do SIM, dizer...”.
Foto: Leco Moura/Divulgação
LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.