Mirante

Um país salvo pela canção

TEXTO Débora Nascimento

25 de Outubro de 2021

Caetano Veloso lança 'Meu coco', seu 30º álbum de estúdio, repleto de referências e reverências

Caetano Veloso lança 'Meu coco', seu 30º álbum de estúdio, repleto de referências e reverências

FOTO Fernando Young/Divulgação

Em maio deste ano, Caetano Veloso foi uma das pessoas escolhidas para estar na capa da Continente, exatamente por representar “A nova velhice”, título da reportagem sobre aqueles que vêm rompendo o preconceito etário e os paradigmas do que, décadas antes, se entendia como idoso. A mesma geração que revolucionou as artes e os costumes nos anos 1960 e 1970 vem transformando o conceito do processo de envelhecer. Prestes a completar 80 anos em 2022, o artista segue em plena atividade, fazendo shows, lives, entrevistas, álbuns. No último dia 21, lançou um novo disco de inéditas, o primeiro com composições apenas suas, sem parcerias, demonstrando que seu espírito mantém-se criativo, curioso e em busca do novo.

Como uma prova inconteste disso, a célula embrionária desse, que é seu 30o álbum de estúdio, foi uma insistente batida no violão que começou em 2019, quando considerava que poderia haver algo totalmente original naquele som. Para conseguir dar prosseguimento a uma possível descoberta, imaginava que precisaria completar sua criação tendo como inspiração a imagem do Balé Folclórico da Bahia. Seu plano era assistir aos integrantes da companhia performando a partir do que estaria sendo esboçado por ele no violão. No entanto, veio a pandemia, e o planejamento de sair do Rio de Janeiro para ir à Bahia não pôde se concretizar. O artista, então, começou a compor e gravar as canções do disco, mesmo assim, em home studio, na sequência de Meu coco, música que intitula o novo disco.

A palavra “coco”, no Brasil, principalmente no Nordeste, tem significado para além do fruto do coqueiro. Pode ser relativo ao ritmo musical, à dança de roda ou ao crânio. A capa do disco traz a imagem da cabeça de Caetano replicada em várias fotos, representando os vários Caetanos. Meu coco chega ao mundo quase 10 anos após o lançamento do último disco de inéditas do cantor, o aclamado Abraçaço (janeiro de 2012), que também trazia uma imagem da cabeça do artista, no caso “abraçada” por várias mãos, como se fosse moldada, abençoada ou desejada.

Na faixa-título, com arranjo orquestral do violonista Thiago Amud, e que abre o novo disco, o cantor apresenta o tipo de letra que marca seu cancioneiro, trazendo diversas referências e, desta vez, autorreferências, porque, sim, ele pode. E a maior das referências (e reverências) também (re)aparece: João Gilberto. Podemos entender como uma menção-homenagem ao seu ídolo maior, morto aos 88 anos, em 6 de julho de 2019. Também foi uma bem-vinda ideia citar, na letra de uma canção que nasceu sob a tentativa de criar uma batida, o artista que formatou um novo gênero musical e que deu a Caetano “régua e compasso”.

A canção seguinte, Ciclâmen do Líbano, com letra romântica que remete à cor magenta da flor ciclâmen, traz o que Gilberto Gil chama de “marcha caetaneada”. Para ela, Caetano convocou um antigo colaborador que teve êxito em diversos trabalhos anteriores, mais marcadamente nos álbuns Circuladô (1991), Fina estampa (1994), Livro (1997) e Prenda minha (1998). Jaques Morelenbaum fez um belíssimo arranjo de orquestra baseado nos timbres vindos do Oriente Médio. O retorno do violoncelista, que também fez arranjo para a faixa Cobre, parece representar o fechamento do ciclo com a Banda Cê, que acompanhou Caetano em (2006), Zie e Zii (2009) e Abraçaço (2012) – discos que renovaram a plateia de seus shows.

Mas a sonoridade do álbum de 2012 ressurge na faixa Anjos tronchos (talvez pela participação do guitarrista da Banda Cê, Pedro Sá, que também tocou baixo na gravação), o primeiro single divulgado de Meu coco e que foi escolhido pela Sony Music, nova gravadora de Caetano – que havia lançado seus últimos discos de estúdio pela Universal. A estrutura da música lembra o formato de Vaca profana e a letra traz o compositor abordando temas relativos às novas tecnologias da área da informática. Mencionando Vale do Silício e telas azuis, diz: “Agora a minha história é um denso algoritmo”.

Aquele Caetano que perguntava, em Alegria, alegria, de 1967, “Quem lê tanta notícia?”, agora canta “Meus neurônios ganharam novo outro ritmo. E mais e mais e mais e mais e mais”. E fala das vantagens e desvantagens da Era da Informação, como a facilidade para “ouvir Schoenberg, Cage e Webern” ou ver surgirem “Palhaços líderes brotaram macabros”. A música é mais uma demonstração de seu brilhantismo como autor de letras: “Que nuvem, se nem espaço há/ Nem tempo, nem sim nem não” e menciona a antiga canção de 1968, que também tentava captar o zeitgeist: “Eu vou, por que não?”. E quase 60 anos depois, fica mais claro do que nunca: ele captou.

Ainda dentro do tema “tanta notícia”, na faixa seguinte, Não vou deixar, talvez a melhor do disco, Caetano traz o problema central da vida do brasileiro hoje: sim, ele, #elenão. Mas não fez menções diretas, apenas utilizou o recurso buarqueano, empregado mais notoriamente em Apesar de você, com ambiguidade nas expressões do eu lírico, resultando em uma canção que pode ser entendida como romântica ou política.

Não vivemos uma ditadura, no termo específico, logo, Caetano teria liberdade para ter sido mais claro. No entanto, não quis dar o gostinho a bolsonaristas de fazer uma crítica tão evidente e conceder essa importância histórica ao “mito”, de ficar eternizado numa canção do ícone da música popular brasileira. Até porque vai passar, e quando passar, talvez Não vou deixar vire apenas tão somente uma canção de amor.

Sobre uma célula de base de funk e rap criada no piano por Lucas Nunes, integrante da banda Dônica (de Tom Veloso) e coprodutor do disco (com Caetano), o artista canta: “Não vou deixar você esculachar com a nossa história” e “Não vou deixar porque eu sei cantar/ E sei de alguns que sabem mais”. Em mais uma letra sua, o Brasil é salvo apenas pela canção popular, a exemplo de Podres poderes (1984). Em algum momento, ele menciona a frase “Apesar de você” e diz que o neto observa sua revolta: “O vovô tá nervoso”.

Na faixa seguinte, o vovô nervoso faz uma homenagem a outro neto, Benjamin, de 1 ano, na canção Autoacalanto. O bebê nasceu durante a pandemia e trouxe para o artista, em tempos sombrios, a oportunidade de conviver diariamente com o filho de Tom Veloso. Na letra, chama-o de “caçula de mim” e conta que ele mesmo se nina – vem aí um novo músico na família?

Como uma continuação das menções a crianças, a canção a seguir, Enzo Gabriel, foi feita a partir de mais um insight genial de Caetano. Ele, que lê tanta notícia, ficou fascinado ao saber que o nome mais registrado dos que nasceram em 2018 e 2019 foi esse. Então, escreve para esses meninos que nasceram com o mesmo nome, mas em origens tão diversas num país tão desigual (“Um menino guenzo ou um gigante negro de olho azul/ Ianomâmi, luso, banto, sul”) e pergunta como será seu futuro, acrescentando: “Mas já verás o que é nasceres no Brasil”. Imagine um documentário a ser feito daqui a 30 anos: o que aconteceu com alguns desses "Enzos Gabriéis" espalhados pelo país?

Em GilGal, Caetano retoma a palavra que descobriu ao ler José e seus irmãos, de Thomas Mann, que ele já usou na letra de Este amor (“Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal”, sem o G maiúsculo), do disco Estrangeiro (1989), e que significa, segundo o dicionário bíblico, “Um círculo de pedras. Foi o sítio onde, pela primeira vez, acamparam os israelitas, depois de terem atravessado o rio Jordão. Aqui foram levantadas as doze pedras que tinham sido tiradas do rio, e foram circuncidados aqueles que tinham nascido no deserto – e pela primeira vez se celebrou a Páscoa na terra de Canaã”. Na música, o artista rende homenagem à música popular brasileira, citando vários autores sobre uma batida de candomblé tocada por Moreno Veloso e com participação de Dora Morelenbaum no vocal.

Além da filha de Jaques, Caetano também convocou Carminho para cantar no disco. A cantora portuguesa colocou sua voz potente em Você-você, uma música feita especialmente porque a lusitana, que gosta muito da música brasileira, extrai a palavra “você” nas suas interpretações, pois esta não é usada em seu país. O destaque do instrumental fica por conta do bandolim do virtuose Hamilton de Holanda, que aqui funcionou como “auxílio luxuoso” ocupando o espaço da guitarra portuguesa.

Do ritmo mais marcante de Portugal, o álbum segue com o mais marcante do Brasil. A composição Sem samba não dá traz mais citações de artistas, desta vez, novos, como Baco Exu do Blues, Simone e Simaria, Duda Beat, alguns ele conheceu ao assistir à TVZ, do Multishow. A música ganhou videoclipe com participação do músico carioca Pretinho da Serrinha, que havia perguntado ao baiano se não teria samba no disco. Então, Caetano fez um por causa dele.

Dentre as 12 faixas, o disco traz duas canções que já haviam sido gravadas antes: Pardo, que está no APKÁ (2019), de Céu, com uma pegada meio disco, meio reggae. Na gravação de Caetano, ganhou a percussão do samba reggae “caetaneado”, com arranjos de Letieres Leite. A outra é a faixa Noite de Cristal, que já havia sido interpretada por Maria Bethânia em seu grande disco de 1988, Maria. A música foi relembrada por ele na live do Natal, em 2020.

Caetano encerra os quase 44 minutos do álbum, em que esbanja firmeza nas cordas vocais e versatilidade nas interpretações, pedindo à noite “dias de outras cores/ alegrias para mim /pra o meu amor /e os meus amores”. Na sua gravação, ele acrescenta uma linha: “E do Carlinhos Brown”, concluindo o disco com o nome do artista que bem simboliza essa alegria ansiada já em 1984, quando, em Podres poderes, queria aproximar o seu “cantar vagabundo daqueles que velam pela alegria do mundo, indo mais fundo, Tins e Bens e tals”.

No álbum inteiro, Caetano Veloso, alguém que quase nos faz esquecer que está prestes a completar 80 anos, não aborda o tema da velhice. A passagem do tempo já foi narrada por ele em outras canções suas. Mas, talvez, se observarmos a foto da capa de Meu coco, conseguiremos enxergar a representação imagética de uma antiga estrofe sua, pinçada de suas mais de 600 composições, e que lhe cabe tão bem agora: “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista/ O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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