Mirante

Pra você que ainda não viu 'Succession'

TEXTO Débora Nascimento

31 de Maio de 2023

Em sentido horário, Shiv, Tom, Connor, Logan, Greg, Roman e Kendall

Em sentido horário, Shiv, Tom, Connor, Logan, Greg, Roman e Kendall

Foto HBO/Divulgação

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#SemSpoilers

Há momentos em que a TV entretém; outros em que ela faz história. No último domingo (28), com a exibição do episódio final de Succession, após uma brilhante e impecável última temporada, a série firmou-se definitivamente no panteão das grandes produções televisivas. E mais do que isso, tornou-se uma obra-retrato do seu tempo.

O plot da série – a acirrada disputa pela sucessão de uma liderança – já havia sido trama de outra obra exitosa da HBO, Game of thrones. Se uma descreve as batalhas pelo Trono de Ferro dos Sete Reinos, a outra narra a competição pelo cargo de CEO da Waystar Royco – conglomerado fictício de mídia.

Ao contrário de GoT, fenômeno da cultura pop, cujo episódio final teve audiência de 20 milhões de espectadores (somente nos Estados Unidos), Succession não conseguiu um alcance global tão acachapante (seu episódio de maior audiência, o terceiro da quarta e derradeira temporada, atingiu “apenas” 2,5 milhões de pessoas nos EUA). Por outro lado, a obra conquistou a aclamação da crítica e das premiações (52, sendo 13 Emmys, incluindo três de Melhor Série Dramática), e grande repercussão nas redes sociais e na imprensa mundial, inclusive em renomados veículos que cobrem política e economia.

Isso tudo, por si só, já pode ser considerado uma vitória de seu criador, o roteirista britânico Jesse Armstrong, visto que a série apresenta uma narrativa difícil de agradar: os diálogos têm economês, a ambientação ocorre, em muitas cenas, em escritórios, e seus personagens principais são bilionários arrogantes, oportunistas, amorais, egocêntricos, manipuladores – e bastante caricaturados nos primeiros episódios. Se o espectador conseguir ultrapassar a metade inicial da primeira temporada, será recompensado com uma obra-prima.

Jesse Armstrong começou a ter a ideia de Succession em 2008. Lá, naquele longínquo ano em que estourava a bomba da crise econômica mundial, ele vislumbrava um documentário fictício inspirado em Rupert Murdoch, o magnata das comunicações nos Estados Unidos, dono da Fox News, canal que posiciona-se ao lado do Partido Republicano e que, inclusive, apoiou o mandato de Donald Trump e não teve pudor ao fazer vista grossa para fake news.

Anos depois, Armstrong decidiu aceitar a sugestão de seu agente norte-americano para ampliar o escopo e narrar a história de uma família rica de um conglomerado de mídia. Para desenvolver o roteiro, fez pesquisas sobre clãs do ramo das comunicações. A partir daí, surgiu a criação dos principais personagens, a começar pelo pai, Logan Roy, interpretado com vigor e maestria pelo ator britânico Brian Cox. Logan é o aglutinador do enredo, aquele que decidirá o seu sucessor no cargo de CEO da Waystar Royco.

Em seguida, vieram os personagens dos filhos: Connor, primogênito sem senso do ridículo, está fora da disputa por comodidade e incompetência; Kendall, muitas vezes equivocado e crédulo demais, se considera o mais apropriado para o cargo; Roman, desregrado e inconsequente, tenta conquistar o pai na bajulação; e Siobhan (Shiv), sagaz e refinada, tem, na visão do pai, um único defeito: a inexperiência, mas, na realidade, o que a impede é o machismo e a ideologia contrária à paterna. Seu marido é o convenientemente cortês e adaptável Tom Wambsganss, puxa-saco profissional do sogro, com claras tendências sadomasoquistas, expostas na submissão à família Roy e no abuso aos subalternos da empresa.

Completando o elenco familiar principal, há ainda o primo Greg, um bobão oportunista que consegue um cargo pequeno para trabalhar com Tom Wambsganss. Ambos formam uma versão “live action” do desenho animado Pinky & Cérebro (dois ratos de laboratório com planos mirabolantes de dominar o mundo). Eles são responsáveis pela maior parte do alívio cômico da série – considerada drama, mas que tem muito humor e ironia nos diálogos e nas atitudes dos personagens.

Como uma simbologia de seu tempo, Succession começou a ser rodada no dia seguinte à eleição presidencial norte-americana de 2016. Jesse Armstrong considera que a campanha de Trump, o Brexit e a manipulação midiática daquele período foram fundamentais para convencer os executivos da HBO sobre a relevância da produção. Estávamos em plena explosão da crise democrática em vários países, com o avanço do populismo de direita em todo o mundo, e a série estava disposta a abordar os bastidores dos conchavos corporativos, a dinâmica interna de uma grande empresa de comunicação e a manipulação midiática para interferir na política.

Succession é a demonstração exata do ponto em que se encontra a evolução desse tipo de programa televisivo. Ela traz influências de diversas obras anteriores, como Dallas, The Office, Game of thrones, Mad men, Dogma 95 (Festa de família), assim como do noticiário sobre a política e a mídia hegemônica norte-americana. Outras referências vêm de Shakespeare (Rei Lear) e Cidadão Kane, que ganha homenagem no roteiro e na direção de fotografia em um episódio específico da segunda temporada. Assim como no filme clássico de Orson Welles, sordidez, mesquinhez, desamparo e solidão também fazem parte do enredo.

Além da competição pelo cargo, os três filhos Shiv, Kendall e Roman disputam principalmente a preferência no coração de Logan Roy – um pai ausente, frio, autoritário, insensível e calculista, que não tem vergonha alguma em manipular os filhos e até colocá-los uns contra os outros. Mas ele, ao menos, está por perto, ao contrário da mãe, completamente indiferente.

O plot da série, a competição pelo “trono”, traz como acompanhamento o seu melhor: as nuances que expõem ressentimentos, rivalidades e fragilidades. Os roteiristas sobrepõem à disputa pela hegemonia nos negócios a rixa entre os irmãos, dinâmica em que os golpes mais covardes podem ser aplicados pelas pessoas mais íntimas. E tudo vale – da exposição de confissões a cobranças por deslizes que só conhece quem acompanhou o outro desde o berço. Enquanto essas situações ocorrem, Succession apresenta um magnífico resultado da soma entre roteiro, direção e atuação – em que os atores também têm liberdade para improvisar.

O texto traz muitas ironias, metáforas, sarcasmo e ofensas que vão do palavrão a grotescas e elaboradas figuras de linguagem, referências culturais, citações a obras eruditas e da cultura pop – “Vamos encontrar o Homem do Norte”, diz Shiv, quando, na estupenda quarta temporada, os irmãos vão se reunir com Lukas Mattson (Alexander Skarsgård, que, de fato, interpretou o protagonista do filme O Homem do Norte, 2022), dono de uma big tech de streaming e redes sociais.

Mattson torna-se um personagem importante na trama porque se, por um lado, Logan Roy gaba-se de ter contribuído para a eleição de dezenas de presidentes, por outro, e em paralelo à disputa pela sucessão do seu “trono”, o enredo enfatiza os desafios que esses impérios de mídia contemporâneos, representados pela fictícia Waystar Royco, estão enfrentando para permanecerem relevantes diante do poder crescente das mídias sociais e das big techs.

Em dado momento, mesmo que ignore temas urgentes, como a crise climática, a família percebe que, para sobreviver como espécie do 1%, precisa aliar-se aos “novos tempos” – e esse é o ponto que causa a maior turbulência na reta final da série. Como estão acostumados a manipular a política, sabem que hoje o resultado de uma eleição depende mais da performance nas redes sociais do que do noticiário.

Succession, que começou como uma série estranha dentro do extraordinário catálogo da HBO, passou a incomodar e a atrair o interesse do 1% real, retratado sem piedade na história. Um exemplo de seu alcance nessa ínfima e privilegiada fatia social foi a notícia de que os advogados do divórcio do magnata Rupert Murdoch com Jerry Hall (ex-esposa de Mick Jagger) terem incluído no documento da separação uma cláusula – a ex-modelo não deveria dar informações aos roteiristas da série, que, a propósito, beneficiou-se de ter gravado sua última temporada antes da greve dos roteiristas de Hollywood.

A paralisação, que estourou no começo de maio, segue nos Estados Unidos e já interrompeu diversas produções da TV e do cinema. Até o momento, estima-se que a greve já causou um prejuízo de cerca de US$ 720 milhões (R$ 3,6 bilhões) a Hollywood, mais do que os US$ 429 milhões (R$ 2,1 bilhões) que precisariam ser desembolsados para atender às reivindicações. Dentre os pedidos: estabilidade, pois as séries hoje são mais curtas do que antigamente, e participação no lucro dos filmes e séries nos streamings – para isso, as plataformas teriam que descortinar o seu maior segredo: qual é, afinal, a audiência do conteúdo dessas plataformas?

O sucesso de Succession é a prova maior da importância dos roteiristas. Dentre as placas dos protestos em Nova York e Los Angeles, escritas pelos manifestantes, a série esteve presente: “Succession sem roteiristas = O Aprendiz” e “Nos paguem ou contaremos spoilers de Succession”. Isso antes de ir ao ar o impressionante capítulo final. Espero não ter contado nenhum por aqui. Para os que ainda não assistiram à série, um alerta: não percam essa obra-prima.

***

E por falar em frases, seguem algumas das melhores de Succession:

LOGAN ROY
Poderoso chefão da mídia, nasceu com uma pedra no
peito; os filhos são apenas peças do seu jogo



​​"Roman, quando estiver rindo, por favor, faça no mesmo volume que todos os outros. Não tiramos você de uma fazenda de hienas"

“Karl, se suas mãos estão limpas é só porque seu bordel também tem manicure”

“Então me processe – meu advogado trabalhava para o Departamento de Justiça, quem é seu advogado? A porra do Sr. Magoo (personagem cego de desenho animado)?”



EWAN ROY
Irmão de Logan e seu arqui-inimigo,
que se opõe às suas manipulações midiáticas



“A ‘Escola de Jornalismo Logan Roy’? O que vem a seguir, a Clínica de Saúde Feminina 'Jack, o Estripador'?”



CONNOR ROY
Filho mais velho de Roy, sem senso do ridículo



“Às vezes, acho que nunca vou entender meu pai de verdade até que eu faça merda fora de casa”



KENDALL ROY
Pobre menino rico, cara de coitado;
deseja, sobretudo, o amor paterno




“Você não conseguiria um emprego em uma lanchonete e muito menos em uma Fortune 500 sem algum nepotismo” (Para Roman)

“Vamos inverter o Viking, pilhamos a aldeia deles”



ROMAN ROY
Problemático, pornográfico, inconveniente e sincericida



“Parem de me atacar como se vocês fossem Lennon e McCartney e eu fosse George. Eu sou John, filhos da p*!” (Para Shiv e Kendall)

“Sou burro, mas sou esperto”

“O que eu acho que ele quis dizer é que gostaria que a mãe desse à luz a um abridor de latas, porque, pelo menos, seria útil” (Para Kendall)



SHIV ROY
Coisinha do pai, inteligente, elegante e charmosa,
parece e é uma raposa




“Ah, uma capela. Você acha que o papai será capaz de cruzar a soleira ou ele entrará em combustão espontânea?”

“Uh... Ah, olá? Este é o departamento replicante? Sim, meu boneco de carne parou de funcionar” (Para o marido Tom)



TOM WAMBSGANS
Marido devoto de Shiv, observador das situações e
bajulador profissional do sogro




“Noruega, Suécia, qual é a diferença? É tudo descendente dos mesmos estupradores”

“Informação, Greg, é como uma garrafa de bom vinho. Você guarda, guarda, guarda para uma ocasião especial e então quebra o rosto de alguém com ela”

“O homem morrendo de sede, de repente, é um crítico de água mineral?” (Para Greg)

“Greg, isso não é a p**** do Charles Dickens World, ok? Você não sai por aí falando sobre ‘princípios’!”



GREG HIRSCH
Primo dos Roy, saco-de-pancada, se finge de morto



“Eu queria saber, só, na sua opinião você acha que é possível processar uma pessoa, um avô por exemplo, de uma forma assim... tipo afetuosa?”

“Não sei... Tipo, eu sou contra o racismo”



GIL EAVIS
Senador democrata, assessorado por Shiv e opositor de Logan Roy



“Você não pode fazer um Tomelette sem quebrar alguns Gregs”

“Você já usou outro ser humano como apoio para os pés, Sr. Wambsgans?”

Fotos: HBO/Divulgação

 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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