Mirante

Idade: isso vai passar

TEXTO Débora Nascimento

27 de Março de 2023

Alice Guy-Blaché é pioneira do cinema, tendo usado vários elementos cinematográficos

Alice Guy-Blaché é pioneira do cinema, tendo usado vários elementos cinematográficos

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Uma jovem francesa
, de 21 anos, estava procurando emprego para ajudar a mãe viúva e endividada. Na entrevista para a vaga de secretária, ouviu do dono da empresa uma observação que poderia ser o prenúncio da recusa dele: “Você é muito nova…”. Ela imediatamente retrucou: “Mas isso vai passar”. Surpreso com a perspicácia da candidata, logo a contratou. Foi a melhor coisa que ele poderia ter feito para o seu negócio e para o mundo – abordarei isso mais à frente. Por ora, esse episódio, ocorrido no final do século XIX na França, serve para demonstrar como alguns obstáculos enfrentados pelas mulheres são fabricados pelo machismo da sociedade e dispostos como pedras ao longo do nosso caminho na história.

Assim como a jovem francesa, considerada muito jovem para trabalhar, quantas mulheres não passaram por isso e foram tratadas com desconfiança por conta da sua idade? Seja esta qual for, aliás. À medida que ficam mais velhas e experientes, também correm o risco de encontrar muita dificuldade para conseguir um emprego, pois isso implica salários mais altos. Ou não são aceitas porque comumente podem ser consideradas ultrapassadas no conhecimento de suas áreas e sem o mesmo vigor da juventude.

Enquanto os anos passam, permanecem à mercê de preconceitos no mercado de trabalho, seja porque estão na “fase de ter filhos” ou porque simplesmente já os têm – e isso indica que algumas vezes vão precisar se ausentar do trabalho por causa deles. Ou porque elas próprias podem apresentar questões de saúde específicas do universo feminino. E a idade apresenta-se como um “agravante” para questões referentes ao corpo. Por isso, não é de se estranhar que muitas mulheres se comportem como a já saudosa jornalista Glória Maria e evitem dizer suas idades, não somente por vaidade, mas pelo receio de perderem seus postos ou oportunidades. 

Na TV e no cinema, há os exemplos mais conhecidos e simbólicos desse tipo de comportamento da sociedade. Ao longo da história do audiovisual, ocorreram vários casos de atrizes que, depois de experimentarem o estrelato nas telas, com o passar do tempo, perderam bons papéis ou o direito de continuar atuando, simplesmente porque ficaram mais velhas. Já escrevi sobre o tema na matéria "Sessão especial para os mais velhos", publicada na edição de novembro de 2012 da Continente.

Nessa época, o cinema comercial acordava para o potencial de roteiro e até de bilheteria ao narrar temas referentes à chamada terceira idade. Mas bem antes disso, o etarismo era uma realidade, mas ainda sem classificação. E foi a rebelde Bette Davis quem deu a primeira resposta a esse preconceito na sua profissão. Protagonista de diversos filmes nas décadas de 1930 e 1940, a partir dos anos 1950, depois de estrelar o clássico A malvada (1950), curiosamente um filme que aborda em seu roteiro a questão da idade, a artista publicou, junto a uma foto sua, um anúncio no Hollywood Reporter, em 21 de setembro de 1962: “Mãe de três (10, 11 e 15), divorciada, americana. Trinta anos de experiência como atriz em filmes. Quer continuar empregada em Hollywood. Ainda se locomove e é mais afável do que os rumores sobre seu humor. Esteve na Broadway”. Ela tinha apenas 44 anos.

Imagine o que Bette não diria às jovens universitárias paulistas que ironizaram, em vídeo, uma colega de sala de aula que cometeu a ousadia de querer fazer um curso superior aos 45 anos. No entendimento das garotas, a mulher deveria, nessa idade, estar aposentada. Além da idiotice e do idadismo, uma coisa que se destaca nesse fato é a evidência de que essas garotas não têm a menor noção de quando elas próprias vão poder se aposentar. Sem contar com a vampiresca reforma trabalhista de Temer, que estendeu o tempo para o trabalhador brasileiro poder se aposentar, hoje muitos aposentados precisam continuar trabalhando para complementar a renda. Ou seja, essas meninas ainda terão muito chão pela frente, se tiverem sorte, e mais inteligência e empatia. 

Quando eu estava escrevendo a reportagem “O futuro é dos velhos”, publicada em junho de 2021, na Continente, entrevistei uma pessoa aposentada, que ainda precisava trabalhar para poder complementar a renda da sua aposentadoria, que não era suficiente para os gastos – por este motivo, 42,3% dos aposentados brasileiros continuam no mercado de trabalho. Ou seja, por necessidade, essas pessoas permanecem mais tempo ocupando vagas de emprego. A previdência social, ao pagar muito pouco aos aposentados, retroalimenta problemas sérios do Brasil: o desemprego e a desigualdade social. 

Essa entrevistada também me disse que um dos primeiros sinais de que estava envelhecendo não apareceram apenas no rosto e no corpo, mas fora de casa. Muito cortejada quando jovem, ela passou a notar que os homens não mais a olhavam quando estava em qualquer recinto. Recaiu sobre ela o manto da invisibilidade que a sociedade tece com muito zelo para ignorar a existência das mulheres mais velhas e suas demandas.

Resta a essas mulheres o item “experiência”, mas essa justa vantagem, que implica, na vida profissional, promoções ou ocupar cargos de chefia, também gera frustração, pois esses mesmos degraus acima são geralmente reservados aos homens. Ou seja, a partir de certo momento de suas carreiras, as mulheres passam a ser vistas como descartáveis. E esse tratamento injusto leva a uma questão: afinal de contas, qual a idade ideal que a sociedade machista considera que a mulher tem utilidade para trabalhar ou para simplesmente ter o direito de existir plena e dignamente? 

O episódio do idadismo em Bauru (SP) ocorreu no mesmo mês de março em que se comemora o Dia Internacional das Mulheres e no qual vários outros fatos demonstraram que a luta feminina por justiça e igualdade parece ainda estar só no começo: uma vereadora de 26 anos foi torturada e morta pelo namorado, por este não aceitar o fim do relacionamento; uma menina de 15 anos foi resgatada da escravidão sexual praticada por garimpeiros no território Yanomami; uma garota de 12 anos foi sequestrada no Rio por um homem de 25 anos.

Ainda no mesmo mês, dezenas de mulheres foram usadas como cobaias sociais de coaches norte-americanos em uma festa para homens ricos e solteiros em São Paulo; um coach paulista ameaçou uma comediante por sua paródia do Red Pill – o termo é uma deturpação da teoria de Matrix sobre a escolha entre a pílula vermelha (“a verdade”) e azul (“ilusão”) e o “movimento” é integrado por homens da extrema direita que “lutam contra o sistema que favorece as mulheres”. Uma nova pesquisa aponta que 52% das mulheres brasileiras fizeram o primeiro aborto ainda na adolescência e confirmou que mulheres negras e pobres são as que mais morrem em decorrência de abortos clandestinos.

Nesse mesmo mês em que sempre é lembrado que as mulheres não têm o direito sobre o seu próprio corpo, o PL, partido com a maior bancada na Câmara dos Deputados (é preciso nunca esquecer também essa outra aberração), dá indícios de que está fortalecendo politicamente uma mulher para que ela seja sua próxima candidata à presidência em 2026. Isso seria motivo para aplauso, caso essa mulher não fosse Michelle Bolsonaro, cotada como substituta oportuna ao maior cargo executivo do país, caso Jair das Joias se torne inelegível. 

Tendo as redes sociais como termômetro, ela é hoje a segunda pessoa mais popular da família, depois do seu marido. Michelle se tornou, no dia 21 de março, presidenta do “PL Mulher”, em cerimônia que teve apenas duas mulheres com a oportunidade de discursar. Esse investimento na imagem dela, como também ocorreu na eleição presidencial de 2022, como reforço a Bolsonaro, demonstra que a figura feminina, mais uma vez, é usada para tentar salvar a lavoura quando a praga toma conta da plantação. 

Nada mais simbólico também que, no mesmo mês em que ocupa esse cargo no partido, ela tenha lançado uma linha de maquiagem. Com isso, Michelle demonstra ser uma representante da eficiente confusão de papéis cultivada no Brasil contemporâneo, mostra-se empreendedora, garota-propaganda, influencer, evangélica, boa esposa e agora aspirante à política.

E por falar em ex-secretária, vamos voltar à jovem francesa do começo do texto. No dia 22 de dezembro de 1895, ela, Alice Guy (posteriormente Alice Guy-Blaché), que já havia conseguido o seu emprego de secretária, estava presente à sessão dos Irmãos Lumière em que foi exibido La sortie de l'Usine Lumière à Lyon. Alice acompanhava o seu chefe, Léon Gaumont, dono de uma empresa fotográfica que depois se tornaria o primeiro e mais antigo estúdio de cinema do mundo, a Gaumont Film Company. 

Na mesma plateia daquele dia, estava o ilusionista George Méliès. Algumas décadas depois, ele se tornou um dos nomes mais festejados da história do cinema, sendo homenageado, inclusive, por Martin Scorsese no filme A invenção de Hugo Cabret (2012). E a moça, uma desconhecida, ficou relegada ao esquecimento. Mas a ela deveria ser dado o epíteto que os Irmãos Lumière ganharam: o da invenção do cinema.

Os Lumière, na realidade, criaram o cinematógrafo e seus “filmes” eram apenas demonstrações de situações cotidianas. Eles tratavam a sua obra como descoberta científica e não artística. O que Alice imaginou foi o contrário: poderia criar ficção a partir daquela nova invenção. Após a sessão, ela pediu ao chefe para “brincar” com a nova máquina. Ele aceitou, porque esse interesse era visto como “coisa de mulher”. 

Assim, Alice Guy-Blaché fez o que é considerado por muitos especialistas como o primeiro filme ficcional da história, A fada do repolho (1896) – embora Louis Lumière tenha lançado, um ano antes, O regador regado, mas bem mais simples que o dela, apresentando uma situação cotidiana cômica, quase uma pegadinha. Enquanto o filme dela traz mais elementos cinematográficos, como atuação, cenário, figurino, roteiro, edição e efeitos visuais. Alice foi pioneira em outros componentes do cinema, como coloração, close-up, sincronização entre imagem e som, primeiro filme só com atores negros, além da presença de personagens femininas altivas. Seus filmes foram vistos por Alfred Hitchcock e Sergei Eisenstein, que registrou isso em um diário, mesmo sem mencionar a autoria da película específica. 

Alice se tornou a primeira cineasta da história e distribuiu generosamente seu conhecimento na França e nos Estados Unidos, onde também trabalhou, contribuindo para criar a indústria cinematográfica que se tornou a mais poderosa do mundo. Após sair da Gaumont, seu chefe, contrariado com sua saída, levou adiante uma campanha de invisibilização da ex-empregada. E assim, o nome de Alice, realizadora de cerca de mil filmes, entre 1896 e 1920, desapareceu da história do cinema (ela nasceu em 1873 e morreu em 1968). 

Como naquele período os filmes costumavam ter apenas o título na caixa, muitos dos seus trabalhos foram posteriormente atribuídos a homens ou aos estúdios. E os originais ficaram espalhados mundo afora através de diversos compradores em leilões por valores irrisórios. Apenas 350 obras sobreviveram. Já o marido, o cinegrafista Herbert Blaché, beneficiou-se da fama que a esposa deu ao seu sobrenome. E virou roteirista, cineasta e produtor, passando a ficar até mais conhecido que ela, em sua época. Eles se separaram em 1918.

Quando o cinema, antes enxergado pelos homens como uma arte feminina sem muito valor, começou a dar sinais de que poderia gerar lucros maiores, os novos investidores entraram com tudo no negócio e exigiram a saída das mulheres que ocupavam maciçamente importantes funções por trás das câmeras, como diretoras, roteiristas, produtoras... Raríssimas restaram. E, nessa época, Alice já havia desistido de continuar a fazer cinema, diante de tantos obstáculos. Então, em 24 de março de 1968, sete anos antes de o 8 de março ser instituído pela ONU como o Dia Internacional da Mulher, ela faleceu no anonimato, pobre, desconhecida (inclusive dos cinéfilos) e tentando reencontrar seus filmes, que apresentavam, inclusive, mulheres fortes em atividades atípicas, como a boemia.

Neste mês, completam-se os 55 anos da morte da diretora e roteirista francesa e, em julho deste ano, serão marcados os 150 anos de seu nascimento. Será uma ótima oportunidade para celebrar a vida e a obra de uma mulher que merece o clichê “à frente de seu tempo” e que ousou pensar e agir de forma diferente – ou como ela dizia, “aja naturalmente”, lema que colocou em uma placa no estúdio para que todos da equipe, principalmente os atores, seguissem à risca. Para conhecê-la mais, há o documentário Alice Guy-Blaché: A história não contada da primeira cineasta do mundo, de Pamela B. Green e narrado por Jodie Foster (disponível no Telecine). Alice morreu aos 95 anos bem-vividos, divorciada há muito tempo, acompanhada de sua filha, mantendo o bom humor, e ainda certa sobre a idade: isso vai passar. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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